“V” de Vidigal: Ordem e Anarquia Conceitual em Manuel Antônio de Almeida

Agosto 12, 2008 por rafnir

Apresentarei neste tópico alguns trechos do livro “Memórias de um Sargento de Milícias”, bem como alguns escopos acerca da obra, para tratar do “realismo baseado na intuição da dinâmica social do Brasil na primeira metade do século XIX”, conforme a análise do crítico Antonio Candido, desenvolvida em seu ensaio “Dialética da Malandragem”. Antes de recorrer a isto, contudo, farei uma breve contextualização da obra, a fim de aperfeiçoar a análise aqui feita. E quando esta etapa estiver concluída, irei dissertar acerca de um escopo novo e, dadas as circunstâncias, ignorado por Candido (por questões físico-temporais, vale dizer): uma análise dos conceitos trabalhados a partir da dicotomia Ordem/Anarquia da obra, à luz do roteiro desenvolvido no filme longa-metragem (inspirado na obra original de Alan Moore) “V de Vingança”, com uma longa e necessária contextualização da obra.
Pois bem, aos fatos: Nascido no Rio de Janeiro em 1831, Manuel Antônio de Almeida teve existência meteórica, pois morre tragicamente, em 1861, com apenas 30 anos de idade, vitimado por um naufrágio na costa fluminense, ao viajar num vapor com destino a Canipós, no Estado do Rio. Memórias de um Sargento de Milícias, sua única obra, foi publicada inicialmente, sob anonimato, na forma de folhetins, no suplemento dominical “A Pacotilha” do “Correio Mercantil”, em 1852, jornal carioca onde trabalhava. Pouco tempo depois, a novela saía publicada na forma de livro, em dois volumes, respectivamente em 1854 e 1855, assinada com o pseudônimo “Um Brasileiro”.
O livro de Manuel Antônio inova pela linguagem galhofeira, que não correspondia muito ao gosto da época, motivo por que não teve muita aceitação e parecia mesmo que estava fadado ao naufrágio, como, aliás, aconteceu com o autor. O tempo, entretanto, encarregou-se de valorizar a obra, e, se não chegou a explodir, continua viva pelos anos afora e apreciada pelos cultores da boa leitura.
É interessante observar, como revela o critico Massaud Moisés, em seu Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira, que “as primeiras manifestações de nossa prosa de ficção seriam novelas, ou, pelo menos, estariam contagiadas por sua estrutura fundamental, visto ainda o romance estar apenas aparecendo, na Inglaterra”.
A obra de Manuel Antônio de Almeida está dividida em duas partes bem distintas: a primeira com 23 capítulos e a segunda com 25. Seus episódios são quase autônomos, só ligados pela presença de Leonardo, dando à obra uma estrutura mais de novela que de romance. Na obra, o leitor acompanha o crescimento do “herói” (esta nomenclatura controversa será retomada mais tarde) com sua infância rica em travessuras, a adolescência com as primeiras ilusões amorosas e aventuras, e o adulto, que, com o senso de responsabilidade, que essa idade exige, vai-se enquadrando na sociedade, o que culmina com o casamento.
Para Mário de Andrade, trata-se de uma novela picaresca de influência hispânica. Já Manuel Bandeira, em uma de suas crônicas, conta que o grande escritor espanhol Francisco Ayala leu a novela e, de tão encantado, traduziu-a para o espanhol e escreveu no prefácio a palavra que melhor lhe pareceu qualificá-la: obra-prima, acrescentando que As Memórias de um Sargento de Milícias se inserem na linhagem dos romances picarescos. E olhe que Ayala é da terra da ficção picaresca…
Não obstante, o nosso dito herói (Leonardo) tem características próprias, que o afastam do modelo espanhol, como ressalta o critico Antônio Cândido, na sua “Dialética da Malandragem”:
“Digamos então que Leonardo não é um pícaro saído da tradição espanhola, mas sim o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira, vindo de uma tradição folclórica e correspondendo, mais do que se costuma dizer, a certa atmosfera cômica e popularesca de seu tempo, no Brasil”.
Freqüentemente identificadas por suas profissões e caracteres físicos, as personagens se enquadram na categoria de planas, não apresentando, portanto, traços psicológicos densos e profundos. O protagonista da estória (Leonardo), que foge completamente aos padrões de herói romântico, é igualmente uma personagem plana, sem traços psicológicos profundos que marquem a sua personalidade.
