Se ela soubesse

Autor: Ricardo Ambros

Fui criado em uma família de classe média, sem ter que trabalhar desde criança, nem durante a adolescência, ou no início de minha vida adulta, que fosse. Quando criança, estudei em escolas particulares. Fui expulso algumas vezes por comportamentos comuns de jovem mimado. Aos trancos e barrancos, me formei do segundo grau e logo comecei uma faculdade particular qualquer. Nada na minha vida havia de extraordinário. Era apenas um adolescente e depois um jovem adulto que não teve que sujar suas mãos para conseguir algo. Naquela época não tinha ideia do que a vida guardava para mim e não estava muito interessado em descobrir.
Vivi minhas duas primeiras décadas sem precisar pensar no amanhã. Sabia que haveria um amanhã e que provavelmente ele seria um bom amanhã. Então não me interessava muito. Apenas vivia o presente, os dias. Carpe diem, como dizem.
Como não tinha nenhuma obrigação de ser um cidadão contribuinte para o bem da sociedade, passava meu tempo com bobagens. Bebedeiras, festas, carros, futebol. Esse tipo de coisa que quem não tem nada para fazer faz. É claro que as mulheres eram uma grande parte de minha vida. Durante meus pródigos anos, me envolvi em diversos casos. Nada de mais que me transformasse em um hedonista. Não era viciado em prazer, apenas o usufruía, assim como a maioria de minha geração.
Não era algo difícil arranjar alguém. Por mais feio que se seja, o poder das palavras é mágico. Acredito que cada homem pode ter a mulher que bem desejar, desde que saiba o conjunto, a ordem de palavras que o torne desejável perante os olhos de cada mulher. Eu não era bonito, mas não maltratava o olhar, então as noites passavam e eu conseguia alguma mulher de quando em quando.
Olhando para trás agora, vejo que é mentira dizer que não era nem um pouco hedonista, porque, desde que me lembro, estive correndo atrás de mulheres. Mas a partir de um momento, provavelmente durante meus 20 e poucos anos, passei a buscar nelas algo que não alcançava, que me era estranho, não sabia elaborar exatamente o que era. Nessa sina, me envolvia em fugazes paixões, cada uma delas por um tempo inconscientemente pré-determinado. Até que chegava o momento em que minhas paixões não mais me acrescentavam nada de novo. Era algo como um jogo de mais valia nas relações. O relacionamento estava bem até que seu custo benefício deixava de ser positivo. Isto é, a desproporção de dispensas na constituição da vantagem pessoal, de uma forma bem objetivista quid pro quo.
Quando me dava conta que me encontrava nessa situação, me desinteressava e passava para a próxima, e assim por diante, até que estava à beira dos 30 anos sem ninguém que eu quisesse conviver. Desde a adolescência havia sido assim. Paixão após paixão, mantinha-me conscientemente distante, aguardando que algo acontecesse, que alguém me desse um sinal; o sinal que me fizesse esquecer tudo o que sabia e fizesse com que eu me reconstruísse.
Tantos anos vivi no mesmo circulo vicioso que já estava me tornando incrédulo sobre conhecer alguém que me desse aquilo que nem eu sabia expressar o que era. Contribuía para minha crescente incredulidade o fato de que, a cada mulher que me envolvia, me tornava mais eficiente em decorar minhas falas, pedi-la uma dança, captar seus sinais, adaptar-me a seus padrões e descobrir as coisas que nela me interessavam, até o ponto em que deixavam de me interessar, sobrepujadas pela carga de coisas indesejáveis que as acompanhavam. Isso é uma coisa sobre as mulheres, vocês são tão dominadas por todo o paradigma de padrão de vida. Tipo, desde a infância, quando são a menininha do papai que brinca com as bonecas enquanto os garotos jogam futebol; passando pela adolescência, quando transam com 3 ou 4 rapazes e contam que sempre é a primeira vez. Para no futuro se tornar uma esposa fiel e amada com dois filhos, o primogênito um menino, seguido por uma menina. Eis minha grande frustração: notar que as pessoas mudam e a canção continua a mesma.
Nesse cenário repetitivo, não mais aguentar as relações era a conclusão à qual mais e mais rapidamente eu chegava. Afinal, eu também havia sido criado para lutar minhas batalhas, conquistar os inimigos em amor à princesa e ser coroado seu esposo, vivendo feliz para sempre. Alguma coisa assim, de qualquer maneira.
Minha coleção de relacionamentos despedaçados estava me levando a pensar mais e mais em uma incapacidade pessoal de passar de um certo ponto. A cada frustração, meu ímpeto diminuía, até perceber que a esperança de receber meu final feliz estava se esvaindo como areia entre meus dedos. Havia chegado a um ponto em que sinceramente já duvidava ser possível encontrar alguém daquele jeito que eu queria, que eu esperava, depois de tantas falsas promessas.
Durante esse período de escuridão, que durou alguns anos a mais do que o esperado, depois de muitas novas promessas quebradas, conheci alguém que julguei, à primeira vista, ser diferente. Não em um sonho, não etereamente, nem durante um delirium tremens, do tipo “ei, to vendo uma mina que me apaixonei, ah não, é uma gordinha palha”. Por alguns segundos, ela esteve em minha frente em uma festa. Não soube – e ainda não sei – explicar o porquê de forma racional, mas desde a primeira troca de olhares, algo dentro de mim ligou e a descrença evaporou.
