As Mulheres em Chico ou As mulheres do Chico?

Autor: Isabel F. R. Labriola - São Paulo SP

Contato: bellabriola@uol.com.br

           "Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
           Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar 
           E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar 
           E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar 
           Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar 
           Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar 
           Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar 
           E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar 
           E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou 
           E foi tanta felicidade que toda a cidade enfim se iluminou 
           E foram tantos beijos loucos 
           Tantos gritos roucos como não se ouvia mais 
           Que o mundo compreendeu 
           E o dia amanheceu 
           Em paz." 
           (VALSINHA - Vinicius de Moraes - Chico Buarque 1970) 
           

É da preciosidade dos encontros e desencontros homem-mulher, presentes na obra musical de Chico Buarque de Holanda, que pretende se ocupar a minha fala. Mais precisamente, dos deslocamentos possíveis do feminino e do masculino presentes em nossa cultura, e na obra de Chico Buarque, que resultam em formas variadas e determinadas do vir a ser "mulher". Então, e já esclarecendo o título, pretendo localizar sim as mulheres na obra do Chico mas quero também ousar afirmar que ele constrói as possibilidades de emergência de um certo tipo de mulher, que eu chamaria de "as mulheres do Chico".

Que me perdoe o Chico e as suas verdadeiras mulheres mas vou lidar aqui com a subjetividade de amores públicos e confessos de uma legião de fãs fiéis que mantêm projetado nele um romance transformador, e do qual já assumo fazer parte. Quero inclusive sugerir que de alguma forma, nós todas, mulheres aqui presentes, interessadas nos símbolos da cultura brasileira, somos ou podemos ser "mulheres do Chico". De um Chico - figura coletiva de homem capaz de despertar uma nova consciência feminina, arquétipo de um masculino - herói cultural ou figura de um ânimus criativo, intérprete do amor e de Eros.
A razão desta fala se prende às minhas hipóteses, enquanto analista e mulher, de que a individuação das mulheres depende da conquista de uma equação criativa: um novo e singular encontro entre masculino e feminino, que ultrapassem as disposições tradicionais presentes na nossa cultura. E de que figuras míticas de ânimus, como a do Chico, estimulam eróticamente essa possibilidade de encontro. Assim, pretendo também compartilhar de algumas reflexões sobre as mulheres que somos ou podemos ser ou em que retratos do masculino e do feminino nos espelhamos.
"Oh pedaço de mim, Oh metade amputada de mim, Leva o vulto teu, Que a saudade dói machucada..." .
Na poesia desta música parece estar o protótipo e a síntese de toda obra do Chico;- a busca do homem e da mulher da sua contra-parte feminina ou masculina, um diálogo constante entre anima e animus. Em toda sua obra, esse romance lírico é revelado nas tramas dos encontros e desencontros de amor, em alegóricos personagens da nossa cultura intra e intersubjetiva.
Como um fotógrafo das almas ele vai revelando retratos, cenas interiores que compõem nossas buscas por uma unidade primordial, com a intensidade colorida dos nossos sentimentos mais verdadeiros, com o som e o movimento dos encontros e desencontros malemolentes, trágicos, mágicos, profanos e divinos entre o eu e o outro. O eu e o outro lado de mim ou o eu e outras partes de mim, o masculino e o feminino em suas várias faces e composições.
"O que é que eu posso contra o encanto desse amor que eu nego tanto, evito tanto e que no entanto volta sempre a enfeitiçar, com seus mesmos tristes velhos fatos, que num álbum de retratos eu teimo em colecionar.." .
Para isso, como um Orfeu e sua lira, ele tem a ousadia lícita de descer até o reino dos ínferos atrás da sua contraparte amada e refazer, com os enlevos de um Eros musical, a potência do amor perdido. Como um animus sedutor, Chico vai entoando canções de amor e de dor, acompanhando os movimentos da nossa alma, encantando-a com seu desejo de encontro; língua que canta, que lambe as feridas e que beija e acabamos cedendo "enfim à tentação das nossas bocas cruas e mergulhamos no poço escuro de nós"...
