Nome do Escritor: Ricardo Ambros

Se ela soubesse

Fui criado em uma família de classe média, sem ter que trabalhar desde criança, nem durante a adolescência, ou no início de minha vida adulta, que fosse. Quando criança, estudei em escolas particulares. Fui expulso algumas vezes por comportamentos comuns de jovem mimado. Aos trancos e barrancos, me formei do segundo grau e logo comecei uma faculdade particular qualquer. Nada na minha vida havia de extraordinário. Era apenas um adolescente e depois um jovem adulto que não teve que sujar suas mãos para conseguir algo. Naquela época não tinha ideia do que a vida guardava para mim e não estava muito interessado em descobrir.

Texto completo...

Sobre a escravidão do mais

Durante nossa vida somos doutrinados a querer um pouco mais. Sejam músculos, prazeres, mulheres, dinheiro, felicidade, viagens, drogas, estamos constantemente obcecados por buscar mais.
Nessa obsessão, poucas vezes paramos para notar o que temos; o que já tivemos; e o que, por isso, perdemos.
Essa doutrina do mais, juntamente com o egoísmo, nos impede de viver qualquer coisa que seja. Guiamo-nos apenas na busca. Seja o que for, é o que nos define: mais prazer para os hedonistas; conhecimento para os cultos; dinheiro para os miseráveis.
A partir do momento que deixamos nos enfiarem na cabeça o que devemos buscar, a mão invisível, mas inexorável, da psicologia de massa passa a nos guiar, nos definir, sem nunca nos libertar.
Assim, todos vivemos a mesma vida pré-concebida. Sempre crendo sermos tão originais.

Local de Nascimento: Santa Maria RS

Dia dos namorados

Dia dos namorados

Todas aquelas promessas que um dia para ela fizeste
Hoje para outra fazes
Pergunta-se o que mudou
Tu não foste.
Só pode ter sido ela,
Eis a única conclusão lógica.

Secretamente, ela pensa o mesmo.

Com seu novo amante,
Ela se pergunta por que ele não é como tu;
Por que lhe deixou partir;
E por que não pode lhe abraçar uma última vez.

Secretamente, tu pensas o mesmo.

Mas tu segues tua vida,
Assim como ela segue a dela.
Afinal de contas, se há algo a culpar,
Esse algo é a vida, que te distanciou dela.
Além do que, tu nem a amavas tanto assim.
É o que declaras defronte ao espelho dia após dia.

Ela, por sua vez, acredita que seu novo amante é diferente.
Que ele será para ela o homem que tu não foste.

Quanto a ele, bom, ele está só passando o tempo.
Ainda não se deu conta da mulher que tem ao lado.
Mesmo erro que tu cometeste.

A história continua a mesma,
Apenas com diferentes nomes.

Formação Acadêmica: Ciências Jurídicas e Sociais

O píer

Sozinho, sentei-me num píer, a observar as aves e o molejo da lagoa da conceição.
Nos primeiros cinco minutos, fiquei parado, somente observando e conflitando pensamentos: será que meus filhos terão um lugar tão calmo para sentar e ficar apenas parados com seus pensamentos? Cinco minutos de devaneios sobre uma possível vida futura.
Com dez minutos, já não mais tinha paciência para ficar parado. Descruzei as pernas; cruzei-as novamente; olhei para os lados, pensando que talvez houvesse alguém a me lançar olhares de estranheza. Senti-me esquisito, parado ali, sem nenhuma finalidade.
Quis levantar e seguir meu honesto dia de trabalho, afinal era recém 14 horas. De que dia? Uma pilha de processos para analisar, alguma pecúnia a coletar, para em seguida gastar. – Sim, pois este é meu emprego, sou pago para fazer isso. Esta era a resposta que ressoava em meus ouvidos.
Porém, insisti em me perguntar: – não posso ficar mais cinco minutos? Estar ali olhando as aves me parecia, de alguma maneira, tão certo, tão onde eu deveria estar. Não são incríveis esses momentos, em que nos sentimos como Salinger?
Alguma outra parte de mim, malévola, dizia: – tudo bem, fique meia hora, duvido que consiga. Não retiro toda a credibilidade dessas palavras. Meia hora pensando na morte da bezerra é muito mais difícil do que os mestres Zen fazem parecer.
Então, surgiu uma nova ideia: e se essa fosse minha vida? Se meu pai fosse um pescador e eu tivesse crescido sentado em um píer, assistindo as aves enquanto aguardava seu retorno e seu afago. Logo o superego recriminou este pensamento, mas pagou com uma lágrima. Limpando-a, culpei meu timing histórico por ter me tirado esta oportunidade.
Seria uma bela vida. Aos 14 anos, seria perito em aves. Conhecê-las-ia como a palma de minha mão. Até que uma caísse e necessitasse meus cuidados. Daí em diante disso faria minha vida. Chamar-me-ia veterinário. Aos 20 anos, casaria com uma bela pequena. Teríamos filhos, aos quais eu passaria meu apreço pelas aves.
Tudo isso em meia hora sentado num píer.
Desde então, tenho devaneado religiosamente após o almoço. Cada dia uma linda vida. Como seria agradecido se pudesse vivê-las, uma a uma. Pensando bem, como sou agradecido por vivê-las uma a uma.