Assim, pois, predomina sempre o sentido visual e não a percepção psicológica. Os personagens distinguem-se pelo físico de absoluta nitidez, não falam, e algumas figuras ficam mudas quase todo o tempo, como acontece com Luisinha e o próprio Leonardo. Para Paulo Rónai, que traduziu a obra para o francês, o título deveria ser: “Como se Faz um Sargento de Milícias”, pois, segundo confessa, “teve tentação de colocar, como título, na tradução francesa” (Comment on devi ent un Sargent de la Milice). Já para Olívio Montenegro, o título poderia ser: “Cenas da Vida Carioca”.
Entretanto, podem-se detectar, na obra, aspectos que traem não só o Romantismo como o Realismo: não parece ser muito apropriado considerar o livro como obra precursora do Realismo no Brasil, embora seu autor haja revelado conhecer a “Comédia Humana”, de Balzac, e ter recebido influências dela. Falta-lhe a intenção realista, apesar da presença de muitos elementos denunciadores desse estilo de época, como ressalta José Veríssimo: “o autor pratica, no romance brasileiro, o que já é lícito chamar obra psicológica e de meio: a descrição pontual, a representação realista das coisas, mas fugindo às cruezas”. O fato é que este pseudo-realismo (espero que a expressão aqui cunhada sirva para esclarecer os leitores) é relevado por certos críticos, sendo o que ocorre de fato uma análise plana, rasa e inocente da época do autor.
Tudo bem, a cena do clérigo, mestre de cerimônias, no quarto de uma cigana prostituta, em noite de festa e nos trajes em que o autor o coloca é digna de mestres do Realismo, como Eça de Queiroz, por exemplo. Mas por outro lado, a presença do Romantismo também é notória na obra: a busca do passado, que é uma fixação comum no estilo romântico, serve de ponto de partida para o autor, como se vê na abertura do livro, típica das estórias da carocha: “Era no tempo do rei”. Conforme ressalta Paulo Rónai, “orgulha-se o autor de não participar dos exageros românticos, mas, saudoso do passado, explica o interesse pelos tempos antigos com a alegação de querer mostrar que os costumes de outrora não eram superiores aos de seu tempo. Só mero pretexto: ele só não admitia os excessos dos ultra-românticos.”
Como é freqüente no Romantismo, que tem, ao lado de certa tendência para finais tétricos, propensão para as conclusões açucaradas, todos os capítulos e a própria novela terminam num final feliz digno de romances tão “aguados” quanto os do início do movimento romântico no Brasil.
Há também uma despreocupação com a correção gramatical e o aproveitamento da fala e de expressões populares, o que mostra bem a tendência para a liberalização da expressão, que é outra conquista do Romantismo, forjada na esteira do liberalismo da época, como revelam os exemplos abaixo:
“À vista disto nada havia a duvidar: o pobre homem perdeu. Como se costuma dizer, as estribeiras,…”
“Quando amanheceu, acordou sarapantado…”
“- Olá, Leonardo! Por que carga d ‘água vieste parar a estas alturas? Pensei que te tinha já o diabo lambido os ossos, pois depois daquele maldito dia em que nos vimos em pancadaria, por causa do mestre-de-cerimônias, nunca mais te pus a vista em cima.”
“- Escorropicha essa garrafa que ai resta, disse-lhe o amigo…”
“- Fui para casa de meu pai… E de repente, hoje mesmo, brigo lá com a cuja dele…”
Como é comum no Romantismo, algumas situações são criadas artificialmente. Revela-o, sobretudo, o fato de Leonardo transformado em granadeiro e posteriormente em Sargento de Milícias, verdadeira obra da Providência na vida deste moço cuja sina leva-o para o domínio da desordem, como o próprio Candido defendeu em seu ensaio.
Assim, embora apresente características que lembram os estilos realista e romântico, Memórias de um Sargento de Milícias se destaca por sua originalidade, afastando-se dos padrões da época, como observou Mário de Andrade, que considerava essa novela uma obra isolada. Já para Antônio Soares Amora, “a intenção do autor, ao escrever seu romance de folhetins para a Pacotilha, não é difícil perceber: oferecer ao leitor, de um lado, um romance engraçado, pelos tipos que nele entravam, pelas suas expressões, pelas suas atitudes e ações; de outro, um romance de costumes populares, de um Rio que deixara de existir, com a modernização da vida carioca, iniciada no decênio de 1830, um Rio do começo do século, ronceiro e roceiro, mas bem mais pitoresco e alegre, pelas despreocupações de sua gente e pelas festas populares (procissões, folias do Divino, fogos no Campo de Santana, as súcias), e por isso um Rio de que os mais velhos, nos anos de 1850, se recordavam com nostalgia.”