Como um Deus presente na intimidade das pequenas coisas, vai iluminando registros de pequenas cenas carregadas de significado:
"Esperando, parada, pregada na pedra do porto, com seu único e velho vestido cada dia mais curto..."; "Os letreiros a te colorir, embaraçam a minha visão. Eu te vi suspirar de aflição e sair da sessão, frouxa de rir"...; "A moça feia debruçou na janela pensando que a banda tocava pra ela"...; "E me agarrei nos seus cabelos, nos teus pêlos, teu pijama, nos teus pés aos pés da cama. Sem carinho e sem coberta, no tapete atrás da porta"..."Logo vou esquentar seu prato, dou um beijo em seu retrato e abro meus braços pra você"..."Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar, com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar"...( Songbook )
São imagens de almas em construção, subtextos de emoções, traços de memórias afetivas, marcas simbólicas de paixões encerradas dentro de nós. E como um "Deus das pequenas coisas" ele vai abrindo, com sua poesia e com sua música, um atalho até o tesouro de nossos sentimentos e sensações mais verdadeiros, seduzindo-nos pelo reconhecimento dos nossos sinais comuns, numa sintonia simbólica que ancora nosso desejo de realização pelo encontro.
Certamente, é respondendo ao chamado interno da sua própria ânima, do seu eu lírico feminino, que Chico Buarque projeta sobre nós a erotização do encontro homem-mulher. Não teme dar voz a um feminino que também pede reconhecimento das suas expressões. Assim, coloca-se no lugar da mulher, experimenta a alma - mulher e por isso é capaz de criar falas para os seus desejos. Por isso, penso que ele sabe, como poucos, o que quer uma mulher.
Pergunta do século, "afinal, o que quer a mulher ?", que continua a fazer parte da nossa cultura, subjugada por um espírito masculino dissociado das imanações do feminino.
Diante da pergunta masculina "o que quer a mulher?" se construiu e se constrói ainda hoje impressões, filosofias, teorias científicas como a psicanálise, além de fantasias e imagens diversas, charges, piadas e preconceitos, que trazem embutidos um desconhecimento sobre a mulher, sobre uma identidade do feminino, dificultando inclusive a conquista de uma identidade para nós mulheres.
Podemos encontrar nas canções do Chico as personagens femininas que compõem variadas concepções sobre a mulher presentes na nossa cultura, da santa à puta, de um feminino submisso e passivo a um feminino masculino e ativo. A importância da obra do Chico, para além da sua beleza plástica e sonora, está nas tonalidades interpretativas que ele compõe para se relacionar com as variações do feminino, sugerindo sempre a autoridade de uma identidade para cada mulher.
Antes de localizarmos entretanto, essas figuras em Chico, penso que vale a pena, um rápido passeio por mitos do feminino presentes na cultura em que vivemos, porque são parte de uma consciência coletiva que "pensa" a mulher e acaba por determinar suas possibilidades de realização.
Vejamos. Além de uma moral vitoriana e burguesa que destinava às mulheres o casamento e a maternidade como únicas formas de expressão, e que ainda se mantêm como potentes expressões do feminino, temos em Freud as contribuições mais polêmicas sobre o feminino e a mulher.
Foram as mulheres que, submetidas a uma condição de inferioridade, de desvalorização e de dependência de uma lógica masculina, fundaram a psicanálise com Freud, oferecendo-lhe os sintomas da sua negação. Foi a dissociação histérica do feminino que fez com que ele "ouvisse" para além de uma consciência autorizada e experimentasse a objetividade do inconsciente. De acordo com Hillman (1984:224), "Freud estabeleceu uma linha divisória entre a antiga superstição denominada possessão e a moderna superstição denominada histeria."..."A inferioridade feminina adquire uma nova veste quando a histeria se torna assunto secular e científico. A bruxa torna-se então a pobre paciente - que não é mais maligna, porém enferma."
A partir de Freud ganhamos a possibilidade e o estatuto de sermos também histéricas. E para muitos, até hoje, além da maternidade, a histeria é tida como a única manifestação do feminino. "Ser mulher" então, também com Freud, é pertencer a categoria do patológico e do inferior a ser submetido pela cultura.
A psicanálise e sua teoria da sexualidade manteve no corpo e na diferença genital entre os sexos a valoração dos destinos individuais de homens e mulheres. Na cultura psicanalítica o órgão genital masculino tem as representações de fálico/ativo/sádico e o genital feminino de castrado/passivo/masoquista. O masculino fica com a posição de sujeito do desejo e o feminino com a de objeto do desejo do outro. De acordo com Freud, nós mulheres, enquanto sujeitos castrados, sem "falo", passamos a atuar histericamente uma "inveja do pênis".
