Resumo: Há muitos pontos em comum entre o pensamento modernizador que fundamentou a concepção e a construção de Brasília e as opções estéticas que alicerçam a obra poética de João Cabral de Melo Neto. Em seus poemas sobre Brasília, é possível constatar tanto o endosso do caráter utópico do projeto de modernização quanto urna visão critica dos riscos desse projeto. Esboçando e avaliar do diferentes graus de combinação da tensão moderno/arcaico, João Cabral dissemina seus ideais de cidade, ou seja, de formulações possíveis da relação entre homem e espaço social.
Palavras-chave: modernidade - literatura contemporânea - João Cabral de Melo Neto - Brasília
Há duas associações inevitáveis quando se discute a questão da modernidade. Urna delas é a que estabelece um vínculo íntimo entre modernidade e cultura urbana. O homem moderno estaria representado, de maneira exemplar, pelo habitante das grandes cidades, testemunha de um novo conjunto de referências concretas e simbólicas que vai se constituindo a partir da segunda metade do século XIX, e que tem em Baudelaire seu primeiro grande cronista.
A segunda associação caracteriza a modernidade como um gesto de ruptura com a tradição, de recusa do passado como modelo para o presente e para o futuro. Modernização seria sinônimo de inovação, elaboração de um diferencial autônomo em relação àquilo que foi herdado. Na formulação precisa e paradoxal de Octavio Paz, o moderno se constitui como "tradição da ruptura" (Paz, 1984: 17).
Na equação que aproxima modernidade e cultura urbana, a arquitetura, sem dúvida alguma, ocupa um lugar privilegiado. Se a grande cidade é o espaço por excelência da modernidade, a arquitetura é a arte mais tipicamente moderna. Tal definição, no entanto, se torna problemática quando pensamos da perspectiva da segunda associação. Há, na arquitetura, um inevitável sentido de edificação - de perenidade, portanto. Isso faz com que o espaço da cidade, com suas construções sólidas e duráveis, seja um empecilho para o desejo de ruptura radical. O arquiteto moderno não pode apagar completamente as referências do passado que caracterizam uma cidade antiga: há obrigatoriedade de diálogo com a tradição. Seu gesto modernizador deve se contentar com a possibilidade de uma interferência na paisagem urbana constituída.
Existe, entretanto, uma alternativa para que o arquiteto moderno não seja apenas um transformador de cenários - transformação que pressupõe uma negociação com o passado. Ele pode ser um autêntico criador: para isso, é necessário fundar uma cidade inteira. Pode-se pensar, assim, que o surgimento das cidades totalmente planejadas atende ao desejo de radicalização do projeto da modernidade, exatamente por ser a cidade o espaço em que o moderno parece ser mais irrecusável e irreversível. Expandindo-se em direção a todos os espaços sociais - privados e públicos -, a arquitetura moderna assume plenamente sua condição de urbanismo. Uma cidade como Brasília é, nesse sentido, emblemática, cidade-modelo do gesto de uma modernização levada a seu extremo.
Há muitos pontos em comum entre o pensamento modernizador que fundamentou a concepção e a construção de Brasília e as opções estéticas que alicerçam a obra de João Cabral de Melo Neto. Podem-se citar, como algumas das linhas mestras da poética cabralina, a busca de racionalidade concretista, o planejamento minucioso das formas cuja autonomia é perseguida, em detrimento do subjetivismo e da ornamentação, a recusa da tradição vigente mediante a adoção de uma postura que considera crítica e criação como operações indissociáveis. Sobretudo, há o fascínio pela possibilidade de transplantar, para a poesia, o caráter construtivista da arquitetura. O próprio João Cabral enfatiza a grande influência exercida por nomes como Lincoln Pizzie, arquiteto, Joaquim Cardozo, calculista de Brasília e de outros projetos de Niemeyer, e, fundamentalmente, Le Corbusier: "Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu aprendi com Le Corbusier. A poesia é uma composição. Quando digo composição, quero dizer uma coisa construída, planejada - de fora para dentro" (Melo Neto, 1996: 2 1).
De maneira similar ao movimento de quem almeja "edificar do nada" uma cidade (Pedrosa, 1981: 352), o gesto do poeta é o gesto daqueles que "têm um vazio a preencher" (Melo Neto, 1996: 21).
Com a identificação entre poeta e arquiteto, constata-se, na obra de João Cabral de Melo Neto, o endosso do caráter utópico - tipicamente modernista - que está na base da concepção de Brasília. Tal concepção é marcada pela grandiloqüência das intenções, pelo "caráter monumental" do empreendimento. Nas palavras de Lúcio Costa: "Monumental não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão palpável, por assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa" (Costa, 1971: 124-5). Autoconsciência e racionalidade utópicas que ecoam com nitidez em versos como os do poema "Fábula de um arquiteto" (Melo Neto, 1994: 346):
O arquiteto: o que abre para o homem (tudo se sanearia desde casas abertas) portas por onde, jamais portas-contra, por onde, livres: ar luz razão certa.
Notável em João Cabral é que o fato de endossar o potencial utópico vislumbrado na ação do arquiteto não pressupõe o abandono de uma visão crítica dos riscos dessa ação. No mesmo poema, chama a atenção para a hipótese de que a arquitetura possa vir a "refechar o homem":
Onde vãos de abrir, ele foi amurando opacos de fechar; onde vidro, concreto; até refechar o homem: na capela útero, com confortos de matriz, outra vez feto.
(*) Doutor em Literatura Comparada, professor do Departamento de Semiótica e Teoria da Literatura da Universidade Federal de Minas Gerais.
Fonte: www.imaginario.com.br
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