Auto da Feira

A obra seguinte é chamada Auto da Feira. Foi representada ao mui excelente Príncipe El Rei Dom João, o terceiro em Portugal deste nome, na sua nobre e sempre leal cidade de Lisboa, às matinas do Natal, na era do Senhor de 1527.

Figuras: Mercúrio, Tempo, Serafim, Diabo, Roma, Amâncio Vaz, Diniz Lourenço, Branca Anes, Marta Dias, Justina, Leonarda, Teodora, Moneca, Giralda, Juliana, Tesaura, Merenciana, Doroteia, Gilberto, Nabor, Dionísio, Vicente, Mateus.

Entra primeiramente Mercúrio, e posto em seu assento, diz:

MERCÚRIO

    Pera que me conheçais,
e entendais meus partidos,
todos quantos aqui estais
afinai bem os sentidos,
mais que nunca, muito mais.
Eu sou estrela do céu,
e depois vos direi qual,
e quem me cá descendeu
e a quê, e todo o al
que me a mi aconteceu.

    E porque a astronomia
anda agora mui maneira,
mal sabida e lisonjeira,
eu, à honra deste dia,
vos direi a verdadeira.
Muitos presumem saber
as operações dos céus,
e que morte hão-de morrer,
e o que há-de acontecer
aos anjos e a Deus,

    e ao mundo e ao diabo.
E que o sabem têm por fé;
e eles todos em cabo
terão um cão polo rabo,
e não sabem cujo é.
E cada um sabe o que monta
nas estrelas que olhou;
e ao moço que mandou,
não lhe sabe tomar conta
d' um vintém que lh' entregou.

    Porém, quero-vos pregar,
sem mentiras nem cautelas,
o que per curso d' estrelas
se poderá adivinhar,
pois no céu nasci com elas.
E se Francisco de Melo,
que sabe ciência avondo,
diz que o céu é redondo,
e o sol sobre amarelo;
diz verdade, não lh' o escondo.

    Que se o céu fora quadrado,
não fora redondo, senhor.
E se o sol fora azulado,
d' azul fora a sua cor
e não fora assi dourado.
E porque está governado
per seus cursos naturais,
neste mundo onde morais
nenhum homem aleijado,
se for manco e corcovado,
não corre por isso mais.

    E assi os corpos celestes
vos trazem tão compassados,
que todos quantos nascestes,
se nascestes e crescestes,
primeiro fostes gerados.
E que fazem os poderes
dos sinos resplandecentes?
Que fazem que todalas gentes
ou são homens ou mulheres,
ou crianças inocentes.

    E porque Saturno a nenhum
influi vida contina,
a morte de cada um
é aquela de que se fina,
e não d' outro mal nenhum.
Outrossim o terremoto,
que às vezes causa perigo,
faz fazer ao morto voto
de não bulir mais consigo,
cantá de seu próprio moto.

    E a claridade encendida
dos raios piramidais
causa sempre nesta vida
que quando a vista é perdida,
os olhos são por demais.

    E que mais quereis saber
desses temporais e disso,
senão que, se quer chover,
está o céu pera isso,
e a terra pera a receber?
a lüa tem este jeito:
vê que clérigos e frades
já não têm ao Céu respeito,
mingua-lhes as santidades,
e cresce-lhes o proveito.

Et quantum ad stella Mars, speculum belli, et Venus, Regina musicae, secundum Joanes Monteregio:
    Mars, planeta dos soldados,
faz nas guerras conteúdas,
em que os reis são ocupados,
que morrem de homens barbados
mais que mulheres barbudas.
E quando Vénus declina,
e retrogada em seu cargo,
não se paga o desembargo
no dia que s' ele assina
mas antes por tempo largo.

Et quantum ad Taurus et Aries, Cancer Capricornius positus in firmamento coeli:

    E quanto ao Touro e Carneiro,
são tão maus d' haver agora
que quando os põe no madeiro,
chama o povo ao carniceiro
Senhor, c' os barretes fora.
Depois do povo agravado,
que já mais fazer não pode,
invoca o signo do Bode,
Capricórnio chamado,
porque Libra não lhe acode.

    E se este não hás tomado,
nem Touro, Carneiro assi,
vai-te ao sino do Pescado,
chamado Piscis em latim,
e serás remedeado:
e se Piscis não tem ensejo,
porque pode não no haver,
vai-te ao signo do Cranguejo,
Signum Cancer, Ribatejo,
que está ali a quem no quer.

Sequuntur mirabilia Jupiter Rex regum, Dominus dominantium.