Para nos discriminarmos disso é necessário sabermos que não basta portar um pênis para ter um falo. Aliás, uma grande sacada que ouvi de um analista-homem, que sabe muito de mulher foi: "O único falo impossível a uma mulher é aquele que, no homem, só tem valor de "falo" se a mulher assim o reconhecer."
De qualquer forma, ficamos capturados numa trama cultural simbólica, fundada por um discurso masculino, num padrão patriarcal dissociado, onde a "identidade de mulher" e a "identidade de homem" são composições distintas e antagônicas. E, embora homens e mulheres sejam vários, diversificados quanto às posições feminina (passiva) ou masculina (ativa) que ocupem na cultura, uma ordem coletiva fálica e discriminadora nos designa lugares, posições, deveres e traços identificatórios.
Então "ser uma mulher", implica em localizar, dentro de um discurso masculino que constrói a feminilidade, alternativas para "que mulher se pode ser". Numa posição passiva do feminino, as opções oferecidas em geral situam-se entre "mãe" (ou "santa") e "histérica"(ou "puta"). Em geral caminhamos entre personagens da adolescente ingênua e romântica (Perséfone), da esposa virtuosa (Hera) ou da amante apaixonada (Afrodite).
Para Rousseau (in Kehl,1999:216), "a feminilidade é um conjunto de atributos que a mulher precisa oferecer ao homem para sustentar, nele, a virilidade. Assim, a masculinidade precisa ser sustentada pelo trabalho ativo de produção da passividade feminina." É claro que a essa condição desigual e masoquista se rebelaram as feministas na década de 60. Só que ao tentar demonstrar que a mulher é também sujeito livre e de desejos utilizaram - se dos mesmos recursos de um "falo" masculino para subjugar e negar a feminilidade. E passaram do masoquismo à virilização.
Com a modernidade e a inserção das mulheres ao campo da produção e do trabalho, atributos e destinos tidos como masculinos também passaram a fazer parte da identificação das mulheres. Assim, aos ideais culturais de submissão feminina agregaram-se os de autonomia de todo sujeito moderno; aos ideais de domesticidade os de liberdade; a Ideia de uma vida predestinada ao casamento e à maternidade contrapôs-se a Ideia, também moderna, de que cada sujeito deve escrever seu próprio destino, de acordo com sua própria vontade.
Assim, "ser uma mulher" implica em ter de discriminar registros históricos que serviram para reforçar padrões ambivalentes e ainda desconsiderados do feminino que foram se adensando na cultura. "Ser mulher" traz como parte do destino individual a necessidade, ainda, da individuação do gênero. Se faz necessário localizar uma individualidade do feminino ainda não claramente inscrita numa ordem coletiva.
A psicanalista Maria Rita Kehl (1999: 134) chama atenção para o fato de que em nossa cultura "só existe "O Homem" como categoria universal abstrata, "A Mulher" não existe. A posse do orgão masculino funda uma "identidade" entre todos os homens, sintetizada pelo significante fálico. E ainda: "O único significante que agrupa inquestionavelmente todas as mulheres sob a mesma barra é o que indica a "Mãe". A mulher não existe, mas existe a Mãe, esta figura temida e poderosa. Só que a mãe, no Inconsciente, não é exatamente uma mulher."
Então, o projeto de individuação para as mulheres implica em encontrar um discurso singular que possa expressar "a mulher" que se é; o que implica em buscar ser uma "outra", que não necessariamente a mãe ou a histérica.
Nosso desafio é encontrarmos, cada uma, um eixo singular de desejo e gozo entre o masculino e o feminino; acharmos um ajuste individual e cultural para sermos o mais possível sujeito do nosso destino, sendo "também" mulher.
Para nós analistas, essa é uma tarefa que se apresenta constantemente nos sintomas de nossas clientes mulheres: sentimentos de isolamento, de frustração das expectativas amorosas depois do casamento, de dificuldades de expressar emoções e conflitos, a luta por manter alguma auto-estima quando os filhos crescem (ou quando não se tem filhos), a inibição diante dos homens e ao mesmo tempo a hostilidade abafada em relação a eles, as fantasias e anseios por uma felicidade vaga e sempre fora de alcance, são aspectos frequentes nos relatos de vida de mulheres. Recontextualizar as equações psíquicas entre figuras do masculino e do feminino e desnaturalizar o que foi construído pela cultura é pois necessário, se quisermos ter mobilidade na clínica das neuroses.