Além desses aspectos citados, que configuram bem a “época do Rei” (início do século XIX, quando D. João VI esteve no Brasil fugido de Napoleão), como o próprio romance resolve-se por começar, a ironia e o gosto pela gozação acompanham a obra do começo ao fim, como pode ser visto nos seguintes termos:
“A carruagem era um formidável, um monstruoso maquinismo de couro, balançando-se pesadamente sobre quatro desmesuradas rodas. Não parecia coisa muito nova; e com mais de dez anos de vida poderia muito bem entrar no número dos restos infelizes do terremoto, de que fala o poeta.”
“Luisinha, conduzida por D. Maria, que lhe ia servir de madrinha, embarcou num dos destroços da arca de Noé, a que chamamos carruagem;”
“Entre os honestos cidadãos que nisto se ocupavam, havia, na época desta história um certo Chico-Juca, afamadíssimo e temível.”
“Eis aqui como se explica o arranjei-me, e como se explicam muitos outros que vão aí pelo mundo.”
Ao traçar o perfil de Leonardo, protagonista da novela, o autor retrata um tipo genuinamente brasileiro, com sua malandragem bem carioca e sua propensão ao “dolce far niente” (não fazer nada, ócio), numa aversão ao trabalho, que antecipa, em quase um século, o celebrado “herói sem nenhum caráter” e modelo de nossa gente, Macunaíma, do modernista Mário de Andrade. Em contraste, apresentando um perfil pautado pela retidão e pelo senso de responsabilidade, que o aproxima mais do herói tradicional que Leonardo, o major Vidigal é bem a encarnação do poder constituído e da ordem estabelecida. Com sua implacabilidade à cata de malandros, o major representa, sem dúvida, o guardião de normas sociais que padronizam comportamentos e enquadram tipos rebeldes que ousam transgredi-las.
Simbolicamente, pode-se ver, nessas “memórias” de Leonardo, a trajetória existencial de qualquer ser humano, desde o nascimento, quase sempre fruto de um amor que brota com uma “pisada no pé e um beliscão” (que varia conforme o costume da época…), até o enquadramento social, que se concretiza com o casamento e, sobretudo com a investidura da camisa de força imposta pelo major Vidigal. Sem dúvida, o final feliz da conclusão é um final irônico, em que o ser humano dá adeus às travessuras e às ilusões para se enjaular nos limites estreitos de uma vidinha miúda e besta, pautada pelo bom comportamento de um sargento de milícias
Nosso Leonardo, que de menino traquinas, sempre pronto para fazer travessuras e vingar-se de quem não o suportava, passa a sargento de milícias, posto de grande responsabilidade, caracteriza-se na trajetória desordenada e contraditória de um personagem que não controla o meio em que se envolve e vai, pelo contrário, deixando-se levar por ele. Leonardo é, indiscutivelmente, a figura central do enredo, apesar de muitas vezes ser ofuscado pela ação de outros personagens. Já o Vidigal, o terror dos malandros e vagabundos, “o rei absoluto, o árbitro supremo” e o distribuidor dos castigos em uma sociedade em que a polícia ainda não estava organizada, é visto de forma simpática, principalmente porque termina sendo uma peça fundamental para que o destino de Leonardo, o herói central, se encerre de forma favorável.
Isto tudo remonta a um ponto vital na obra de Manuel Antônio de Almeida: ela fala de homens livres, que, não sendo escravos, mas também não dispondo de poder econômico e político, viviam, ou sobreviviam, de acordo com suas possibilidades, numa espécie de zona de penumbra na qual os limites entre os valores da ordem vigente e da marginalização completa se tornavam bastante tênues.
Por retratar com certa objetividade os costumes e hábitos deste grupo social, Memórias de um Sargento de Milícias foi qualificado, ainda no século passado, de realismo. Mais tarde, por volta de 1920, ao ser reavaliado, foi considerado um romance picaresco a partir do argumento de que possuía as características das obras de ficção européia dos séculos XVI e XVII assim denominadas: ausência de critérios morais rígidos, um herói central de origem social pobre, uma visão de mundo ingênua e ao mesmo tempo satírica, etc.