    Júpiter, rei das estrelas,
deus das pedras preciosas,
mui mais precioso qu' elas
pintor de todalas rosas,
rosa mais fermosa delas;
é tão alto seu reinado ,
influência e senhoria,
que faz percurso ordenado
que tanto vale um cruzado
de noite como de dia.

    E faz que üa nau veleira
mui forte, muito segura,
que inda que o mar não queira,
e seja de cedro a madeira,
não preste sem pregadura.

Et quantum ad duodecim domus Zodiacus, sequitur declaratio operationem suam.

    Ao Zodíaco acharão
doze moradas palhaças,
onde os sinos estão
no Inverno e no Verão,
dando a Deus infindas graças.
Escutai bem, não durmais,
sabereis por conjeituras
que os corpos celestiais
não são menos nem são mais
que suas mesmas granduras.

    E os que se desvelaram,
se das estrelas souberam,
foi que a estrela que olharam,
está onde a puseram,
e faz o que lhe mandaram.
E cuidam que Ursa Maior,
Ursa Menor e o Dragão,
e Lepus, que têm paixão,
porque um corregedor
manda enforcar um ladrão.

    Não, porque as constelações
não alcançam mais poderes,
que fazer que os ladrões
sejam filhos de mulheres,
e os mesmos pais varões.
E aqui quero acabar.
E pois vos disse atéqui
o que se pode alcançar,
quero-vos dizer de mi,
e o que venho buscar.

    Eu são Mercúrio, senhor
de muitas sabedorias,
e das moedas reitor,
e deus das mercadorias:
nestas tenho meu vigor.
Todos tratos e contratos,
valias, preços, avenças,
carestias e baratos,
ministro suas pertenças,
até às compras dos sapatos.

    E porquanto nunca vi
na corte de Portugal
feira em dia de Natal,
ordeno üa feira aqui
pera todos em geral.
Faço mercador-mor
ao Tempo, que aqui vem;
e assi o hei por bem.
E não falte comprador.
Porque o tempo tudo tem.

Entra o Tempo, e arma üa tenda com muitas cousas e diz:

TEMPO

    Em nome daquele que rege nas praças
d'Anvers e Medina as feiras que têm,
começa-se a feira chamada das Graças,
à honra da Virgem parida em Belém.
    Quem quiser feirar,
venha trocar, qu' eu não hei-de vender;
todas virtudes qu' houverem mister
nesta minha tenda as podem achar,
a troco de cousas que hão-de trazer.

    Todos remédios, especialmente
contra fortunas ou adversidades
aqui se vendem na tenda presente;
conselhos maduros de sãs qualidades
    aqui se acharão.
    A mercadorias d' amor a rezão
justiça e verdade, a paz desejada,
porque a Cristandade é toda gastada
    só em serviço da opinião.

    Aqui achareis o temor de Deus,
que é já perdido em todos Estados;
aqui achareis as chaves dos Céus,
muito bem guarnecidas em cordões dourados.
    E mais achareis
soma de contas, todas de contar
quão poucos e poucos haveis de lograr
as feiras mundanas; e mais contareis
as contas sem conto qu' estão por contar.
    E porque as virtudes, Senhor Deus, que digo,
se foram perdendo de dias em dias,
com a vontade que deste ó Messias
memoria o teu Anjo que ande comigo,
    Senhor, porque temo
ser esta feira de maus compradores,
porque agora os mais sabedores
fazem as compras na feira do Demo,
e os mesmos Diabos são seus corretores.

Entra um Serafim enviado por Deus a petição do Tempo, e diz:

SERAFIM À feira, a feira igrejas, mosteiros,
    pastores das almas, Papas adormidos;
    comprai aqui panos, mudai os vestidos,
    buscai as samarras dos outros primeiros,
    os antecessores.
    Feirai o carão que trazeis dourado;
    ó presidentes do crucificado,
    lembrai-vos da vida dos santos pastores
    do tempo passado.

    Ó Príncipes altos, império facundo,
    guardai-vos da ira do Senhor dos Céus;
    comprai grande soma do temor de Deus
    na feira da Virgem, Senhora do Mundo,
    exemplo da paz,
    pastora dos anjos, luz das estrelas.
    À feira da Virgem, donas e donzelas,
    porque este mercador sabei que aqui traz
    as cousas mais belas.

Entra um Diabo com üa tendinha adiante de si, como bofalinheiro, e diz:

DIABO    Eu bem me posso gavar,
    e cada vez que quiser,
    que na feira onde eu entrar
    sempre tenho que vender,
    e acho quem me comprar.
    E mais, vendo muito bem,
    porque sei bem o que entendo;
    e de tudo quanto vendo
    não pago siza a ninguém
    por tratos que ande fazendo.