Olhar dentro de seus olhos pretos em contraste plasmático com a brancura de sua pele tinha alguma coisa de sobrenatural. Aqueles olhos. Lembro vividamente da magia da troca de olhares. Era como se todos os outros olhos fossem vazios, mas não aqueles. Carregavam dentro deles uma promessa de primavera após um inverno rígido. Senti-me como um astrônomo que olha para o negro céu e vê uma radiante estrela pela primeira vez.
Enchi-me de esperança e a espiei pela festa. Por mais que seja uma atitude estranha, não conseguia pensar em nada mais que eu quisesse fazer. Só podia pensar em criar uma oportunidade de trocar algumas palavras com ela.
Ela me era uma completa estranha. Tão bonita, sensual e ingênua, tudo ao mesmo tempo: impecável. Bonita no sentido mais atual da ideia, com seu cabelo escuro pouco abaixo da linha dos ombros; sensual do melhor jeito possível, sem deixar de ser recatada, distante de ser chamativa, vestida de jeans e blusa preta, não com aqueles microvestidos embalados a vácuo. Pareceu-me a resposta perfeita, como se saída de um sonho.
Minutos depois a notei indo comprar cerveja e fui ao bar. Puxei conversa e ela me ignorou, como se soubesse o que eu esperava dessa conversa. Esse tipo de garota é bem complicado de conquistar. Elas, ou já passaram demasiadas vezes pelo mesmo dilema que eu para baixarem a guarda, ou ouviram histórias tristes dos desenganos de suas amigas e se dispuseram a não passar por isso. De qualquer forma, essa atitude aumentou meu interesse. A chance de estar com aquela garota ofuscava qualquer outro pensamento em meu cérebro.
Em uma segunda investida, mais cavalheiresca, a abordei e então recebi uma resposta vaga, mas suficiente para começar a galgar meu caminho, para onde fosse que me levaria. Engajamo-nos a conversar sobre tópicos comuns a quem quer se conhecer. Durante toda a conversa, como era meu costume, interpretei sua comunicação, sua linguagem corporal, mas não fui capaz de captar sinal algum. Talvez pela primeira vez em anos falhei em decifrar alguém.
Passei a noite inteira conversando com ela. Da uma da manhã as cinco – apenas conversando. Sobre nossos nomes, nossas faculdades, depois sobre a sociedade contemporânea, a sociedade moderna, uma breve incursão sobre a humanidade em geral. Mais nada. Mesmo assim, quanto mais conversávamos, mais vontade tinha de estar ali, naquele lugar e naquele momento, conversando com ela. Ao final da noite não tinha qualquer informação pessoal sua. Mas fui presenteado com um beijo e seu telefone. Depois de uma noite inteira, não consegui desvendar qualquer traço de sua subjetividade. Senti-me pateticamente saído do pior romance escrito nos últimos anos. Depois dessa desventura, naturalmente meu interesse aumentou.
Tornei-me intrigado. Ela não foi para minha casa, nem fomos comer algo depois. Consegui seu contato, mas não havia qualquer evolução que me levasse a crer em um possível relacionamento A semana posterior passou e não fiz praticamente nada, a não ser imaginar qual seria o passo correto a dar. Nunca estivera tão próximo de receber meu final feliz e tinha certeza que havia algo diferente nela. Sob essa pressão, escolher qual seria meu próximo passo me consumia.
Marcamos de ir no cinema assistir O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei. Foi um dia memorável. O modo como ela se portou era incompatível com qualquer coisa que já havia experimentado. Fingi que não lembrava bem da história e perguntava sobre uma ou outra personagem e ela sabia tudo sobre qualquer delas. Sabia até mais do que eu, que na juventude era aficionado pelas obras de Tolkien. Na semana seguinte fomos em uma festa e ela estava bem distante em frente das amigas. Obviamente, porque era nosso segundo encontro e eu estava imaginando que éramos namorados.
Ela estava com três amigas, que logo me apresentou. Notei que tinham diferentes personalidades, a morena, que parecia ser sua melhor amiga, era daquele estilo cult, com óculos e cabelo curto e desde logo notei que ela seria a mais difícil de agradar. As duas outras amigas eram loiras e tinham aquele estilo mainstream, com vestidos apertados, cabelos longos e quilos de maquiagem transformando seus lindos rostos em obras de arte.
Engajei em conversa com a morena. Contou-me que gostava de literatura e seu escritor predileto era Kafka, o que soou como música para meus ouvidos. Pensei que, de certa forma, foi uma pena eu não a ter conhecido antes de me apaixonar adolescentemente por sua melhor amiga. Conversamos sobre a obra de Kafka, sua vida, os problemas com seu pai, etc. e concluímos a conversa falando sobre a novela Na Colonia Penal, que eu havia a pouco lido. Contei-lhe o quanto o trabalho me fascinou e ela me prometeu lê-lo.
Quem diria, nem conhecer suas amigas era uma tarefa chata. Depois da morena, passei a conversar com as loiras. Como de costume em seu mundo, elas adoravam falar de si, reclamar da fila do cabeleireiro, do preço da manicure. Esse tipo de coisa. Então tudo o que precisei fazer foi me por a ouvir e de quando em quando fazer uma interjeição, geralmente um elogio para que elas em não muito tempo estivessem me considerando um grande amigo.
Terminando minha rodada entre as amigas, me impressionei que já havia se passado quase a metade da noite e eu havia dado atenção para meus amigos e as amigas dela, quase a ignorando. Então, quando pude lhe dar atenção, ela agiu como se eu tivesse a ignorado por opção e reclamou que queria ir embora. Isso me deixou abalado, ora porque não era um comportamento lógico. Só podia ser porque ela estava com ciúmes. Pensar que aquela obra-prima pudesse estar com ciúmes de mim era extasiador. Sem me dar conta, minha noite saiu melhor do que o esperado. Conquistei suas amigas e ainda a deixei toda enciumada, querendo que eu estivesse com ela, não com aquelas outras.