Mas a definição não vingou, principalmente porque há uma diferença fundamental entre Leonardo e os heróis do chamado romance picaresco europeu: sua vida se limita ao espaço dos homens livres do século XIX, sem transitar através de vários grupos sociais. Além disto, ciente da ineficiência dos rótulos e catalogações da crítica tradicional, a concepção que predomina hoje na análise da obra é a que, a partir de uma perspectiva histórica, vê em Leonardo o primeiro grande “malandro” da ficção brasileira, predecessor de Macunaíma e um “primo-irmão” de Pedro Malazartes. Para todos os efeitos, Leonardo era uma espécie de “carioca com espírito de matuto”, que vivia de suas estripulias pelo prazer de perpetrá-las, sem nenhum interesse secundário – o que o afasta muito do estereótipo do pícaro, defendido outrora.
De fato, “no tempo do rei” a ordem social definia-se a partir de dois pólos extremamente rígidos: o escravo e o senhor-de-escravos. No meio, os homens livres sem poder econômico e político representavam um grupo restrito, mas, certamente, de alguma importância em termos sociais. Sua ação era definida fundamentalmente a partir da necessidade de sobreviver através de expedientes raramente ligados a uma atividade econômica específica. Caracterizavam-se antes por exercerem ocupações ocasionais, pequenos serviços e alguns cargos burocráticos subalternos: vendeiro, barbeiro, parteira, miliciano, sacristão, etc.
Leonardo, típico representante deste setor, tem como alternativa desempenhar um destes papéis. Não chega, a rigor, a optar por um ou por outro. Vê-se, antes, obrigado pelas circunstâncias, a aceitar ora esta, ora aquela ocupação. Já de início, o compadre e a comadre, seus tutores, desejam para ele uma carreira de mais destaque: advogado, padre ou algo semelhante. Leonardo desaponta-os. Pensa em casar com Luisinha, moça de certas posses. Ela, porém, escolhe alguém de nível social superior. Por fim, Leonardo vê-se obrigado a entrar para o serviço militar. Não se adapta à nova carreira, mas, depois de muita confusão, Vidigal, o terrível major, símbolo da ordem constituída, incumbe-se de salvar-lhe a pele e coloca-o no confortável posto de sargento de milícias. Isto não seria estranhável não fosse o fato de que a artífice de tudo é Maria Regalada, a mulher que já fora de “vida fácil”, ou seja, uma típica representante da desordem social, uma marginal. Assim é que, entre a ordem constituída [representada por Vidigal] e a desordem tolerada [Maria Regalada], quem sai beneficiado é Leonardo. E de tudo isto, de acordo com a visão de mundo ingênua e sem conflitos que impregna o romance, não resta qualquer sentimento de culpa, tanto que ao final, em paz, o herói casa, é reformado e desfruta de cinco heranças.
O salto, em termos de enredo, pode ser um tanto brusco, mas o fato é que Leonardo escolhe a ordem e suas vantagens. Depois de tanto oscilar entre os domínios da ordem e da desordem, não por nada resolve esquecer Vidinha e seus encantos, aos quais faltava o charme da fortuna e do reconhecimento social.
Neste sentido, Memórias de um Sargento de Milícias deixou registrado, tanto no personagem central, como nos outros mais secundários, a regra constitutiva dos valores do grupo social dos homens livres do Brasil do séc. XIX: para eles ordem e desordem pouco representavam. Sem trabalhar, o que era obrigação dos escravos, e sem estar no poder, como os senhores-de-escravos, Leonardo passeia pelo mundo não levando muito em conta as convenções sociais, a não ser quando funcionam em seu próprio benefício.
O romance, então, trataria do movimento de convivência de opostos que se tornam o elemento estrutural do romance: jogo de oposições e conciliações entre ordem e desordem. Leonardo, enquanto malandro premiado e integrado numa posição social respeitável, de um lado, e o Major Vidigal, representante máximo da ordem, que no final entrega-se a um delicioso compromisso com a desordem.
Então, compreendamos o seguinte: a questão da ordem e da desordem não é antagônica na obra de Manuel Antônio de Almeida, mas sim uma espécie de “gêmeos siameses” que interagem e trocam conceitos sempre que as conveniências permitem. Uns permanecem mais em um domínio, outros menos, mas todos interagem entre os dois ambientes: a “queda” do Vidigal pela Maria-Regalada nos finalmentes do romance, e o “acerto” de Leonardo ao casar-se e tornar-se um membro do corpo civil, num cargo de respeito e onorários.
Entendido isto, vamos à parte mais problemática desta questão, introduzindo assim o conceito da “anarquia” onde Cândio empregou a desordem:
V de Vingança (versão em português para V for Vendetta) é uma série de romances gráficos escrita por Alan Moore e em grande parte desenhada por David Lloyd. A história se passa em um distópico futuro de 1997 no Reino Unido, em que um misterioso anarquista, conhecido somente como “V”, tenta destruir o Estado, através de ações diretas.