    Quero-me fazer à vela
    nesta santa feira nova.
    Verei os que vêm a ela,
    e mais verei quem m' estorva
    de ser eu o maior dela.
TEMPO    És tu também mercador,
    que a tal feira t' ofereces?
DIABO    Eu não sei se me conheces.
TEMPO   Falando com salvanor,
    tu Diabo me pareces.

DIABO    Falando com salvos rabos
    inda que me tens por vil,
    acharás homens cem mil
    honrados, que são Diabos,
    (que eu não tenho nem ceitil)
    e bem honrados te digo,
    e homens de muita renda,
    que têm dívida comigo.
    Pois não me tolhas a venda,
    que não hei nada contigo.

Tempo ao Serafim

TEMPO    Senhor, em toda maneira
    acudi a este ladrão,
    que há-de danar a feira.

DIABO    Ladrão? Pois haj' eu perdão
    se vos meter em canseira.
    Olhai cá, Anjo de bem,
    eu, como cousa perdida,
    nunca me tolhe ninguém
    que não ganhe minha vida,
    como quem vida não tem.

    Vendo dessa marmelada,
    e às vezes grãos torrados,
    isto não releva nada;
    e em todolos mercados
    entra a minha quintalada.
SERAFIM    Muito bem sabemos nós
    que vendes tu cousas vis.
DIABO    I há de homens ruins
    mais mil vezes que não bôs,
    como vós mui bem sentis.

    E estes hão-de comprar
    disto que trago a vender,
    que são artes de enganar,
    e cousas pera esquecer
    o que deviam lembrar.
    Que o sages mercador
    há-de levar ao mercado
    o que lhe compram melhor;
    porque a ruim comprador
    levar-lhe ruim borcado.

    E mais as boas pessoas
    são todas pobres a eito;
    e eu por este respeito
    nunca trato em cousas boas,
    porque não trazem proveito.
    Toda a glória de viver
    das gentes é ter dinheiro,
    e quem muito quiser ter
    cumpre-lhe de ser primeiro
    o mais ruim que puder.

    E pois são desta maneira
    os contratos dos mortais,
    não me lanceis vós da feira
    onde eu hei-de vender mais
    que todos à derradeira.
SERAFIM    Venderás muito perigo,
    que tens nas trevas escuras.
DIABO    Eu vendo perfumaduras,
    que, pondo-as no embigo,
    se salvam as criaturas.

    Às vezes vendo virotes,
    e trago d' Andaluzia
    naipes com que os sacerdotes
    arreneguem cada dia,
    e joguem até os pelotes.
SERAFIM    Não venderás tu aqui isso,
    que esta feira é dos céus:
    vai lá vender ao abisso,
    logo, da parte de Deus!
DIABO    Senhor, apelo eu disso.

    S' eu fosse tão mau rapaz
    que fizesse força a alguém,
    era isso muito bem;
    mas cada um veja o que faz,
    porque eu não forço ninguém.
    Se me vem comprar qualquer
    clérigo, ou leigo, ou frade
    falsas manhas de viver,
    muito por sua vontade;
    senhor, que lh' hei-de fazer?

    E se o que quer bispar
    há mister hipocrisia
    e com ela quer caçar,
    tendo eu tanta em perfia,
    porque lh' a hei-de negar?
    E se üa doce freira
    vem à feira
    por comprar um inguento,
    com que voe do convento,
    senhor, inda que eu não queira,
    lh' hei-de dar aviamento.

MERCÚRIO    Alto, Tempo, aparelhar,
    porque Roma vem à feira.
DIABO   Quero-me eu concertar,
    porque lhe sei a maneira
    de seu vender e comprar.

Entra Roma, cantando.

ROMA    "Sobre mi armavam guerra;
    "ver quero eu quem a mi leva.

    "Três amigos que eu havia,
    "sobre mi armam porfia;
    "ver quero eu quem a mi leva".

    Fala:

    Vejamos se nesta feira,
    que Mercúrio aqui faz,
    acharei a vender paz,
    que me livre da canseira
    em que a fortuna me traz.
    Se os meus me desbaratam,
    o meu socorro onde está
    Se os Cristãos mesmos me matam,
    a vida quem m' a dará,
    que todos me desacatam?

    Pois s' eu aqui não achar
    a paz firme e de verdade
    na santa feira a comprar,
    cant' a mi dá-me a vontade
    que mourisco hei-de falar.
DIABO    Senhora, se vos prouver,
    eu vos darei bom recado.
ROMA    Não pareces tu azado
    pera trazer a vender
    o que eu trago no cuidado.