Não demorou até que fôssemos embora, cada um em seu carro. No outro dia, recebi uma mensagem sua dizendo que havia agido como uma mala na noite passada porque sua sandália a estava incomodando. Só isso. Ela não me disse que me amava, nem que gostava de mim de qualquer forma, mas Ela teve a consideração de se explicar para mim. Mesmo que eu soubesse que sua explicação era mentira, porque sabia que ela estava era com ciúmes. Quantas camadas ela ainda teria?.
A partir daquela semana começamos a nos ver mais seguidamente. Acompanhava-a até a faculdade, tomávamos um café no meio da tarde, ou algo assim. Estava me apoderando da ideia de ser seu namorado e ela não parecia estar respondendo negativamente. Olhando para trás agora, noto que ela não estava respondendo nada, que seu comportamento não indicava que sim, nem que não, mas que estava equidistante entre os dois. Isso para mim, naquele momento, era como uma grande vitória, porque me dava a promessa de que eu teria mais dias com ela.
Passado um mês de nosso primeiro encontro, a pedi em namoro e ela consentiu. Essa é a palavra: consentiu. Porque ela ainda não havia me recebido como seu namorado, apenas aceitava que eu me considerasse como tanto. Oficialmente estávamos juntos, mas ainda não sabia nada sobre ela. A começar sobre seus pais, por exemplo, assim como ela não sabia nada sobre os meus. Eu não tocara no assunto, porque me parecia um tema que as garotas deveriam começar e eu não queria parecer uma, mas a inação dela era agonizante. Paulatinamente, minhas barreiras estavam caindo e ela continuava um enigma. Minha magnum opus estava para exposição, mas para mim parecia que não havia sequer sido pintada.
Tudo que fazíamos era conversar sobre coisas objetivas, normalmente interessantes, mas nada relacionadas a nós. Ela tinha conhecimento sobre as mais variadas áreas. Discutíamos sobre pensadores, bêbados famosos, escritores, músicos, etc. Dividia minhas opiniões com ela e em resposta geralmente recebia colocações e interpretações analíticas e concretas. Desde o primeiro olhar que dividimos, ela me conquistou fisicamente e com o passar das semanas havia me conquistado intelectualmente. Porém, nesse primeiro mês, nem uma vez sequer entramos na seara pessoal. Desconhecia seu passado, ex-namorados, amantes, casos.
Com o começo de nosso namoro, nos colocamos em uma nova posição. Enquanto se está ficando com uma pessoa, o normal é encontra-la em alguma festa no final de semana e durante o resto da semana ignorar sua existência. Mas quando se está namorando, a mesma sociedade que esperava aquele comportamento repugnante dos ficantes, esperava que nós reconhecêssemos um ao outro como namorados durante a totalidade da semana.
Isso me dava a oportunidade de forçar um aumento no tempo que passávamos juntos e foi o que fiz. Passamos a nos ver pelo menos de dois em dois dias e nos finais de semana. Durante os dias úteis, como Ela era estudiosa, íamos ao cinema, ou tomar um café no meio da tarde, seguido por um passeio no centro e acompanharmo-nos até a faculdade, quando ganhava um beijo e a desejava boa aula.
Nos finais de semana, geralmente buscávamos seu cão e passeávamos em algum parque até o entardecer. Antes, eu nunca havia tido o costume de passear em parque. Eu vivia em casa e só saia o mínimo necessário. Meu tempo era destinado ao computador. calculando a mais-valia, enquanto em casa eu podia estar conversando com todo mundo, em um parque eu teria que ficar andando de um lado para o outro.
Mas com Ela era diferente. Andar com minhas mãos atadas às dela, jogar algo para o cachorro pegar, deitar na grama. Era tudo pateticamente novo. Sentia como se cada uma dessas coisas pudesse dominar grande parte de minha vida, e não me incomodaria de maneira alguma. A melhor parte era assistir o pôr-do-sol com Ela deitada em meu peito. O sol entrando na Terra entre nossas pernas, acontecendo perante meus olhos. Sentia que a vida estava acontecendo, realmente o tempo estava passando e meus pores-do-sol diminuindo. Claro que eu sabia que isso era uma coisa normal, afinal é assim que a vida é. Desde criança sabemos isso. Mas naqueles momentos eu realmente sentia tudo isso acontecendo, não apenas sabia que acontecia, mas me reconhecia como uma parte daquilo. Parece que tem uma palavra que fala mais ou menos isso: sinergia. Deve ser mais ou menos assim.
Com o cair da noite, íamos para a casa dela prender o cão e jantar. Eu ficava na sala com seu pai assistindo alguma coisa na televisão e falando sobre qualquer assunto, enquanto Ela ia se arrumar para a festa que iríamos logo depois. Quando o jantar estava pronto, Ela descia as escadas pronta para a festa. Perguntava-me se estava bem e eu só conseguia pensar que “bem” não começaria a resumir como ela estava.
Depois da janta, passávamos em minha casa para eu jogar uma água no corpo e colocar uma camiseta qualquer. Enquanto eu fazia isso, Ela ficava conversando com meus pais e é óbvio que eles também estavam apaixonados por ela. Quando eu terminava de me arrumar, trocava uma palavra com meus pais e a levava para a festa que meus amigos fossem. Eis outra coisa bastante sinérgica deste início de relacionamento, as amigas dela e meus amigos se deram bem e podíamos juntá-los sem irritar a nenhum dos lados. Até outro casal se formou, quer dizer, um de meus amigos estava ficando com uma das loiras amiga dela.