Influenciado por autores como Kafka e Dostoevski, foco meu trabalho em torno do vazio existencial, do caos interno de um jovem no mundo contemporâneo e da constante dialética de quem por vezes ama e por vezes odeia tudo a sua volta

Seis Segundos

Ele não entendia a felicidade,
Não sabia como era se sentir feliz.
Mesmo assim, volta e meia, se pegava sorrindo.
Mas não havia nada engraçado em sua volta.
Nunca houvera.
Assim ele lembrava.

Na rua, passou por ela.
O sorriso insistente voltou aos seus lábios.
Deu-se conta do motivo
E pela primeira vez seu sorriso veio do âmago.

“ora, era ela”. Pensou.
“óbvio que era ela, o que mais seria”?
Tudo estava tão claro agora.

As lembranças de sua vida com ela voltaram à tona.
Seis segundos.
Eis o tempo que seu coração exultou.

No sétimo segundo, ele lembrou do término.
Dos anos posteriores.
O sorriso sumiu,
Mas não foi substituído por uma lágrima.
Lembrou-se que não mais lhe sobravam lágrimas.
Enfim, também lembrou por que não sabia por que sorria.

Site/Blog: alucinacaofebril.wordpress.com

Capitalização humana

Durante os últimos dois milênios, a Europa ditou seu modo de pensar ao resto do mundo – utilizando a força, se necessário. Mesmo que tal construção tenha contornos desumanos – na medida em que de pouco interessava a filosofia dos povos sobrepujados – o caminho do progresso foi trilhado com padrões minimamente éticos e honrosos. Isso porque, dentre os interesses das nações europeias, estava a criação humanística de suas novéis gerações. Nas três cátedras superiores – direito, medicina e teologia – a elite de pensadores eram ensinados valores que visavam o crescimento do espírito humano.
Breve análise, remontando ao apogeu do iluminismo, nos permite concluir que não houve geração sem um expoente literato-filosófico. Alemães como Kant, Freud, Nietzsche, Schoppenhauer, Marx; franceses como Descartes, Montesquieu, Rousseau, Voltaire; ingleses como Hobbes, Locke e Adam Smith. Centenas de pensadores europeus moldaram a filosofia moderna.
Até meados do Século XIX o crescimento humano era vertiginoso. Com Descartes e todos os pensadores que o seguiram, o futuro parecia esplendoroso. Estávamos a poucos passos de chegar a conclusões verdadeiramente brilhantes. A algumas já havíamos chegado, como a teoria do capital de Marx.
Porém, com o amanhecer do Século XX e florescimento das ambições políticas, eclodiu a primeira guerra mundial. A rivalidade entre as nações europeias e o assassínio do arque duque Franz Ferdinand nos jogaram centenas de degraus para baixo em nossa escada rumo ao esclarecimento. Isto por razões econômicas: em 1921 a Europa restou desolada e os Estados Unidos vieram a seu socorro, se colocando definitivamente no cenário mundial e paulatinamente em posição de hegemonia internacional. Em menos de 50 anos, os Estado Unidos já eram a maior economia mundial e receberam de braços abertos a função de tutores da humanidade.
Os estadunidenses, que não sem motivo haviam passado os últimos séculos sem muita expressão internacional, haviam aprendido com maestria os ensinamentos de um europeu em especial: Adam Smith. Leram-no, releram-no, interpretaram-no incontáveis vezes. Por isso, se tornaram especialistas na ciência de fazer dinheiro. Elevaram a doutrina de Adam Smith a níveis nunca antes pensados.
A desolação da Europa era exatamente o que os Estados Unidos estavam esperando para tomar o posto de centro internacional. Ajudaram a reconstruí-la, mas o preço pago foi alto demais. Isto porque, sendo os Estados Unidos o centro do desenvolvimento humano global, puderam eles passar a ditar o rumo a ser seguido. Eles haviam se tornado mestres no capitalismo, mas ignoravam todas as demais vertentes do pensamento humano e sua posição de destaque no cenário internacional fez com que fosse apenas questão de tempo até que sua única virtude sobrepujasse todas as outras. Um revés que fez a Europa provar de seu próprio veneno.
Hoje, nem 100 anos depois dessa supervalorização da ganância, já houve dezenas de guerras, revoluções, epidemias, surtos e, em alguns momentos, estivemos à beira de destruir o planeta. Lidamos com problemas de profusão inenarrável, a exemplo das questões ambientais. Enquanto isso, a riqueza de alguns e a pobreza de outros são literalmente inconcebíveis.
Estamos face a face com a desvalorização do ser humano enquanto ser ontológico. Não temos valor por nós mesmos, não interessa nada, nem mesmo nossa qualificação, a não ser nossa aptidão para gerar lucros. Atualmente, isso é a pedra de toque de nossa formação neo-humanística. Nesse contexto, figuras como Steve Jobs e o criador do Facebook são deificados, mesmo que não tenham prestado nenhum serviço para a humanidade – muito pelo contrário.
Aqui estando, todos somos sapos em uma chaleira. Acostumamo-nos com o disparate da nova realidade: nada em nós interessa, senão nossa capacidade de gerar lucro. Tornamo-nos máquinas, nos despimos da mais vaga centelha de humanidade em favor do pragmatismo do capital.