    Não julgueis vós pola cor,
    porque em al vai o engano;
    cá dizem que sob mau pano
    está o bom bebedor;
    nem vós digais mal do ano.

    Eu venho à feira direita
    comprar paz, verdade e fé.
DIABO    A verdade pera quê?
    Cousa que não aproveita,
    e aborrece, pera que é?
    Não trazeis bons fundamentos
    pera o que haveis mister;
    e a segundo são os tempos,
    assim hão-de ser os tentos,
    pera saberdes viver.

    E pois agora à verdade
    chamam Maria Peçonha,
    e parvoíce à vergonha,
    e aviso à ruindade,
    peitai a quem vo-la ponha,
    a ruindade digo eu:
    e aconselho-vos mui bem,
    porque quem bondade tem
    nunca o mundo será seu,
    e mil canseiras lhe vem.

    Vender-vos-ei nesta feira
    mentiras vinta três mil,
    todas de nova maneira,
    cada üa tão subtil,
    que não vivais em canseira:
    mentiras pera senhores,
    mentiras pera senhoras,
    mentiras pera os amores,
    mentiras, que a todas as horas
    vos nasçam delas favores.

    E como formos avindos
    nos preços disto que digo,
    vender-vos-ei como amigo
    muitos enganos infindos,
    que aqui trago comigo.
ROMA    Tudo isso tu vendias,
    e tudo isso feirei
    tanto, que inda venderei,
    e outras sujas mercancias,
    que por meu mal te comprei.

    Porque a troco do amor
    de Deus, te comprei mentira,
    e a troco do temor
    que tinha da sua ira,
    me deste o seu desamor;
    e a troco da fama minha
    e santas prosperidades,
    me deste mil torpidades;
    e quantas virtudes tinha
    te troquei polas maldades.

    E pois já sei o teu jeito,
    quero ir ver que vai cá.
DIABO    As cousas que vendem lá
    são de bem pouco proveito
    a quem quer que as comprará.

Vai-se Roma ao Tempo e Mercúrio e diz Roma:

ROMA    Tão honrados mercadores
    não podem leixar de ter
    cousas de grandes primores;
    e quant' eu houver mister
    deveis vós de ter, senhores.
SERAFIM   Sinal é de boa feira
    virem a ela as donas tais,
    e pois vós sois a primeira,
    queremos ver que feirais
    segundo vossa maneira.

    Cá, se vós a paz quereis
    senhora, sereis servida,
    e logo a levareis
    a troco de santa vida;
    mas não sei se a trazeis.
    Porque, senhora eu me fundo
    que quem tem guerra com Deus,
    não pode ter paz c ' o mundo ;
    porque tudo vem dos céus,
    daquele poder profundo.

ROMA    A troco das estações
    não fareis algum partido,
    e a troco dos perdões,
    que é tesouro concedido
    pera quaisquer remissões?
    Oh, vendei-me a paz dos céus,
    pois tenho o poder na terra.
SERAFIM   Senhora, a quem Deus dá guerra,
    grande guerra faz a Deus,
    que é certo que Deus não erra.

    Vede vós que lhe fazeis,
    vede como o estimais,
    vede bem se o temeis ;
    atentai com quem lidais,
    que temo que caireis.
ROMA    Assi que a paz não se dá
    a troco de jubileus?
MERCÚRIO   Ó Roma, sempre vi lá
    que matas pecados cá,
    e leixas viver os teus.

    Tu não te corras de mi;
    mas com teu poder facundo
    assolves a todo o mundo,
    e não te lembras de ti,
    nem vês que te vás ao fundo.
ROMA    Ó Mercúrio, valei-me ora,
    que vejo maus aparelhos.
MERCÚRIO    Dá-lhe, Tempo, a essa senhora
    o cofre de meus conselhos:
    e podes-te ir muit' embora.

    Um espelho aí acharás,
    que foi da Virgem Sagrada,
    co' ele te toucarás
    porque vives mal toucada,
    e não sentes como estás:
    e acharás a maneira
    como emendes a vida:
    e não digas mal da feira;
    porque tu serás perdida,
    se não mudas a carreira.

    Não culpes aos reis do mundo,
    que tudo te vem de cima,
    pelo que fazes cá em fundo:
    que, ofendendo a causa prima,
    se resulta o mal segundo.
    E também o digo a vós
    e a qualquer meu amigo,
    quem não quer guerra consigo:
    tenha sempre paz com Deus,
    e não temerá perigo.

