Na trajetória literária de João Cabral de Melo Neto há, pelo menos, duas características inconfundíveis: a pernambucanidade e a hispanidade.
Que fator determinante concorreu par que João Cabral tanto se interessasse pela Espanha? Sabe-se que os escritores brasileiros, à exceção de Gilberto Freyre, não se dedicaram a exaltar as virtudes de Espanha como assunto de suas obras. França e Portugal, quase sempre, foram bem mais admirados e amados, quando menos por uma pronunciada afeição pelas obras literárias ali produzidas.
Mais do que um simples país cercado pelo Atlântico, o Mediterrâneo e os Pirineus, a Espanha foi denominada de “Espanhas”, no plural, pelos romanos, na Antiguidade, quando ali imperaram como colonizadores. Isso ressaltava uma geografia marcada pela adversidade. Hoje Espanha é um país formado por quinze comunidades, cada uma com suas peculiaridades, compondo um autêntico mosaico com culturas, costumes e climas distintos. Nesse sentido, pelo menos, a Espanha se assemelha ao Brasil.
Essa multiplicidade de características especiais talvez tenha sido o fator que mais concorreu para que o poeta João Cabral, em 1947, quando ali chegou para ocupar um cargo na representação diplomática brasileira, logo se adaptasse e transformasse a sua admiração pela terra de Cervantes em tema fundamental de sua obra poética, até hoje. São inúmeros os pontos de contatos entre os elementos integradores da temática nordestina e a hispânica na obra de João Cabral. A começar pela presença das águas, do sol, dos homens e mulheres severinos, dos toureiros, dos ciganos, do carnaval, dos rios, das secas, dos partidos arquitetônicos, da religiosidade etc. Há mesmo uma insistente retomada do realismo social, como resultado plausível na fatura poética, sempre persistindo o efeito bipolar - Pernambuco/Espanha – como assunto principal.
Aliás, a Ideia de que o rio simboliza a força criadora da natureza e do tempo, adicionada, ainda, à fertilidade e à irrigação da terra, em João Cabral cresce de tal sorte que se torna impossível não associar as várias imagens que inundam os poemas ligados ao Rio Capibaribe às margens sevilhanas do Guadalquivir como um elo entre os dois mundos ou povos ou culturas. Até mesmo como sinalização de um certo abandono ou esquecimento do melhor da vida – a infância de todos os homens – quando o poeta reivindica a palavra rio como mediador necessário no verso que diz: “...Terras que eu abandono/ que é de rio estar passando”.
Registre-se como curioso o título de suas obras escritas até 1956, que se chamou Duas Águas. Aqui, não há dúvida, estão presentes as duas maracás de sua geografia poética, mormente a julgar-se pela presença de Pernambuco e de Espanha nos assuntos dos poemas que integram os livro Paisagem como figuras. Até em O rio ou relação da viagem que fez o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife, a Espanha está presente com a sugestiva epigrafe de Berceo,que diz: “Quiero que compongamos io e tu uma prosa”.
Nomes e lugares de Espanha são recorridos de acordo com a preferência ou admiração do autor de Morte e Vida Severina. De Miguel Hernández, o poeta de Oriuella, a Eugenio D´Ors; de Miro a Picasso; de Juan Gris a Rafael Alberti; de homens simples a valentes toureiros etc., além de cativantes referências a Barcelona, Tarragona, Madri, Sevilha, Aragão, Castilha, Medinaceli, Burgos, Málaga etc., são figuras e paisagens revividas quase que num tom memorial.
Como se observa, João Cabral elegeu o seu “ponto de ancoragem no mundo”, para usar uma expressão de Merlau-Ponty, unindo num só esforço poético aquele sentimento que a maioria dos nossos autores tem expressado apenas como retórica de uma certa hispanidade que se perde na miragem de nossa formação. A concretude poética cabralina foi mais além. Parece que ele repetiu, no caso da temática, aquele mesmo logro de fazer a poesia e não apenas encontrá-la.
Diário de Pernambuco, 15 de junho de 1994. Caderno Especial dedicado a João Cabral
Fonte: www.palavrarte.com
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