Até há meio século, ele era ainda o príncipe dos poetas brasileiros. Adorado em vida, venerado no período subseqüente à sua morte, sempre lido ao longo da primeira metade deste século, apenas nos últimos trinta anos o poeta de Tarde foi sendo aos poucos deixado de parte. Mais recentemente, nos livros canônicos da historiografia literária brasileira, embora sempre lhe fosse reconhecida a mestria da forma, Bilac esteve francamente em baixa como poeta, sendo parte de seu êxito e permanência identificados a uma forma de reação contra o novo gosto modernista. Porém a mais funda incompreensão a propósito do alcance e da importância da obra de Olavo Bilac se deu, na minha opinião, no que diz respeito à sua atuação como publicista e pedagogo.
Apenas nestes últimos anos tem sido sensível, no meio acadêmico, um certo renascer do interesse pela obra e pela figura pública de Olavo Bilac, que ainda é cedo para dizer se produzirá ou não frutos a longo prazo. Da mesma forma que a literatura do início do século vem sendo finalmente estudada sem os preconceitos da historiografia dos anos 50 e 60 - em muitos pontos excessivamente marcada pela visada modernista - também o chamado Parnasianismo brasileiro parece estar destinado a receber da crítica uma atenção mais aprofundada e compreensiva. Se já foi o tempo em que o início do século interessava apenas enquanto "pré-modernismo", no sentido de premonição ou anúncio do que estava por estalar em 22, também já parece ter passado a época em que mesmo a melhor crítica parecia sentir necessidade de assumir as palavras de ordem antiparnasianas dos homens de 22.
É nesse contexto, então, que me propus a apresentar aqui algumas reflexões sobre o poeta e publicista Olavo Bilac, tentando chamar a atenção para um escritor pouco difundido hoje em dia, mesmo no Brasil, e buscando apreender aspectos de sua obra e atividade que possam depois ser aplicados a outros tópicos dos estudos de cultura brasileira.
Contam os biógrafos que Olavo Bilac certa vez entrou numa perfumaria do Rio de Janeiro para reabastecer-se de uma colônia que, num gesto teatral, tornara famosa ao derramá-la sobre o corpo de um companheiro de geração, na hora do enterro. O atendente de balcão, que era um rapazinho recém-chegado de Minas Gerais, mal ouviu o nome da colônia, associando-a ao poeta e sem saber que estava em presença do próprio, passou a derreter-se em elogios ao seu ídolo, que ainda não pudera ver pessoalmente...
Também faz parte da biografia de Bilac um outro episódio curioso: ia o poeta pela Praça Martim Afonso com outros literatos, pouco tempo depois de ter publicado na A Semana um dos seus sonetos mais famosos, quando foi abalroado por um homem mulato que lhe pisou brutalmente um pé. Depois da troca de alguns insultos, percebendo que se tratava de Bilac, o atropelador logo mudou o tratamento: pediu-lhe perdão, aludiu com piada ao soneto d'A Semana e terminou por despedir-se chamando ao poeta "ave augusta da nossa poesia".
Os dois episódios nos transmitem uma impressão muito forte do que era a penetração popular de um escritor como Bilac. Especialmente o segundo, que se teria passado ainda em 1886, quando o nosso homem andava pelos 20 anos e era inédito em livro. Para o estudioso da literatura brasileira, esses depoimentos revelam uma relação autor/público profundamente diferente da que será inaugurada, algumas décadas depois, pela primeira geração modernista. De fato, se há um momento em que se instala um divórcio completo entre o escritor e o seu público, no Brasil, esse momento é o Modernismo de 1922. Naquele final de século, às vésperas e depois da proclamação da República, a literatura era ainda um objeto de desejo das nascentes classes médias e um lugar privilegiado de projeção e debate das ideologias.
Aliás, não creio que se tenha discutido ainda, com a profundidade necessária, a questão do público de literatura no Brasil, por volta da virada do século. Quando lemos algumas obras menores do início do XX, percebemos a importância que tinha a arte da palavra para a vida quotidiana da pequena classe média, composta basicamente por funcionários de escritórios, funcionários públicos, profissionais liberais e autônomos: assim como ter uma opinião política, arranhar a sua literatura e ter decorado alguns versos dos grandes poetas do tempo era requisito de distinção.
De um modo geral, podemos dizer que, desde os anos em que a propaganda republicana ganhou corpo, até a época do Modernismo, o que vemos no Brasil é a construção de um público médio e uma feliz identificação entre as expectativas desse público e a realização estética que lhe era oferecida pelos escritores mais notáveis.
Poucas vezes, de fato, pôde-se observar, na história da leitura no Brasil, uma consonância tão intensa entre os ideários dos principais escritores do momento e o público de que dispunham. As conseqüências desse fato são muitas. Uma das mais importantes, creio, é que começa então a ganhar corpo a Ideia da literatura como profissão. É verdade que ainda será preciso esperar por Monteiro Lobato para que a literatura em livro comece a ser fonte de renda para o escritor. No tempo de Bilac, a vida literária ainda está vinculada ao jornalismo e é das crônicas que provém a maior parte do sustento do autor. Mas já então percebemos que se afirma, de uma forma sem precedente no Brasil, o valor econômico do trabalho intelectual e do papel social do escritor.
Da singularidade e novidade dessa situação estava o poeta da Via Lactea bem consciente. E deu-lhe o devido destaque, quando procedeu a um apanhado da sua atividade cultural na conferência intitulada Sobre a minha geração literária.
Nesse texto, fazendo um balanço dos serviços prestados à Pátria pela sua geração, aponta como um deles a superação da oposição romântica entre o autor e a sociedade.
Extraído do livro Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa - Paulo Franchetti - Ateliê Editorial. Compre e leia o livro, vale a pena. Prestigie o trabalho do autor.
Fonte: www.unicamp.br
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