A festa em si era a parte do final de semana que eu menos aproveitava, porque tínhamos que dar atenção para um monte de gente e não conseguia passar muito tempo só com Ela. Mas ter as mãos dela junto às minhas era meu prêmio de consolação. Ao final, como ela vinha de carona comigo, eu a levava para sua casa, ou às vezes ela dormia na minha. Esses finais de noite eram os melhores, porque me davam a oportunidade de vê-la acordando com cara de ressaca e dar-lhe um beijo bafento.
Meses depois, consumamos a relação. Em uma noite que envolveu jantar romântico, comédia romântica, esses blá daqui, blá de lá que cumprem a função de extensores penianos. Pouco antes daquele amanhecer, finalmente entendi por que as outras haviam sido apenas outras; por que até então me havia sido impossível passar de uma precisa linha, tão invisível quanto intangível.
Seu toque suave, o calor de seu corpo nu, nosso entendimento corporal e o absurdo prazer, que restou encravado na memória, como um momento suspenso no tempo. Tudo calculado até a enésima vírgula para me fazer esquecer tudo que havia aprendido de todas as outras. Eram tantas variáveis envolvidas naquele éden carnal que nem me atrevi a começar a elaborá-las. Estava despido de razão, completamente apaixonado.
Não consigo descrever o quanto apreciei. Tento, mas as palavras parecem insuscetíveis de carregar o peso da ocasião. Gastei várias folhas jogadas fora tentando. Senti-me como Platão, quando falava de seu mundo ideal. Antes daquela noite, eu conhecia o sexo, já havia feito diversas vezes. Mas aquilo não foi sexo, foi muito mais do que a palavra sexo poderia carregar. Aquilo foi a realização de uma ideia. Recriei-me em um momento: meu mais sagrado arquétipo, até então existente apenas em meu mundo anímico, estava em minha frente. E era meu. Agora e para sempre.
Olhando-a post coitum, era como se uma transformação tivesse ocorrido. Em minha frente não havia uma mulher, mas algo mais. A definição que chega mais perto do que estava diante de meus olhos é a de uma rainha. Parafraseando Henry Miller, em poucos segundos havia me tornado venerador. Pensar que ela era minha, que aceitaria a vida que eu pudesse lhe dar me fez – pela primeira vez na vida – regurgitar de felicidade. Decidi que trata-la com todos os mimos seria minha mais sagrada função dali em diante.
Teria eu enganado as pessoas durante o passar dos anos com minha seleção de máscaras? Parecia-me tão distante o tempo em que as mulheres passavam pela minha vida, uma depois da outra, como em uma procissão. Estranho quando vemos a falsidade da verdade que nos contamos por tanto tempo e que com sucesso enganamo-nos tão bem que acabamos enredados em nossa própria teia. A catarse é como uma viagem intertemporal revisitando, ato por ato, a fragilidade daquilo sobre o que construímos nossas defesas; o conhecimento de que a verdade esteve sempre ali, em estado latente, apenas aguardando o momento certo para se mostrar.
O sexo pode ter durado minutos, mas então aprendi a valorizar o poder de um abraço. Durante mais tempo do que transamos, eu permaneci agarrado nela, completamente entregue e aberto. Minhas defesas jaziam todas no chão, inutilizadas.
Quando ela reclamou de meu peso, rolei para o lado. Não para o outro lado; não tinha como ficar virado para o outro lado. Fiquei oitavado, olhando-a com incredulidade. Considerando que esta havia sido recém a primeira vez, sorri em perspectiva.
Tanto tempo devo ter ficado em meu nirvana que ela virou de costas, ato seguido por eu me agarrar a ela como uma mochila. Estranhamente, lágrimas saíram de meus olhos. Assustei-me com a possibilidade de ela notar meu estado, porque não teria a mínima ideia do que fazer então. Por isso fingi ter adormecido.
Ensimesmado, concluí que não mais buscaria outra pessoa, pois finalmente encontrara aquilo que havia passado os últimos dez anos buscando. Não a deixaria se livrar de mim. Ela não haveria de querer; seria perfeito para ela, assim como ela era para mim. Dessa vez não calcularia cada movimento, não analisaria suas feições, suas reações para a elas me moldar. Não a observaria enquanto assistíamos a um filme com o fim de conhecê-la. Não olharia em seus olhos enquanto lia uma declaração de amor para saber se ela havia gostado, e o quanto, ou se havia achado exagerada.
Poderia finalmente assistir ao filme em paz. Poderia olhar em seus olhos apenas porque gostava de fazê-lo. Sem motivos escusos. Sem aspirar mostrar-me desejável.
Havia finalmente entendido as ambições humano-familiares. Uma casa no campo, filhos e filhas brincando na volta. Observá-los-ia com o coração cheio de amor. Trabalharia em qualquer lugar, não me importando com o quão entediante seria. Pois teria ela e eles a me esperar no final do dia. E assim seria, até que eles cresceriam, fariam vestibular, entrariam em uma boa faculdade, enquanto nós envelheceríamos, incrédulos como o último ano havia passado mais rápido que o anterior, que, por sua vez, havia passado demasiado rápido.
Viver minha nova vida desse jeito era meu desejo, minha obsessão. Todo o passado haveria de ser apagado, meus vícios, minhas falhas. Estava em frente a um novo eu, que tinha como prioridade fazê-la feliz. E eu faria tudo o quanto estivesse ao meu alcance para que meu sonho se tornasse realidade.