Data de Nascimento: 19/11/1987

Dois amigos

Conheciam-se há tempos,
De início separados,
Mas já estranhavam a atenção que se chamavam.

Há um, ou dois anos, se aproximaram.
Ele arisco. Ela defensiva.

Mas depois da segunda ou terceira conversa,
Da fluência natural dos tópicos,
De como pareciam falar consigo mesmos,
Foi inevitável se tornarem amigos.

E então mais que amigos.
Não demorou muito para não mais se lembrarem como era antes,
Na época em que eles eram “ele” e “ela”.

Essa não é uma história de amor.
De certa forma, é diferente.
Durante um passeio, por exemplo,
Ele pegou a mão dela – pela primeira vez.
A ideia estivera ali. O tempo todo.
Esperando aquele momento para ser executada.

E a resposta dela. O aperto quente,
O entrelaçar dos dedos.

O beijo, o sexo,
Nada disso precisa ser contado
Depois de se conhecerem,
Os velhos clichês fizeram sentido.

EMAIL: ricardoambros@uol.com.br

Velhos mendigos

Talvez esteja mais que acostumado ao centro de Porto Alegre. Possivelmente tenha me apaixonado pela forma como as pessoas vivem, dia após dia, buscando o próximo dia. Elas têm algo por que viver; têm esperanças de um amanhã. Cito o caso dos dois velhos mendigos que vivem na volta do Zaffari da Marechal Floriano, por exemplo. Devem viver do jeito que o fazem há cinquenta anos. E, não obstante todo esse tempo, todas suas desventuras, sempre têm algo pelo que viver mais um dia, nem que seja para afagar um coração apaixonado como o meu.
Dado seu modo de viver, não se consideram donos do amanhã, como a maioria de nós, que recebemos o passar dos dias, alguns como um Direito, outros como um dever – de manutenção do status quo. Para as pessoas que nada têm, cada amanhecer é uma promessa de uma vida inteira.
Bem sei que os amo. Seria capaz de dizer isso a eles. Será que eles já repararam a admiração em meus olhos em meio a tantos olhares reprovadores? Contarei sempre que possível a história dos dois velhinhos, que até ontem pensava que fossem um só.
Não obstante uma vida de desventuras, continuam suportando o peso dos dias, dos anos, das decepções, dos constantes olhares malfazejos das pessoas que, guiadas por sua cegueira, os veem como parasitas sociais.
Pessoas essas que têm os desejos mais baixos, profanos, vis! Nasceram em lares com um mínimo de qualidade de vida e se guiaram, ano após ano, pelos valores sociais que quantificam as pessoas de acordo com sua aptidão para gerar lucro, sem se dar conta o quanto estavam se distanciando de sua humanidade. Pessoas que nunca fizeram uma pergunta, uma escolha na vida; pegaram o que lhes foi dado e seguiram em frente, sem nunca perceber o que estava a seus lados, assim como fazem os cavalos (que fazem isso não por livre arbítrio, mas por imposição).
Como nunca olharam para os lados, não aprenderam a se portar de acordo com as diferentes situações; receberam toda uma carga de pré-conceitos, que se esgueiraram por seus inconscientes com tanta naturalidade, que é como se tivessem sido concebidos pelos seus próprios seres (não)pensantes.
Quem tem de viver em meio a essas pessoas é obrigado a fazer um esforço imenso para manter um relacionamento, sendo necessário manter-se sempre atualizado no tocante às coisas inúteis sobre as quais conversam – esportes, carros, mulheres e, no pior caso, política (porque dela nada entendem, somente dão seus palpites sobre corrupção e o monte de meias verdades que chegam a seus ouvidos pela comunicação de massa).