Mas agora, voltemos ao Chico. Precisei desse espaço de cogitações culturais porque me ajudarão a deixar mais claro minhas suposições a cerca das mulheres do Chico, ou das possibilidades que sua arte abre para sairmos desse desamparo subjetivo, dessa estagnação psíquica de uma libido feminina. E então sugerir, como ele em sua música Paratodos: "Nessas tortuosas trilhas, a viola me redime. Creia ilustre cavalheiro, contra fel, moléstia, crime," use a música brasileira, e (eu acrescentaria) experimente o Chico.
Eu estava dizendo que ele sabe "o que quer a mulher" porque reconhece seus desejos e isto porque é capaz da experiência do encontro da sua própria contraparte feminina, como se soubesse que ser homem e ser mulher são possibilidades imanentes de um todo ao mesmo tempo masculino e feminino. Busca novos nexos, fluxos, figuras melódicas presentes na fluidez de uma outra ordem, na lógica dos sentimentos. Vai atrás de possibilidades ainda não exploradas, com a virilidade ativa de um homem, mas com a doçura sentimental e receptiva da mulher.
"Agora eu era o rei, era o bedel e era também juiz, e pela minha lei a gente era obrigado a ser feliz. E você era a princesa que eu quis coroar e era tão linda de se admirar que andava nua pelo meu país."
Na sua arte poética e musical o sentido de nós mesmos é buscado alquimicamente, via fantasia e imaginação. Assim como Jung, ele retira a fantasia e a imaginação da patologia histérica e devolve à fantasia sua potência de dom, de talento, de cultivo da alma. Como Jung, ele nos oferece a alquimia da coniunctio entre masculino e feminino como um dado, uma imagem primordial sempre presente. Não como uma meta a ser alcançada pela cultura, como estivemos vendo até agora, mas como uma realidade arquetípica, uma possibilidade apriorística, a ser cuidada e mantida. Na sua concepção dionísiaca do amor, masculino e feminino compõem a figura do andrógino, uma totalidade, uma conjunção criativa de opostos. Então, na obra do Chico o encontro de amor é um dado, o que se pranteia é a separação, o desencontro: " Ah, foi que nem um temporal, foi um vaso de cristal que rompeu dentro de mim "....E continuando, numa leitura alquímica, na mesma música: "Ou quem sabe os ventos, pondo fogo numa embarcação, os quatro elementos, num momento de paixão"...
Por isso, sua música acompanha arquétipos da intimidade, como um "Deus das pequenas coisas", vagueia na fluidez das imagens mentais, no eco de antigas palavras, na sintonia de novos sons, recupera memórias poéticas impressas em cenas que encantaram nossa alma e é capaz de erotizá-la de novo para novos encontros. Vai atrás da conjunção, da paixão, dos amantes, anima e animus, o rei e a rainha.
Em suas músicas somos sempre musas, deusas, a consorte escolhida; somos parte de uma história de caso real, mas nossa história de amor não é profana, é sempre sagrada, somos projeções femininas da sua anima: "Sim, me leva para sempre, Beatriz. Me ensina a não andar com os pés no chão. Para sempre é sempre por um triz."
É nesta compreensão arquetípica dos eventos e fatos que parece estar a importância terapêutica das músicas do Chico. O convite é para a experiência musical que nos conecta em uma nova ordem que contém possibilidades imanentes de transformação: "estava à toa na vida, o meu amor me chamou, pra ver a banda passar cantando coisas de amor. A minha gente sofrida despediu-se da dor pra ver a banda passar cantando coisas de amor. O homem sério que contava dinheiro parou, o faroleiro que contava vantagem parou, a namorada que contava as estrelas parou para ver, ouvir e dar passagem..."
Ele faz um furo no muro da linguagem, um desmanchamento nos discursos prontos da cultura, e pela via da imaginação vai recriando diálogos com nossa alma, que pode estar lá "esperando parada, pregada na pedra do porto, com seu único e velho vestido cada dia mais curto" ou "sem carinho e sem coberta, no tapete atrás da porta".