Não demorou muito tempo para me afastar de meus amigos, me tornar indolente com a faculdade. Isso era perfeitamente compreensível, porque a partir de então, minha vida tinha um novo foco, uma nova trajetória que eu estava disposto a seguir à risca. Cada vez que fazíamos amor era como se todo o resto não importasse de nada. Vivia em meu nirvana, dia após dia. E assim seria.
O tempo estava passando e nenhum “porém” havia se apresentado. Mas não é assim que funciona, bem sabemos que na vida real não existe felizes para sempre. Pelo que entendo, é da natureza humana evoluir, conquistar, desbravar o mundo, não se acomodar e aguardar a lenta marcha da vida e da morte. Antigamente os exploradores europeus dominaram tudo o que havia a sua volta e, não satisfeitos, partiram para novas aventuras em alto mar para conquistar o que hoje é a América. Quando os imperadores anexavam uma nova província a seu império não pensavam em viver felizes para sempre com aquela província, pensavam em conquistar novas e novas áreas e explorá-las.
É algo da natureza humana, estamos em constante mudança. Durante o primeiro ano de namoro, vivi a felicidade da maneira que melhor pude, mas não demoraria para sempre para que essa felicidade não mais me satisfizesse como um dia fizera. E nem a ela. O que comecei a experimentar se enquadra com perturbadora perfeição àquele velho clichê de que a grama do vizinho é sempre mais verde. Pois bem, minha grama era o mais verde que poderia ser. De início.
Com o passar do tempo, a ideia de ter um filho e uma filha, me casar, ter uma casa no campo para passar os finais de semana depois do trabalho exaustivo, deixou de ser tão calorosa quanto parecia. Quando estamos vivendo o auge da felicidade, não nos damos conta disso, assim como quando perdemos algo notamos o quanto nos faz falta.
É um processo perturbador. Tudo aquilo que tínhamos passou a ser corriqueiro, nossas tardes passaram a ser monótonas, somente vendo filmes. Nossos tópicos de conversa estavam definhando. Depois de um tempo apenas nos dávamos beijos na boca. Sem nem mesmo usar a língua. Claro que o sexo continuava maravilhoso, mas o resto estava se decompondo ao meu redor. E o pior é que essa decomposição estava ocorrendo de dentro para fora. Várias vezes me pegava sonhando coisas diferentes daquelas que anteriormente eram meus desejos.
Eu nunca pude entender completamente o que passava na cabeça dela, mas imagino que seu sentimento fosse similar ao meu. Talvez não fosse proporcional, mas a natureza era a mesma e também temia que ela estivesse experimentando essas mudanças.
No começo do segundo ano de namoro, as brigas começaram. Lembro delas melhor que gostaria. Inicialmente, digo, no primeiro ano, eu fui bastante sufocador com toda minha paixão e meus planos, admito. Tinha ciúmes de várias coisas e era até mesmo paranoico, checando nela de hora em hora. É claro que isso eventualmente ia encher o saco. Mas acho que com o progresso do relacionamento, minha confiança se estabeleceu e deixei de incomodá-la tanto.
Foi então que ela começou a me incomodar. Pelos mesmos motivos que eu a incomodava. Nunca antes havia me posto nesse lugar, mas é bastante chato ser checado de hora em hora. Marcar ponto antes da faculdade, depois da faculdade. Um semestre até mesmo inventei que minhas aulas terminavam uma hora depois para ter um pouco de sossego. E digo que esse tempo desprovido de qualquer coisa para fazer me fazia bastante bem. Dava-me a oportunidade de jogar algo no computador, coisa que eu não fazia há muito.
As mudanças que estavam ocorrendo em nosso relacionamento, e principalmente dentro de minha cabeça eram profundas e inesperadas. Depois de um tempo já estava questionando minha felicidade e apreciando a grama do vizinho. Acho que é isso que ocorre com a maioria dos relacionamentos. O que era magnífico se torna rotineiro e chega até mesmo a perder a graça.
Como ia dizendo, no segundo ano de namoro nosso relacionamento consistia em assistir filmes e passar o tempo bebendo. Não que isso não fosse bom, acreditem, olhando para trás agora, daria o que fosse para voltar àquela época. Mas é assim que são as coisas, só notamos o quanto as adoramos depois que elas passam.
Então acabamos. Com dois anos e três meses de namoro. A grama do vizinho havia se tornado verde demais. A quantidade de mulheres à volta era um grande atrativo e o instinto primordial misógino tomou conta de mim.
Reatei relações com meus amigos, participei de festas, até mesmo tive outras paixões. Sem notar, havia voltado ao que era antes. Tudo bem, pensava, essa era minha natureza, e me deixei levar. Esse período foi curto, bastante curto.
A cada semana que passava longe dela a saudade aumentava. A ideia de que ela poderia estar pela cidade fazendo o mesmo que eu me consumia. Eis outro instinto masculino que não me orgulho nada de admitir: a posse. Naquele momento não queria estar com ela, mas não suportava a ideia de que ela estivesse com outro.
Foi então que o inevitável aconteceu. Demorou um pouco, considerando que vivíamos na mesma cidade e frequentávamos os mesmos grupos sociais, mas a vi com outro. Confrontado com a situação, notei que a ideia de vê-la com alguém não fazia jus à realidade de vê-la com outro. Afinal, era ela, a minha única e verdadeira, a mulher da minha vida. Aquela que sonhei me casar e ter filhos. Não podia suportar a catarse que estava se passando e reagi de maneira extremamente pueril. Parti para cima do rapaz que a acompanhava e tive que ser segurado para não desfigura-lo. Fui expulso do bar e quase apanhei de seus amigos, o que não aconteceu apenas porque estava com meus amigos ao meu lado.
