Inéditos e Esparsos

Une tristesse vague, une ombre de malheur Comme un frisson sur l'eau courut sur tout inon coeur
Dizia ainda o mesmo admirável poeta no seu inspirado livro — o Jocelyn.
Não havia, porém, médico que visse nestes dois alexandrinos a expressão de um facto digno de ser arquivado. Uma sombra de desgraça sobre o coração; eis aí um fenómeno que sem dúvida o mais experimentado especialista confessaria ignorar.
Abre-se o Camões, do Almeida Garrett — livro do qual não sei se os contendores da actual questão literária já fizeram também pataratas para se acometerem — depara-se logo ao princípio com estes singularíssimos versos:
Saudade Misterioso númen que aviventas Corações que estalaram e gotejam Não já sangue de vida mas delgado Soro de estanques lágrimas...
Veja o que aí vai! O anatómico intransigível, ao ler isto, não podia deixar de se afligir. Imaginava sentir as glândulas lacrimais a estremecerem no canto das órbitas e protestarem contra uma tal usurpação de direitos; e ele achava-lhes razão, achava-lhes razão contra Garrett e contra Lamartine, que é relapso nesta ordem de pecados, porque no Rafael tinha também escrito:
Dans cette larme qui tombe toule chaude de votre coeur sur ma main —
O Sr. Alexandre Herculano, carácter sisudo e o mais severamente português dos nossos tempos, não era isento de culpa perante o tribunal dos científicos escrupulosos. Em uma passagem da Harpa do Crente parece tentado a atribuir ao coração não sei que usos vocais e arvorá-lo em habitação de memória; tentativa que a ciência moderna, nisto mais intolerante que algumas das suas ascendentes, não podia acolher sem protestar.
A passagem a que me refiro está nestes dois versos:
Que férreo coração esquece a terra Que lhe escutou os infantis suspiros.
Pois Vítor Hugo ? Esse génio que tão bem e tanto à vontade sabe manejar a arma perigosa das antíteses e das imagens, tantas vezes fatal aos menos destros e experientes, e cujos arrojos líricos chegam a espantar, a intimidar até os mais dispostos a admirá-los, como não havia de escandalizar os fiéis respeitadores da frase ao pé da letra! Nas Contemplações, por exemplo, fala-nos ele de uma rapariga que, em apaixonado colóquio com o amante, lhe diz entre outras coisas:
Oh! de mon cceur leve les chastes voiles Si tu savais comme il est plein d'ètoilest
Com estes dois versos também os astrónomos tinham que ver.
Ora é verdade que Lamartine, que é tido por mais moderado do que o autor dos Miseráveis, já também dissera no Rafael: «Eu sentia que nunca mais haveria noite nem frialdade em meu coração, porque ele (Júlio) af luziria sempre.» Diga-me se não tinham alguma desculpa os que protestavam contra tais liberdades? A anatomia, que há tantos anos anda a estudar o coração pelo escalpelo e pelo microscópio, e que algum proveito julga haver tirado já desse estudo, devia encolher os ombros de apiedada, ouvindo o Sr. Mendes Leal começar assim a primeira das suas Indianas:
Foi-se a têmpera dos peitos Dos portugueses leões; Quem sabe de que eram feitos Seus robustos corações?
Quem sabe de que eram feitos! Se ela não veio a campo a elucidar esta dúvida, foi por uma espécie de contemplação delicada, por uma abstenção, como a do astrónomo cortês, diante de quem uma senhora põe em dúvida a exactidão das suas previsões.
O nosso Camões usou também de iguais liberdades para com o coração. Recorda-se, por exemplo, daquele:
Tu, só tu, puro amor, com força crua Que os corações humanos tanto obriga?
Filinto pinta-nos o coração devorado por consumições:
As penas e os cuidados que os humanos Corações remordiam como abrolhos.
Bocage descrevendo-nos a agonia de Leandro:
e de Hero o nome Do ansioso coração num ai lhe arranca.
A ciência ainda mal conformada com este ai, saído do coração, achou-se na presença de Espronceda, que, pelo contrário, lhe falava de um outro que para lá entrava:
un ay Que penetra el corazon
E já que estamos de volta com o lírico espanhol, não posso resistir ao desejo de transcrever por inteiro a sentidíssima quintilha do Estudiante de Salamanca, como mais outra heresia fisiológica, e das mais arrojadas:
Hojas dei arbol caídas Juguetes del viento son Las illusiones perdidas Ayl son ojas desprendidas De! arbol del corazon.
Com certeza não era da árvore circulatória que o poeta falou e por conseguinte — delito.
Fazer falar o coração em um aperto amigável de mão. é também frequente nos poetas.
Garrett, por duas vezes que eu saiba, deixou entrever tentação de encerrar a alma inteira dentro do coração. Foi na D. Branca
Que a alma nesses países regelados
(Refere-se à Inglaterra).
Toda no coração não vem aos lábios
E noutro lugar:
...quando a alma inteira Rompe do coração e acode aos lábios.
No mesmo poema ainda, não hesita em pôr na boca do próprio Diabo, em uma ocasião em que o maligno espírito sentia o alvoroço das pulsações cardíacas de um cavaleiro, que fugia com uma beleza nos braços, as seguintes palavras:
«Tu que bates assim, má tenção levas.»