Assim, imagine só a estapafúrdia da situação, o morador de rua, que não teve a oportunidade de receber toda a carga de “socialmente correto” e coisas do gênero, segue sua vida dia após dia, sem julgar ninguém, mas sendo julgado por todos como uma criatura inferior. Por ter suportado as provações que uma vida nas ruas com certeza lhe proporcionou, ele sim merece todas as alegrias do céu. Mesmo eu, apaixonado pelo sofrimento como sou, não creio que teria forças para suportar tantas provações por tanto tempo.
As pessoas que olham para baixo para eles deveriam entender quanta força espiritual é necessária para suportar uma existência tão desprivilegiada de calores para as fraquezas do coração humano!
Imagine, por um momento, seu pior dia. Provavelmente não tenha sido pior do que a maioria dos dias dessas pessoas! E você reclama de tantas coisas!
Seria você capaz de amar sua filha se ela fosse desprovida de tudo que você admira nela? Se ela não fosse sua filha? Se fosse fruto de uma relação adúltera de sua mulher? Seria você capaz de amar sua mulher se ela lhe traísse constantemente e estivesse a quilômetros de distância dos padrões de beleza?
Tente imaginar o sofrimento mais agudo. Mais prolongado. A dor perene no coração; o olhar de inferioridade de todos seus companheiros de espécie. Você seria capaz de suportar? Óbvio que não. Você desistiria. E por isso você não chega aos pés dessas pessoas. Você não duraria um dia em suas peles. Seu espírito foi mal-acostumado por tanto tempo pelos bens e serviços da modernidade que nada mais vê além disso. Ora, bem deveria chamá-los males e desserviços!
Continue em sua existência permeada pelos prazeres mundanos e continue mentindo que isso lhe levará ao céu! Continue a olhar para os lados e reconhecer os inimigos nos rostos errados. Infelizmente, o dia em que finalmente notar quem é seu verdadeiro inimigo será tarde demais.

Local onde vive: Porto Alegre RS

Sobre uma fofoca

Sabe a lógica de uma fofoca?
Pois ouvi falar de uma muito boa! Há dois mil anos houve um homem muito bom, muito à frente de seu tempo, que, por isso, impressionou todos os que viveram a seu lado.
Suas bravas histórias foram contadas através dos anos. Cada vez mais pessoas o idolatravam. Com o passar do tempo, a idolatria o transformou em mito.
Sabe aquele ditado: quem conta um conto aumenta um ponto?
Pois sim, de tanto que contaram a historia deste homem, pessoas começaram a aumentar suas façanhas. Foram acrescentados os detalhes mais sobrenaturais; inumanos; impensáveis. Entre eles estaria a capacidade de curar doenças a um toque, andar sobre a água, etc.
Como o tempo não para e a fama desse homem continuava seu aumento vertiginoso, a fofoca tinha que delinear melhor ainda os contornos sobrehumanos dele. Então aconteceu o mais incrível. Acrescentaram a maior façanha que suas mentes limitadas poderiam pensar: este homem não seria "um" filho de Deus, como o resto de nós, mas "o" filho de Deus.
Também não se trataria do filho de "um" Deus, como os antigos já se atreveram a contar em suas histórias. Mas o filho "do" Deus. Aquele Deus com letra maiúscula, que criou tudo e todos. Ele mesmo!
Imaginem que alguém teve a cara-de-pau de dizer que um dia "o" filho "do" Deus andou sobre a Terra, apenas porque não sabia explicar porque aquele homem tão virtuoso assim o era. Incrível a audácia, não?

