O clássico Memórias de um sargento de milícias completou em dezembro 150 anos. O primeiro romance urbano brasileiro em plena vigência do Romantismo, segundo os críticos, apesar de Teixeira e Souza ter lançado O Filho do Pescador, em 1843, é também a única obra publicada pelo carioca Manuel Antônio de Almeida, aos 22 anos. Bernardo de Mendonça, na introdução de Obra dispersa de Manuel Antônio de Almeida (Graphia Editorial, 1991) informa que “nenhum outro romancista brasileiro conseguiu atrair para uma de suas obras tamanha diversidade de iniciativas editoriais”. Foram mais de 30 edições diferentes em todos estes anos para um livroque, segundo Bernardo de Mendonça, encalhou em sua primeira edição.
O texto saiu anonimamente entre junho de 1852 e julho de 1853, em folhetins no Correio Mercantil, sem fazer sucesso entre os leitores, mas ainda assim foi reunido em livro em 1854 (1° volume) e em 1855 (2° volume), então com o pseudônimo “Um Brasileiro”. O livro retrata a vida do Rio de Janeiro no início do século XIX, época da presença da corte portuguesa no Brasil, entre 1808 e 1821, sem as fantasias e deformações da realidade marcantes naquele período.
O livro de Manuel Antônio de Almeida, curiosamente, só foi procurado depois de sua morte como que confirmando um dos seus textos: “o absurdo elege e é eleito desde longa data”. Antes do amigo Quintino Bocaiúva, em 1863, coordenar uma edição post-mortem, revisada por Machado de Assis, a 3ª edição e a primeira assinada por Manuel Antônio de Almeida, o editor J. F. Nunes, em Pelo-tas (RS), por sua conta e risco, publicava o livro ainda sob a assinatura de “Um Brasileiro”. Com zelo da propriedade autoral cunhou uma “edição clandestina”, dando início ao fenômeno editorial que se tornou Memórias de um Sargento de Milícias.
Jornalista, cronista, crítico literário e médico que se formou devido às dificuldades financeiras apenas em 1855, Manuel Antônio de Almeida deixou ainda Dois amores, peça de teatro (1861). A produção de crônicas e críticas literárias ficou dispersa. Patrono da cadeira n° 28 da Academia Brasileira de Letras, por escolha do fundador Inglês de Souza, Maneco, como era conhecido, viveu 30 anos de atribulações, principalmente financeiras, tendo de sustentar a mãe e duas irmãs. Nas cartas entre 1859 e 1861, aos amigos Quintino Bocaiúva, Ramos Paz e José de Alencar, escreve sobre as contas e os planos de devedor.
Apesar dos elogios à obra, o autor só mereceu até hoje uma biografia digna, Vida e obra de Manuel Antônio de Almeida, publicada em 1943. Por trás do clássico, está uma biografia ainda por escrever. Sem muito a que recorrer, até hoje apenas o acadêmico Marques Rebelo se aventurou na biografia do conterrâneo. Os raros resumos biográficos chegam a incluir erros inconcebíveis como na edição de Memórias de um sargento de milícias, publicada pela Klick Editora, ligada a um colégio de pré-vestibulares e lançada a preço popular por um grande jornal do país. O resumo biográfico aponta que o escritor morreu em um naufrágio na “baía de Guanabara”. Se não bastasse ter uma biografia tumultuada, ainda morreu no tumulto de um naufrágio.
Filho do tenente Antônio de Almeida e de Josefina Maria de Almeida, nascido no Rio de Janeiro, ficou órfão de pai aos 11 anos. Pouco se sabe de seus estudos preparatórios, mas foi aprovado na Faculdade de Medicina, em 1848. Mas as dificuldades financeiras para sustentar a mãe e duas irmãs fizeram com que só cursasse um ano, ingressando no jornalismo. Dez anos depois era nomeado Administrador da Tipografia Nacional, quando Machado de Assis lá trabalhava como aprendiz de tipógrafo. E no ano seguinte, foi nomeado 2º Oficial da Secretaria da Fazenda.
Na corrida por salário melhor, eram muitas as candidaturas de Manuel Antônio de Almeida: de professor em Friburgo a professor de economia no Rio; de sócio de casa de saúde a inspetor de escola itinerante ou secretário da Província. Dos muitos rumos, talvez tenha prevalecido a política com o apoio de João de Almeida Pereira, rico proprietário em Campos, apesar de confessar em carta ao amigo Quintino Bocaiúva não ter “grande confiança” nas relações com o latifundiário campista. No mesmo documento, insiste numa possível indicação para inspetor itinerante das escolas na Província. “Vê-me isso com zelo e urgência”.
Elísio Gomes Filho, autor de Morte no Mar (Museu Histórico Marítimo do Cabo Frio), obra que retrata os naufrágios que mataram Maneco e Gonçalves Dias, defende que o escritor viajou para o norte do estado para conseguir um cargo de inspetor escolar, já que não fazia parte do colégio eleitoral de Campos.
Manuel Antônio de Almeida embarcou para a morte no início da tarde de quinta-feira, dia 27 de novembro de 1861, quando entrou no vapor Hermes, com mais de 90 passageiros, incluindo escravos, um padre e dois franceses. O vapor de 198 toneladas era perfeito para navegar apenas no rio Paraíba e tinha 22 tripulantes, entre livres e escravos.
Elísio relata em seu livro que na madrugada três pessoas desembarcaram na enseada de Macaé e o navio zarpou para se chocar com o recife conhecido pelos pescadores como laje da Tábua, hoje Hermes. O choque se deu às 4 horas da manhã, segundo relato do comandante Ornelas. “O vapor mergulhou a proa nas ondas lentamente, submergiu-se, estando a praia na distância de umas duas milhas”, disse o comandante aos jornais.
O navio encostou a quilha no fundo; um bote salva-vidas se fez em pedaços se chocando contra o costado e o outro com o despenseiro, cinco escravos do navio e seis passageiros ainda apanhou mais três passageiros. Em socorro seguiram duas embarcações e um iate que recuperaram 19 pessoas agarradas aos mastros e a destroços, inclusive o comandante. Foram mais de 40 mortos e não se salvou nenhuma mulher. Elísio destaca que o número de mortos pode ser maior, já que eram apenas computados os brancos. Os escravos não tinham seus nomes na lista dos passageiros por serem considerados “mercadoria”.
O pesquisador escreve que com o passar dos dias os corpos apareciam nas praias, mas irreconhecíveis. “Ao sul de Macaé, na praia de Itapebussus, veio dar um cadáver de homem que beirava uns 25 anos. Também naquela praia apareceram caixões com livros, uma caixa com objetos de daguer-reótipo, uma agulha de marear e alguns lavatórios, entre outros objetos”.
Segundo o Correio Mercantil de 4 de dezembro de 1861, em carta assinada por um Dr. Portela: “(...) Apareceram quatro cadáveres de brancos na praia do Norte. Eu e três companheiros fizemos enterrá-los no cemitério do Barreto; mal sabia eu então que mandava dar sepultura cristã a um amigo nosso, o Dr. Manuel Antônio de Almeida. Quando hoje disseram-se que ele tinha vindo no Hermes e perecido no naufrágio, combinando a marca da roupa (ceroulas e meias) com os traços um pouco desfigurados do seu rosto, que na ocasião me pareceram estranhos, nenhuma dúvida tenho de que era seu um dos corpos que mandamos enterrar no cemitério...”
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