Mas não importava o fato de eu não ter apanhado, o que importava é que eu havia ferido um rapaz não muito diferente de mim. Ele não estava fazendo mal a ninguém, estava apenas tentando buscar a mesma coisa que eu busquei há alguns anos. Provavelmente ele também a tenha visto como a mulher única que era e havia sonhado uma vida a seu lado. E o que ele recebeu com isso foi uma surra de um retardado ciumento.
Quem eu queria desfigurar não era ele, mas eu mesmo. Quando a vi de forma tão íntima com outra pessoa, odiei a mim mesmo por tê-la deixado. E é claro que ela não gostou nem um pouco de minha atitude. Ora uma briga por causa dela. Coloquei-a numa posição de extrema baixeza; aviltei sua impecável personalidade. O dano que causei a mim, ao rapaz e a ela naquela noite é algo que não me atrevo a formular, mas nunca havia me sentido tão repugnante como na manhã posterior. Tudo o que queria era sumir do mundo, apagar os traços de minha existência e desaparecer.
No Direito estudamos o perdão judicial, que ocorre no homicídio culposo, quando, por exemplo, um pai esquece o filho dentro do carro e ele falece por asfixia. Esse pai não é preso, porque o dano que ele sofreu por sua própria atitude é tão sobrepujante que a penalização estatal se torna desnecessária. Nos dias que se passaram ao incidente eu me sentia nessa situação. Recebia olhares recheados de desprezo de quando em quando e baixava a cabeça, porque sabia que aqueles olhares haviam sido construídos por mim mesmo.
Nos dias, semanas e meses que sucederam o ocorrido, entrei em uma decadência patológica. Não sentia vontade de fazer qualquer coisa que fosse. Horas e horas corriam sem eu nem mesmo levantar da cama. Não parecia haver motivo que justificasse meu gasto de energia para ficar de pé, ou sentado, que fosse.
Quando finalmente levantava da cama, geralmente porque estava com fome, passava o resto do tempo sentado, com o computador na frente, ou olhando o dia a dia da população do centro de Porto Alegre pela minha janela. E de lá de volta para a cama. Não sei dizer o exato tempo que esse período durou.
O problema de ter como passatempo assistir a vida dos outros é que, eventualmente, se fica sem pessoas para assistir. Com o cair da noite, o número de transeuntes vai paulatinamente diminuindo e, enquanto isso, o silêncio deixava de ser quieto e começava a gritar em meus ouvidos. Muitas eram as palavras, mas depois de um tempo se nota um padrão para a gritaria e notava grande repetição na palavra PERDEDOR.
O PERDEDOR estava geralmente lá. Jogando-me na cara tudo o que eu deveria estar fazendo, tudo o que eu já deveria ter feito. E nada disso eu havia feito, a lugar nenhuma havia chegado, estava parado no mesmo lugar que estive durante toda minha vida. Até que não havia mais ninguém em vista, além da pessoa que eu deveria ter sido, me olhando com um misto de pena e ódio nos olhos.
Mas na verdade eu sentia tudo isso e não fazia nada para mudar porque, afinal de contas, a pessoa tem direito a tirar uns dias para si de vez em quando. Esses eram meus dias para mim. Mas esses dias não desejo para ninguém. Preferia estar tirando férias na praia como a maioria das pessoas que tiram uns dias para si.
Depois dessa quantidade desconhecida de tempo de autoflagelo, notei o quanto ela era a raiz de tudo que eu estava sentindo e não poderia deixá-la para lá por que não conseguiria viver outro dia do mesmo jeito que o anterior. O simples fato de ser seu namorado recheava minha vida e agora eu estava vazio e depois de meu fiasco não me atrevia a tentar qualquer tipo de contato com Ela. Com certeza ainda tinha um monte de coisas que me eram caras, como meus amigos e minha família, mas a falta que ela fazia era demais para suportar. A ideia de nunca mais ser seu namorado foi crescendo dentro de mim a ponto de se tornar insuportável. Cheguei até mesmo a recorrer ao suicídio. Não tentei propriamente, mas contemplei a ideia. Parecia simples. Não mais dor, não mais sofrimento, não mais saudade. Simplesmente terminar tudo e depois fosse o que fosse. Se tivesse que ir para o inferno, como os católicos creem, seria uma próxima jornada e se eu simplesmente deixasse de existir como os ateus acreditam, era bem melhor do que existir daquela forma.
Por algum milagre, depois de meses de miséria, vergonha e sofrimento, ela entrou em contato comigo. Marcamos de tomar um café. Eu já não era a mesma pessoa que ela havia namorado. Estava uma anarquia. Não me importava com a aparência, nem banho tomava por dias. Estava consideravelmente mais magro, com o cabelo muito longo que já não mais se ajeitava, não fazia a barba. Parecia um náufrago – palavras dela.
Acho que Ela sentiu pena de me ver assim e resolvemos dar uma nova chance ao relacionamento. Na verdade Ela resolveu me dar mais uma chance, por que eu já não tinha poder de barganha algum em minhas mãos. Estava despido de qualquer coisa de atraente que fosse.