O enredo é situado num passado futurista (uma espécie de passado alternativo), numa realidade em que um partido de cunho Totalitário ascende ao poder na Inglaterra após uma guerra nuclear. A semelhança com o regime Nazista e Stalinista é inevitável devido ao fato do governo ter o controle sobre a mídia, a existência de uma polícia secreta, campos de concentração para minorias raciais e sexuais, muito perto do que pensou Hannah Arendt no seu livro Origens do totalitarismo, de 1951.
Apesar do sistema Totalitário ser definido por vários autores, como Hannah Arendt pensou, a graphic novel (espécie de livro, normalmente contando uma longa história através de arte sequencial, frequentemente usada para definir as distinções subjetivas entre um livro e outros tipos de histórias em quadrinhos) foi escrita num momento histórico no qual a Inglaterra estava implementando o sistema Capitalista Neoliberal com a ministra Margareth Thatcher. Ao mesmo tempo, o “Socialismo Real” da extinta U.R.S.S. (atual Rússia) estava em total descrédito devido aos horrores do Stalinismo.
O que abre a perspectiva para que “V” (codinome do protagnista) tenha uma postura Anarquista, pois como definiu tanto Enrico Malatesta no seu livro “Escritos revolucionários” e outros Anarquistas, como Mikhail Bakunin, Pierre Joseph Proudhon, Max Stirner, Emma Goldman, Piotr Kropotkin e Henry David Thoreau, “o Estado é visto como limitador da Liberdade, sendo assim todo Estado passa a ser Totalitário”.
V de Vingança começa após o fim do conflito político, com os campos de concentração desativados e a população complacente com a situação, até que surge “V” - um Anarquista, possuidor de uma vasta gama de habilidades e recursos – e inicia uma elaborada e teatral campanha para derrubar o Estado ao lado de Evey, que perdeu os pais durante a guerra. “V” trata Evey como uma aprendiz, sempre mostrando a ela resquícios de uma cultura perdida por causa da guerra.
A história possui fortes influências da “Conspiração da Pólvora”. “V” acaba por concretizar os planos da conspiração explodindo o parlamento inglês num futuro dia 5 de Novembro. Este personagem esconde seu rosto atrás de uma máscara de Guy Fawkes usada na Noite das Fogueiras e o objetivo dele é iniciar um levante contra um regime fascista que se instalou na Inglaterra após uma guerra biológica.
Agora, um pouco de História: Guy Fawkes (Iorque, 13 de abril de 1570 - Londres, 31 de janeiro de 1606), também conhecido como Guido Fawkes, foi um soldado inglês católico que teve participação na “Conspiração da Pólvora” (Gunpowder Plot) na qual se pretendia assassinar o rei protestante Jaime I da Inglaterra e todos os membros do parlamento durante uma sessão em 1605, objetivando o início de um levante católico. Guy Fawkes era o responsável por guardar os barris de pólvora que seriam utilizados para explodir o parlamento inglês durante a sessão – daí o nome da revolta.
Porém a conspiração foi desarmada, e após o seu interrogatório e tortura, Guy Fawkes foi executado na forca por traição e tentativa de assassinato. Outros participantes da conspiração acabaram tendo o mesmo destino. Sua captura é celebrada até os dias atuais no dia 5 de novembro, na “Noite das Fogueiras” (Bonfire Night).
A Conspiração da Pólvora foi uma tentativa mal-sucedida de um grupo de católicos provinciais ingleses de assassinato do rei Jaime I de Inglaterra, de sua família, e da maior parte da aristocracia protestante em um único ataque, às Casas do Parlamento, durante a cerimônia de abertura. O objetivo deles era explodir o Parlamento inglês durante uma sessão na qual estaria presente o rei e todos os parlamentares utilizando trinta e seis barris de pólvora estocados sob o prédio do parlamento. Guy Fawkes, como era especialista em explosivos, seria responsável pela detonação da pólvora. Muito crêem que a Conspiração da pólvora foi parte da Contra-Reforma.