Autorizar com o nome do Diabo, que dizem ser de peso em coisas destas, uma opinião que de encontro à ciência, atribui ao coração tenções reservadas é muito sério.
Muitas outras amostras, como estas, se podiam trazer para aquí, respigando-as pelos poetas de todas as nações e de todas as idades.
Estas, porém, bastam para nos levar a conceder, que provas evidentes de tolerância deu ainda assim a ciência, ouvindo quase resignada estas heterodoxas interpretações do coração e não saindo a campo a combatê-las.
Diga-me como podia ser agradável a qualquer erudito, rígido observador do suum cuique, ouvir falar de Balzac, o romancista, que provavelmente nunca viu um stothoscopo, nem teve notícias do plessi metro do Sr. Piorny, imortal descoberta que, à falta de épicos, o próprio autor celebrou em alexandrinos, e ouvir falar de Balzac, mas como? Como de um profundo conhecedor do coração humano, reputação adquirida com detrimento de Andral, de Bouillaud, de Laenec, de Beau e tantos que por longa experiência clínica a mereciam.
Caprichos de opinião pública! Mas o certo é que essas gratuitas ideias, assim espalhadas pelos poetas, ganharam raízes profundas, vulgarizaram-se e ao lado do coração fisiológico, científico, ortodoxo, órgão motor da circulação sanguínea, de há muito se insinuara outro, um coração convencional, romântico, poético, sem foro de ciência, contra o qual do ádito do santuário se fulminaria a excomunhão, se ele manifestasse tentações de lá entrar.
Seja porém dito em seu abono que nunca as manifestou; procedeu, como esses escritores, queridos das multidões e a quem as academias repelem, deviam todos proceder.
Agora é justo confessar que dos dois corações, o mais popular e simpático, não era decerto o primeiro, o legal, o académico.
Que dama namorada, que mãe extremosa, que poeta inspirado, que guerreiro sob o domínio da paixão de glória, que expatriado consumido pelas saudades da sua terra, que nauta, suspirando no meio da sublime mas desconsoladora solidão das vagas, aceitaria sem repugnância, aquele coração máquina, músculo, órgão impulsor do sangue e nada mais, que lhe apresentavam os sábios? Embora lho vitalizassem um pouco ultimamente, não era ainda nada, para aquele irresistível instinto que lhes pedia mais.
Verdade é que já lho não apresentavam como uma simples máquina hidráulica, uma espécie de bomba aspirante e expelente, concepção tão grosseiramente materialista que revoltou os próprios fisiologistas; mas, em todo o caso, melhor enervado e vivificado, promovido da categoria de máquina à de órgão, do mundo físico e mecânico ao vital; era ainda o órgão da circulação e não passava daí.
Os poetas deixavam dizer os fisiologistas e continuavam na sua propaganda e o vulgo aplaudia-os com alma e identificava-se com aquelas crenças poéticas, sem cuidar do seu carácter hipotético.
Quantas vezes os adeptos da ciência, os discípulos em via de iniciação, punham de lado, na banca do estudo, as páginas de ciência positiva sobre a vida do coração, para saborearem furtivamente a fisiologia de contrabando, que em todas as línguas do mundo mortas e vivas os poetas oferecem às imaginações seduzidas.
Mas o encanto era ainda poderoso; revelava-se por provas ainda mais evidentes.
Os próprios sacerdotes, os que proclamavam o interdito contra as falsas doutrinas, os que dentro do templo nunca permitiriam a entrada a essas metrificadas fisiologias do coração — não obstante lá terem entrado coisas muito menos racionais e em estilo incomparavelmente pior — os próprios sacerdotes digo, fecharam muita vez sobre si as portas do santuário e iam-se a praticar amavelmente com esses livres-pensadores e poetas paradoxais, agradados, sem saber porque, daqueles mesmos paradoxos, contra os quais seriam inexoráveis quando chamados a juízo no tribunal da ciência, Muitos foram até os que aprenderam a falar essa mesma linguagem profana, espécie de gíria poética que condenavam como ímpia, herética e atentatória contra os dogmas da fisiologia.
Haller, por exemplo, a quem principalmente se deve uma das mais fecundas revoluções que tem sofrido a ciência da vida — foi poeta também. E ainda hoje parece que os seus compatriotas mais o conhecem por essa qualidade, do que por aquela que lhe granjeou, na história da ciência, um nome imorredouro.
Ora ser poeta, sem falar alguma vez do coração à maneira dos poetas, não sei bem como possa ser. Desejava agora consultar as produções literárias deste sábio alemão, a ver se o encontrava, como suspeito, em flagrante delito de lesa-fisiologia, justamente naquele artigo, que, como poucos, ele tinha razão e interesse de respeitar.
Mas, no meio de tudo isto, uma coisa não perdoo eu aos homens de ciência — que é o não haverem meditado sobre quais pudessem ser os fundamentos desta crença tão geral que, a seu pesar, domina até o homem mais versado nas teorias científicas, e no próprio selvagem se manifesta, pois que na sua mímica expressão, a mão sobre o lado em que pulsa o coração, traduz a existência de um sentimento de afecto, de amizade, de amor, de dedicação — gesto, que o actor mais exercitado, pelo estudo, em exprimir vivamente as paixões humanas, não se esquece de imitar.
Fonte: www.portalsaofrancisco.com.br