Através dos letreiros da linguagem a nos colorir, ele é capaz de nos ver "suspirar de aflição e sair da sessão frouxa de rir "; e sabe criar as imagens que colorem nossos sentimentos: "Deixa em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa, e qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d''agua."
Manda recados para um masculino esteriotipado da cultura: "O delegado é bamba na delegacia, mas nunca fez samba e nunca viu Maria."
Esse intérprete do amor-cortês oferece poemas musicais a nos atrair: "Não chore ainda não, que eu tenho um violão, e nós vamos cantar. Felicidade aqui pode passar e ouvir, e se ela for de samba, há de querer ficar..." e se oferece como um ânimus - companheiro, herói da delicadeza, diferente do herói masculino da cultura, um ânimus que busca novas formas de encontro: "Descansa em meu pobre peito, que jamais enfrenta o mar, mas que tem abraço estreito, morena, com jeito de lhe agradar. Vem ouvir lindas histórias, que por seu amor sonhei. Vem saber quantas vitórias, morena, por mares que só eu sei."
Não teme revelar-se homem de sentimentos, de amores e fracassos; mostra sua castração simbólica; a mulher é a sua contraparte, que se perdida, precisa de ser resgatada:" Oh pedaço de mim, oh metade amputada de mim, leva o que há de ti, que a saudade dói latejada, é assim como uma fisgada, no membro que já perdi." ou ainda "A Rita levou meu sorriso, no sorriso dela, meu assunto....Levou os meus planos, meus pobres enganos, os meus vinte anos, o meu coração.."ou "Madalena foi pro mar, e eu fiquei a ver navios..."; E não se envergonha de clamar: "Bárbara, Bárbara, nunca é tarde, nunca é demais. Onde estou, onde estás, meu amor, vem me buscar..."
Num estudo sobre a alma brasileira, Gustavo Barcellos (2000:04) nos apresentou a Ideia de um "logos do coração" para falar da função sentimento presente na música popular brasileira. Para isso, nos lembrou que o escritor Sérgio Buarque de Holanda, pai do Chico, apresenta o brasileiro como o "homem cordial", pois que possui uma "ética de fundo emotivo", o que, acrescenta Gustavo, melhor se expressa por um "pensamento do coração".
Certamente isso se aplica ao Chico e se revela em suas canções. Este "homem cordial" nos oferece pensamentos para o coração, ativando em nós uma vontade de encontro, de diálogo, de intimidade. Com isso promove uma dinamização e expansão do nosso espaço interior, restabelecendo na troca com o outro nossa fortaleza narcísica.
Toda a sua obra musical parece ser um ritual devocional a Eros, deus do amor. "Qualquer canção de amor, é uma canção de amor, não faz brotar amor, e amantes. Porém, se essa canção, nos toca o coração, o amor brota melhor e antes."
Retira uma libido sensual aprisionada no corpo, pois sabe, como nossa grande poeta Adélia Prado, que "erótica é a alma", presente nos gestos, nos afetos, nas coisas simples, cotidianas e imediatas e vai dando a tudo uma consciência poética. "aquela aliança você pode empenhar ou derreter..." "devolva o Neruda que você me tomou e nunca leu..." se lembra da jaqueira, a fruta no capim, o sonho que você contou pra mim...".
Podemos ver a obra musical do Chico também a partir das figuras do feminino, arquetípicamente impressas na cultura, que ele atualiza com uma consciência crítica instigante. Nos apresenta múltiplos retratos, processos simultâneos, paralelos ou compensatórios da nossa psique feminina. Da condição de submissão e servilidade total do feminino em "Mulheres de Atenas" que "vivem por seus maridos, orgulho e raça de Atenas...elas não têm gosto ou vontade, nem defeito nem qualidade, têm medo apenas"; até um feminino lírico, como em Beatriz: "Olha, será que é uma estrela, será que é mentira, será que é comédia, será que é divina, a vida da atriz..." .
Para o Chico podemos ocupar o lugar da inocência ou do pecado, da castração ou da onipotência, da sexualidade desenfreada e ameaçadora ou de uma vocação "natural" ao pudor e à castidade, depende da composição da conjunção a dois. Como homem que sabe do seu próprio desejo, ele nos permite constituir, como nos convier, a relação com a feminilidade.