Em março de 1605, a terra abaixo da casa dos lordes foi preenchida com 36 barris de pólvora, contendo 1800 libras de material explosivo. Como os conspiradores notaram que o ato poderia levar a morte de diversos inocentes e defensores da causa católica, enviaram avisos para que alguns deles mantivessem distância do parlamento no dia do ataque. Para infelicidade dos conspiradores um dos avisos chegou aos ouvidos do rei, o qual ordenou uma revista no prédio do parlamento. Assim acabaram encontrando Guy Fawkes guardando a pólvora. Ele foi preso e torturado, revelando o nome dos outros conspiradores. No final foi condenado a morrer na forca, por traição e tentativa de assassinato. Os outros participantes revelados por Guy Fawkes acabaram também sendo executados. Ainda nos dias de hoje o rei ou rainha vai até o parlamento apenas uma vez ao ano para uma sessão especial, sendo mantida a tradição de se revistar os subterrâneos do prédio antes desta sessão.
Todo ano, no dia 5 de novembro, pessoas no Reino Unido, Nova Zelândia, África do Sul, Terra Nova e Labrador e São Cristóvão celebram a falha da conspiração, na chamada Noite de Guy Fawkes (o significado político do festival é de pouca importância atualmente). E, outro fruto popular da revolta, foi criada uma rima tradicional, em alusão à Conspiração da Pólvora:
Já o filme, V for Vendetta, é uma adaptação desta mesma graphic novel, adaptação esta produzida pelos Irmãos Wachowski. Nela, “V” – incomparavelmente carismático e ferozmente dotado na arte do combate e do logro, dá início a uma revolução quando detona dois marcos da cidade de Londres e toma o controle das ondas de rádio e TV, urgindo os seus concidadãos a rebelarem-se contra a tirania e opressão.
Agora, um fato curioso: convenientemente, o símbolo do suposto “herói” – um “V” vermelho, dentro de um círculo de mesma cor, é indubitavelmente semelhante ao símbolo da anarquia.
Mas onde se encaixa isto tudo afinal? Simples: “anarquismo” é uma palavra que deriva da raiz grega a?a???a — an (não, sem) e archê (governador). Em miúdos: sem governo.
No romance de Manuel Antônio de Almeida, há uma notável ausência das partes tropicais da sociedade – escravos e donos-de-escravos, como defendido anteriormente. O que resta então é o recheio do bolo que era o Rio de Janeiro da época, a casta social na qual Leonardo e muitas outras personagem situam-se. A única figura presente que representaria a “Lei” propriamente dita seria o Major Vidigal, que no final mostra-se também um pouco corrompido pela desordem corrente, ao ceder à tentação de Maria Regalada.
Dito isto, posso concluir mostrando que domina em Memórias de um Sargento de Milícias um clima completamente anárquico, mas não no sentido pelo qual o conhecemos: não, este é um anarquismo mais literal, mais conceitual do que prático, e define bem a sociedade carioca que fora caricaturada no romance.
Uma sociedade sem governo, que age por si e sempre em busca de seus interesses (direta ou indiretamente): seja na figura dos padrinhos intercedendo por Leonardo, seja o pai deste em seus casos amorosos (e nas conseqüências quase sempre desastrosas que eles geram), seja na vida de Luisinha, que tem como anjo da guarda e protetora a figura de D. Maria, e até mesmo no Vidigal, que se passa grande parte do romance a instaurar e defender o domínio da ordem pelas ruas fluminenses, ao final deixa-se trair por sua natureza rebelde. Com disse Candido na Dialética da Malandragem: “E assim temos o nosso ríspido dragão da ordem, a consciência ética do mundo, reduzido a imagem viva dos dois hemisférios (ordem e desordem), porque nesse momento em que transgride as suas normas ante a sedução da antiga e talvez de novo amante, está realmente equiparado a qualquer dos malandros que perseguia (…), ele agora é farda da cintura para cima, roupa caseira da cintura para baixo, encouraçando a razão nas bitolas da lei e desafogando o plexo solar nas indisciplinas amáveis”.
A fortiori, há de fato uma anarquia conceitual perpetrada nas personagens de Manuel Antônio de Almeida, sendo ela mais visível na nossa dupla dinâmica – Vidigal e Leonardo, o primeiro detentor da ordem que se deixa trair, o segundo amante da desordem que se deixa concertar. Um retrato fidedigno e leal, talvez, do contexto social da sociedade carioca da época narrada em Memórias de um Sargento de Milícias, ainda que feito de forma caricatural e aplainada por seu autor. A verdadeira dialética da malandragem estava no dia-a-dia daquela sociedade, que possuía um instinto dinâmico para garantir a própria sobrevivência. Um falso-realismo com ascendência romântica. Um verdadeiro anarquismo literário, se preferirem.