Reatamos e foi a melhor coisa que podia ter acontecido comigo. Dois anos juntos novamente e a sinergia estava de volta, a paixão, o amor, a veneração. Quando a conheci, apesar de considera-la perfeita, não a conhecia, mas depois de tanto tempo passado, podia dizer que a conhecia e ela parecia mais perfeita ainda – não que a perfeição fosse algo mensurável. Claro que tinha suas falhas, todos temos, mas nada que descreditasse sua magia sobre mim. Amei-a, mas dessa vez sem exagerar. Soube me conter e levamos uma vida agradável. Aprendi a dar valor a vários momentos, até mesmo aos entediantes. Com Ela ao meu lado, me sentia completo de novo. E dessa vez nada haveria de estragar meu feliz para sempre.
Já havia caído uma vez na ilusão de uma grama mais verde, mas não cairia de novo. Aprendi que a minha grama é o mais verde que pode ser. Após nossa volta, eu era melhor do que jamais havia sido. Aprendi a pesar os prós e os contras de cada situação, não só romanticamente, mas em relação a meus amigos, meus familiares, minha vida profissional. Não mais era um acadêmico, agora estava formado e com uma pós graduação a caminho. Minha visão era panorâmica e o céu era o limite.
Havia me aperfeiçoado. Tendo ela do meu lado, tinha um futuro promissor e já estava pronto para pedi-la em casamento. Sabia que não havia nada melhor para mim, nem para ninguém. Estava com a mulher que venerava. Planejava, mais uma vez, estar com ela pelo resto de minha vida. Voltei a sonhar com filhos, uma casa, uma vida em conjunto. Só podia pensar o quão perfeita minha vida era com ela e o quanto eu não queria que nada mudasse.
Eu que sempre havia sido contrário aos paradigmas, ao status quo e todas as coisas que vêm com ele, finalmente entendia porque tantas pessoas ao redor do mundo o buscam. Dessa vez sem crise de pós-adolescência, sem meios termos. Estava disposto a mergulhar de cabeça em nosso relacionamento, viver a unidade de cada dia, um após o outro, até que a morte nos separasse.
Seria melhor que a história terminasse aqui. Foi assim que eu sonhei ela. De todas as coisas que contei, a maioria foi exagerada, porque é assim que as lembranças dela rodam em minha cabeça. Desde o primeiro momento que estive com ela, realmente vivi minha vida à totalidade e com todas minhas forças e tudo que sonhava era continuar nossa dança. E por ter me dado a chance de viver de forma tão intensa um período considerável de minha vida, sou eternamente agradecido a ela.
Mas hoje vejo o quanto tudo o que romantizei é bobo, porque, obviamente, ela se mostrou diferente do que eu imaginava. Ou talvez fui eu quem se tornou diferente do que deveria ter sido. A lembrança é vaga e não consigo descobrir o motivo que começou a destruir nossa relação. Se bem que, partindo do ponto de vista de que a relação é uma longa corrente de escolhas de ambas as partes envolvidas, é impossível descrever o primeiro culpado. Impossível descobrir só um culpado. Existirão vários culpados por escolhas erradas. Eu posso ser o culpado por tê-la sufocado, por ter feito um juízo tão perfeito dela que fez impossível que ela vivesse nesse patamar, nessa pressão por ser perfeita. Porque ela era apenas uma pessoa, não um arquétipo que agiria da forma que eu esperava pelo resto de minha vida. Talvez a culpa seja do destino, porque demos tão certo logo de primeira que se tornou impossível manter o mesmo nível de vida, de amor, de todas as coisas que tornavam nossa vida perfeita.
Cerca de três anos se passaram até as brigas recomeçarem. Sobre isso, sobre aquilo. Às vezes nem sabíamos porque estávamos brigando, apenas estávamos e alguma força nos levava até o fim da briga para ao fim nos desgostarmos com os espólios, com o que dissemos. Perdi a conta de quantas vezes prometemo-nos que não mais brigaríamos sem motivo. Mas sempre havia um motivo novo, que no momento parecia ter força para mover montanhas, mas após a discussão, nem sabíamos o que era.
Entramos nesse círculo vicioso de brigas inúteis e comecei a me irritar com ela. Afinal de contas, havia dado tudo de minha vida para ela nos últimos anos, a havia venerado e sonhado passar todos meus dias ao seu lado, mas mesmo assim, ainda tinha que fazer um monte de coisas.
Eu sou bom com palavras, elas são tudo o que tenho, mas quando há necessidade de agir, bom, aí é a área de outras pessoas. Tudo o que se possa pensar em fazer existe alguém que faça profissionalmente. Então, que seja, eu penso e falo, eis o que faço. Mas mesmo depois de todas as palavras de amor que dirigi a ela, todas as escolhas que fiz apenas para ficar ao seu lado, as coisas estavam piorando e o final feliz estava parecendo não tão feliz assim.
Veja minha sina, fiquei procurando pelo meu final feliz durante meus 30 primeiros anos de minha vida e então o encontrei. E depois disso, tive que viver todos os dias com ele. Alguma coisa está errada aí. Quando se consegue o final feliz, a moral é morrer feliz, não viver 30 anos na mesma situação, os mesmos dias, as mesmas noites e as mesmas brigas.
Dessa vez já estava me perguntando o quanto valia a pena manter a relação que havia planejado para minha vida. Isso é esquisito. Porque quando está-se a buscar algo, se romantiza isso de maneira que parece ser o maior objetivo do mundo e que, uma vez alcançado, tudo ficará bem para sempre. Do outro lado, quando efetivamente acontece aquele final tão esperado, se fica trancado, preso a ele. Por anos e anos. Preso no mesmo sonho. Só que aquilo que era sonho passou a ser sua vida. E parou. E desde então não aconteceu mais nada a não ser esperar entrar em uma decadente, atingir os 40 anos, os 50 anos e, sem nem se dar conta, a vida passou e todo mundo morreu e eu não terei feito nada a não ser viver o mesmo dia durante 30 ou 40 anos. Prestigiando minha decadência, a decadência dela e a chama lenta e constantemente queimar.
