Pergunta: Como criar um perfil de personagem?

A personagem é um ser fictício, — expressão que soa como paradoxo. De fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste.

Verifiquemos, inicialmente, que há afinidades e diferenças essenciais entre o ser vivo e os entes de ficção, e que as diferenças são tão importantes quanto as afinidades para criar o sentimento de verdade, que é a verossimilhança. Tentemos uma investigação sumária sobre as condições de existência essencial da personagem, como um tipo de ser, mesmo fictício, começando por descrever do modo mais empírico possível a nossa percepção do semelhante.

Quando abordamos o conhecimento direto das pessoas, um dos dados fundamentais do problema é o contraste entre a continuidade relativa da percepção física (em que fundamos o nosso conhecimento) e a descontinuidade da percepção, digamos, espiritual, que parece freqüentemente romper a unidade antes apreendida. No ser uno que a vista ou o contato nos apresenta, a convivência espiritual mostra uma variedade de modos-de-ser, de qualidades por vezes contraditórias.

A primeira ideia que nos vem, quando refletimos sobre isso, é a de que tal fato ocorre porque não somos capazes de abranger a personalidade do outro com a mesma unidade com que somos capazes de abranger a sua configuração externa. E concluímos, talvez, que esta diferença é devida a uma diferença de natureza dos próprios objetos da nossa percepção. De fato, — pensamos — o primeiro tipo de conhecimento se dirige a um domínio finito, que coincide com a superfície do corpo; enquanto o segundo tipo se dirige a um domínio infinito, pois a sua natureza é oculta à exploração de qualquer sentido e não pode, em conseqüência, ser aprendida numa integridade que essencialmente não possui. Daí concluirmos que a noção a respeito de um ser, elaborada por outro ser, é sempre incompleta, em relação à percepção física inicial. E que o conhecimento dos seres é fragmentário.

Esta impressão se acentua quando investigamos os, por assim dizer, fragmentos de ser, que nos são dados por uma conversa, um ato, uma seqüência de atos, uma afirmação, uma informação. Cada um desses fragmentos, mesmo considerado um todo, uma unidade total, não é uno, nem contínuo. Ele permite um conhecimento mais ou menos adequado ao estabelecimento da nossa conduta, com base num juízo sobre o outro ser; permite, mesmo, uma noção conjunta e coerente deste ser; mas essa noção é oscilante, aproximativa, descontínua. Os seres são, por sua natureza, misteriosos, inesperados. Daí a psicologia moderna ter ampliado e investigado sistematicamente as noções de subconsciente e inconsciente, que explicariam o que há de insólito nas pessoas que reputamos conhecer, e no entanto nos surpreendem, como se uma outra pessoa entrasse nelas, invadindo inesperadamente a sua área de essência e de existência.

Esta constatação, mesmo feita de maneira não-sistemática, é fundamental em toda a literatura moderna, onde se desenvolveu antes das investigações técnicas dos psicólogos, e depois se beneficiou dos resultados destas. É claro que a noção do mistério dos seres, produzindo as condutas inesperadas, sempre esteve presente na criação de forma mais ou menos consciente, — bastando lembrar o mundo das personagens de Shakespeare. Mas só foi conscientemente desenvolvida por certos escritores do século XIX, como tentativa de sugerir e desvendar, seja o mistério psicológico dos seres, seja o mistério metafísico da própria existência. A partir de investigações metódicas em psicologia, como, por exemplo, as da psicanálise, essa investigação ganhou um aspecto mais sistemático e voluntário, sem com isso ultrapassar necessariamente as grandes intuições dos escritores que iniciaram e desenvolveram essa visão na literatura. Escritores como Baudelaire, Nerval, Dostoievski, Emily Bronte (aos quais se liga por alguns aspectos, isolado na segregação do seu meio cultural acanhado, o nosso Machado de Assis), que preparam o caminho para escritores como Proust, Joyce, Kafka, Pirandello, Gide. Nas obras de uns e outros, a dificuldade em descobrir a coerência e a unidade dos seres vem refletida, de maneira por vezes trágica, sob a forma de incomunicabilidade nas relações. É este talvez o nascedouro, em literatura, das noções de verdade plural (Pirandello), de absurdo (Kafka), de ato gratuito (Gide), de sucessão de modos de ser no tempo (Proust), de infinitude do mundo interior (Joyce). Concorrem para isso, de modo direto ou indireto, certas concepções filosóficas e psicológicas voltadas para o desvendamento das aparências no homem e na sociedade, revolucionando o conceito de personalidade, tomada em si e com relação ao seu meio. É o caso, entre outros, do marxismo e da psicanálise, que, em seguida à obra dos escritores mencionados, atuam na concepção de homem, e portanto de personagem, influindo na própria atividade criadora do romance, da poesia, do teatro.

Essas considerações visam a mostrar que o romance, ao abordar as personagens de modo fragmentário, nada mais faz do que retomar, no plano da técnica de caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória, incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes. Todavia, há uma diferença básica entre uma posição e outra: na vida, a visão fragmentária é imanente à nossa própria experiência; é uma condição que não estabelecemos, mas a que nos submetemos. No romance, ela é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro. Daí a necessária simplificação, que pode consistir numa escolha de gestos, de frases, de objetos significativos, marcando a personagem para a identificação do leitor, sem com isso diminuir a impressão de complexidade e riqueza.

Para estabelecer o perfil relativamente completo para uma personagem é necessário responder algumas questões e descrever diversas características conforme segue: Nome; Características físicas, comportamentais, sexuais, profissionais, intelectuais e espirituais; Qual o objetivo dela existir para a história?; Qual será a sua transformação durante o curso da história?; O que a motiva e a desmotiva; O que gosta e o que não?; Como vê o mundo? Características espaciais que a circulam; Personagens com as quais convive; Como é o nível e qualidade de convivência com elas?; Descrição do comportamento dela diante de cada situação ou outras personagens; E muitas outras que julgue ser necessário para tipificar as suas personagens.

Fonte: "Ficha de Personagem - Curso de Roteiro", Cursos Dominantes Pré-Vestibular. www.massarani.com.br
Livro: “A personagem de ficção”, Antonio Candido, Anatol Rosenfeld, Decio de Almeida Prado e Paulo Emilio Sales Gomes.
(Compre e leia o livro, vale a pena)

Pergunta anterior

Pergunta anterior

          

Próxima pergunta

Próxima pergunta