Infinito

Como podemos tratar o infinito de maneira tão leviana? Como somos tão prepotentes a ponto de utilizar uma palavra cujo significado não compreendemos?
Sempre que tentamos representá-lo, o fazemos de maneira linear. A partir de nossa experiência. A partir da tentativa, inconcebivelmente errada, de quantificá-lo. Por isso, desde o mínimo espasmo de nossos seres somos incapazes de concebê-lo.
Nosso cérebro funciona através de interconexões: ligações de ideias e acontecimentos a fundamentos pré-concebidos a partir de nossa experiência. Assim criamos nossas impressões. Verbi gratia, sabemos que algo é doce a partir de comparação com o mel; algo é salgado a partir da comparação com o sal; azedo, com o limão, etc.
Assim, quando tentamos conceber a ideia do infinito, nosso cérebro funciona da mesma maneira: tentando qualificá-lo e quantificá-lo. Pegamos o valor máximo que conhecemos e o ligamos a essa ideia. Porém, mesmo nosso valor máximo, é limitado, pois concebido através de nosso conhecimento empírico, como nos foi ensinado por Locke e Hobbes.
Como podemos entender algo como infinitamente doce, se o máximo que conhecemos de doce é o mel? Então o mel é o infinito do doce? Não, é apenas nossa quantificação da doçura.
A partir de nosso conhecimento construímos nossas novas concepções no decurso de nossas vidas. Ex.: conhecemos uma mulher mais linda que todas as outras. Ela passa a ser nosso referencial de beleza, a ser substituída pela próxima, e assim por diante. Daí denota-se a linearidade de nossas ideias.
Por isso, somos molecularmente incapazes de entender a noção de infinito, multidimensional por natureza. Seria algo como se, no exemplo supra, ficássemos a vida toda a observar quadros de mulheres, uma mais linda que a anterior. Porém, isso seria apenas uma existência, em um universo, de uma pessoa.
Assim, não há como entendermos o infinito; o tudo; o nada; o impossível. Somos demasiadamente limitados para tanto. Estamos (e sempre estaremos) presos a nossas ridículas representações da realidade (que, não estranhamente, é uma representação da palavra latina res, que significa coisa).
Sejamos menos prepotentes e deixemos de fingir que entendemos tudo, quando, na verdade, entendemos uma parcela tão infinitesimalmente mínima.
ps.: quem notar a hipocrisia em cada pingo dos is e cada cruz dos ts me desculpe.

Dois metros

Era noite e chovia quando saí do hotel. Daquela chuva fraca, que paira no ar e gela a pele ao contato. A temperatura devia estar em torno dos 18º C.
Bueno, isso é circunstancial. Este texto é sobre uma cadela, que vive nas redondezas. Recebe comida dos vizinhos e por isso fixou moradia. É o animal mais arisco que já conheci. Desde que vim para cá, nunca permitiu contato a menos de dois metros de distância. A dona do hotel já me disse para alimentá-la, mas me recuso a usar deste ardil e francamente não creio que faria muito efeito.
A cusca vive com um companheiro, este não tão arredio. Costuma se deitar ao lado do portão e nem se mexe quando entro ou saio. Contenta-se a me olhar com cara de desconfiança. Nesta noite, por causa da chuva, ele havia entrado para se acomodar de baixo do toldo.
Na saída, percebendo que a fêmea estava ao léu, segurei o portão para deixá-la entrar, mas nada. Ficou parada a dois metros de mim, me olhando como se eu fosse um sociopata. Depois de alguns minutos sem muita ação, me afastei para que ela entrasse sem ter de abrir mão de sua distância de conforto. Nada. Dei de costas. Mais alguns minutos e nada. Ela continuava me olhando, e eu com cara de tacho.
Desisti e saí, batendo o portão. Depois de andar 10 metros, olhei para trás e ela estava pateando-o. Com o coração pesado, resolvi tentar de novo. Abri o portão e me afastei, dessa vez para fora. Alguns metros depois, olhei para trás e ela ainda estava me mirando. Dobrei a esquina e me pus a esperar. Sorrateiramente olhei pelo vinco e a vi no mesmo lugar e na mesma posição: estaqueada mirando em minha direção. Dei mais uns cinco minutos e nada. Finalmente desisti, fechei o portão e segui meu caminho. Em uma última olhadela, a vi novamente pateando-o.
Passei o resto da noite pensando como aquele animal havia se tornado tão desconfiado. O quão mal tratado deve ter sido para se colocar a uma distância intangível do ser humano.
Um dia depois, já me dei conta de que não estava a me esforçar para deixá-la entrar, mas para entendê-la, descobrir que havia possibilidade de flexibilizar sua barreira. Eu era quem estava a pedir para que me deixasse entrar. Que nada, ela preferiu passar a noite inteira na chuva do que ter sua liberdade condicionada.
Pergunto-me se tal evento efetivamente ocorreu, ou se a bicha foi uma metáfora da minha mente durante um evento de delirium tremens. Essa hipótese não deixa de ser engraçada.

AGORA comentários para o autor.