Caminhando pelas suas imagens de mulher, fazemos exercícios projetivos de atualização e refinamento das configurações do feminino, o que nos permite também visualizar acertos e ajustes que temos com as configurações do masculino. E então podemos localizar qual a natureza da operação psíquica que está por trás do fascínio que nos mantém cativos na relação com o outro. Em que cena está o nosso retrato. Via Chico, um ânimus renovador e instigante nos desafia neste confronto interior: "Mesmo que você feche os ouvidos e as janelas do vestido, minha musa vai cair em tentação, mesmo porque estou falando grego com sua imaginação. Mesmo que você fuja de mim por labirintos e alçapões, saiba que os poetas como os cegos podem ver na escuridão..."
Chico nos remete a momentos nucleares únicos onde ritualizamos e atualizamos juntos, homem e mulher, sínteses possíveis e sempre fugidias entre o feminino e o masculino. : "Vem, meu menino vadio, vem, sem mentir pra você, vem, mas vem sem fantasia, que da noite pro dia, você não vai crescer...; Quem é você, adivinha se gosta de mim,...hoje eu sou da maneira que você quiser...; ou nas diferenças de vivência do Cotidiano: - Todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da manhã,...e em contrapartida: "Todo dia ele faz diferente, não sei se ele volta da rua, não sei se me traz um presente, não sei se ele fica na sua..."
Nas suas músicas encontramos também experiências de busca de equilíbrio de emoções concentradas em sínteses perdidas: "Ah, se já perdemos a noção da hora, se juntos já jogamos tudo fora, me conta agora como hei de partir...Como, se na desordem do armário embutido, meu paletó enlaça o teu vestido, e o meu sapato ainda pisa no teu...e aqui, como bem apontou Adélia Menezes (2000:33) "os sentidos opostos de enlaçar/pisar iconizam as possibilidades virtuais de uma relação de casal". E ainda na belíssima canção "Todo Sentimento" onde o amor é colocado dentro dos limites possíveis de saúde de uma relação a dois, com as possibilidades de reparação: "Prometo te querer, até o amor cair, doente, Prefiro então partir, a tempo de poder, a gente se desvencilhar da gente. Depois de te perder, te encontro com certeza, Talvez num tempo da delicadeza, onde não diremos nada, Nada aconteceu, Apenas seguirei, como encantado, ao lado teu..."
Como eu quis demonstrar desde o início, a obra musical de Chico Buarque de Hollanda pode servir como ativador de um processo de deslocamentos e condensações constantes dos arquétipos do feminino e do masculino e do arquétipo do coniunctio presente em nossa realidade objetiva e subjetiva. Suas músicas são capazes de desencadear movimentos psíquicos coletivos, às vezes ainda inconscientes, ativados via exercício da imaginação e da disciplina da fantasia. Em meio a agradáveis sonoridades uma ordem interna, conectada à delicadeza de sentimentos encobertos, é estimulada e o encontro da mulher com um masculino-amante, companheiro de alteridade se faz possível como uma nova forma de individuação. Há o ativamento de uma conjugalidade interior, que restaura uma dignidade feminina e inaugura com novos significados a necessidade de buscas originais de se tornar mulher. Ativados por sua imaginação, a Terezinha em nós abandona as vivências infantis, incestuosas e masoquistas do feminino e assume uma sexualidade adulta, se entregando para a parceria de prazer de ser mulher ao lado do homem.
Por isso, penso que a individuação das mulheres fica propiciada quando atrelada a essa estética musical, pois nessas sínteses entre a arte e o pensamento parece repousar um equilíbrio formal e emocional que faz emergir novos estilos de existência. Neste sentido, somos mulheres do Chico, quando sua arte poética e musical nos reconecta com o nosso desejo animico interior e suas múltiplas possibilidades de expressão no reino do masculino e do feminino, o que resulta na maturidade de uma sexualidade adulta nas relações e nas soluções. Somos então mulheres modernas, capazes da delicadeza e da maturidade de uma feminilidade composta. O resultado provisório e constante dos ajustes entre feminino e masculino, porque estamos sempre permeáveis a um novo olhar e um novo encontro com nossas virtualidades criativas. Somos então, mulheres da individuação, capazes de nos equilibrar com elegância nessa saia justa e nesse salto alto. (encerrar com a música Valsinha, apenas lida no início, porque é num novo olhar que repousa uma nova mulher).


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