Eis o problema de até mesmo teorizar um final feliz. Se a pessoa o alcança, então deu, seu propósito acabou, é hora de morrer. Mas quando a pessoa não morre, aquele final, que se transformou em meio, meio de viver a vida, se torna sufocante, pavoroso. Até o momento em que não se aguenta mais o passar do mesmo dia.
Mais ou menos isso passou na minha cabeça, além, é claro, das brigas que nos engajávamos diariamente, sobre os assuntos mais infantis. Cheguei a um ponto que não consegui mais suportar viver aquela vida. E então nos separamos novamente. Dessa vez para sempre. Dessa vez não havia para quem voltar. Não havia final feliz a buscar, porque vivi meu final feliz e sobrevivi a ele.
Vivi anos ao lado da melhor pessoa do mundo para mim, então sabia que não adiantava buscar algo na vida amorosa. Porque se a vida amorosa com aquela pessoa havia se tornado insuportável, nem conseguia imaginar como seria viver ao lado de outra pessoa. No trabalho não tinha muitas expectativas. Trabalhava em um escritório que nem tantos outros e não havia uma promoção a ser buscada. Ganhava suficiente dinheiro para continuar a viver e nunca fui do tipo de pessoa que queria ganhar muito para gastar com televisão, computador, celular, roupas, casas, etc. Simplesmente não sou esse tipo de pessoa. Então, com o trabalho de merda que eu tinha, podia me manter vivo e minimamente apresentável pelo resto dos meus dias.
Haviam também as pessoas que eram caras para mim. Minha família. Nós latinos temos uma relação bem próxima com a família, inclusive tias, tios e primos. Eu gostava muito de minha família. Por eles valia a pena viver.
Quando meu relacionamento desmoronou e eu fiquei sem nada ao meu lado, passei a contemplar o suicídio novamente. Mas dessa vez me pareceu algo insuportavelmente egoísta. Já podia me considerar um adulto e sabia que se eu tomasse minha própria vida, isso devastaria muitas pessoas. E eu não queria fazê-las passar por isso.
Vivi minha vida, os primeiros 30 e poucos anos dela, com um propósito. Agora esse propósito não mais existia. Aparentemente, não tinha muitos motivos para desperdiçar meu tempo vivo. Simplesmente não havia o que me interessasse fazer. Não havia amanhã a esperar, apenas o longo passar de cada dia, de novo e de novo, esperando o sono tomar conta para recomeçar o mesmo circulo vicioso.
Esse era a minha cruz. Mas desistir dela não era justo para com as pessoas ao meu redor. Seria uma saída muito fácil, mas era egoísta demais passar minha pena justamente para as pessoas que mais gostam de mim. Então assim continuei e seguirei. Suportando o passar dos dias e das noite vazias. Sem buscar nada de especial.
Esse é meu mundo hoje. Não tenho esperança de que algo aconteça que mude minha vida. Meu estoque de segundas chances já foi gasto há muito. Não fiz nada com as oportunidades que me foram dadas e só por causa disso me encontro na presente situação Mas não desistirei. Essa é minha promessa para mim mesmo. A única que não descumprirei.
Não importe o quanto cada dia dure, o quanto cada manhã seja difícil levantar. Continuarei seguindo meu caminho, tentando diminuir ao máximo o dano colateral de uma existência patológica, como é a minha. Não entregar-me-ei para a desistência. Porque na verdade já desisti. E aprendi a viver com a desistência, com a falta de rumo. Sobreviverei a tudo. Ou melhor, me manterei sobrevivendo.
Dá-se até para dizer que aprendi um novo modo de vida. Um tipo de gira mundo sem passear pelo mundo. Sou meu tipo especial de pessoa. Sem esperanças, sem promessas, sem coração partido. Desligado de tudo isso. Desconectado do que faz as pessoas acreditarem que haverá algo de bom no futuro. Aprendi que não há algo de bom me esperando. Há apenas a procura desse algo. Depois que se alcança e isso se torna sua vida, é privado da magia que o envolvia e, mais cedo ou mais tarde, se torna deprimente ver tudo aquilo que se imaginou se esvaindo entre os dedos do passar do tempo.

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OPINIÃO (Site do Escritor): O texto é muito bom. Muito detalhado, o que na minha opinião é uma grande qualidade, mas que torna o texto cansativo também. Como novela, penso que deixa muito a desejar no sentido de tramas e conflitos diversos que se convergem uns para os outros. Esta multiplicidade é fundamental para uma novela. Aqui temos um texto na primeira pessoa, totalmente introspectivo. Há um personagem principal e uma variedade imensa de figurantes; até mesmo a pessoa amada é figurante. Isto não é bom para uma novela. Não é regra, mas a novela fica bem melhor escrita em terceira pessoa, ou com a troca constante do personagem da primeira pessoa. Creio que este texto funcione melhor para um filme do que para uma novela. Assim mesmo, fica com uma série de perguntas sem respostas, sinto necessidade de saber o ponto de vista dela, é um texto que me lembra muito Dom Casmurro de Machado de Assis. Concluo indicando a leitura de mais textos relacionados à novelas, para se interar mais quanto ao estilo desta ramificação literária.


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