DIABO    Prepósito Frei Sueiro,
    diz lá o exemplo velho:
    dá-me tu a mi dinheiro,
    e dá ao demo o conselho.

Depois de ida Roma, entram dous lavradores, um per nome Amâncio Vaz e outro Diniz Lourenço, e diz Amâncio Vaz:
AMÂNCIO VAZ    Compadre, vás tu à feira?
DINIZ LOURENÇO    À feira, compadre.
AMÂNCIO VAZ    Assi,
    ora vamos eu e ti
    ó longo desta ribeira.
DINIZ LOURENÇO    Bofá, vamos.
AMÂNCIO VAZ    Folgo bem
    de te vir aqui achar.
DINIZ LOURENÇO    Vás tu lá buscar alguém,
    ou esperas de comprar?

AMÂNCIO VAZ    Isso te quero contar,
    e iremos patorneando,
    e er também aguardando
    polas moças do lugar.
    Compadre, enha mulher
    é muito destemperada,
    e agora, se Deus quiser,
    faço conta de a vender,
    e dá-la-ei por quase nada.

    Qu'eu quando casei com ela
    diziam-me, "Hétega é".
    E eu cuidei pola abofé
    que mais cedo morresse ela,
    e ela anda inda em pé.
    E porque era hétega assim
    foi o que m' a mim danou:
    avonda qu'ela engordou
    e fez-me hétego a mim.

DINIZ LOURENÇO    Tens boa mulher de teu:
    não sei que tu hás, amigo.
 AMÂNCIO VAZ    S'ela casara contigo
    renegaras tu com' eu
    e dixeras o que eu digo.
DINIZ LOURENÇO    Pois, compadre, cant'à minha,
    é tão mole e desatada,
    que nunca dá peneirada
    que não derrame a farinha.

    E não põe cousa a guardar,
    que a tope quanda a cata;
    e por mais que homem se mata,
    de birra não quer falar.
    Trás d' üa pulga andará
    três dias, e oito, e dez,
    sem lhe lembrar o que fez,
    nem tão pouco o que fará.

    Pera que t'hei-de falar?
    Quando ontem cheguei do mato
    pôs üa enguia a assar,
    e crua a leixou levar,
    por não dizer sape a um gato.
    Quant'a mansa, mansa é ela;
    dei-m'ê logo conta disso.
AMÂNCIO VAZ    Juro-t'eu que mais vale isso
    cinquenta vezes qu'ela.

    A minha te digo eu
    que se a visses assanhada,
    parece demoninhada,
    ante São Bertolameu.
DINIZ LOURENÇO   Já sequer terá esp'rito:
    mas renega da mulher
    que ó tempo do mister
    não é cabra nem cabrito.

  AMÂNCIO VAZ    A minha tinh'eu em guarda
    pera bem da minha prol,
    cuidando que era ourinol,
    e tornou-se-me bombarda.
    Folga tu que ess'outra tenhas,
    porque a minha é tal perigo,
    que por nada que lhe digo
    logo me salta nas grenhas.

    Então tanto punho seco
    me chimpa nestes focinhos;
    eu chamo polos vizinhos,
    e ela nego dar-me em xeco.
DINIZ LOURENÇO    Isso é de coraçuda;
    não cures de a vender,
    que s'alguém te mal fizer,
    já sequer tens quem te acuda.

    Mas a minha é tão cortês,
    que se viesse ora à mão
    que m'espancasse um rascão,
    não diria, "Mal fazês".
    Mas antes s' assentaria
    a olhar como eu bradava.
    Todavia a mulher brava
    é, compadre, a qu'eu queria.

AMÂNCIO VAZ    Pardeus! Tanto me farás
    que feire a minha contigo.
DINIZ LOURENÇO    Se queres feirar comigo,
    vejamos que me darás.
AMÂNCIO VAZ    Mas antes m' hás-de tornar
    pois te dou mulher tão forte,
    que te castigue de sorte
    que não ouses de falar,
    nem no mato nem na corte.

    Outro bem terás com ela:
    quando vieres da arada,
    comerás sardinha assada,
    porqu ' ela jenta a panela.
    Então geme, pardeus, si,
    diz que lhe dói a moleira.
DINIZ LOURENÇO  Eu faria per maneira
    que esperasse ela por mi.
AMÂNCIO VAZ   Que lh'havias de fazer?

DINIZ LOURENÇO   Amâncio Vaz, eu o sei bem.
AMÂNCIO VAZ  Diniz Lourenço, ei-las cá vêm!
    Vamo-nos nós esconder,
    vejamos que vêm catar,
    qu'elas ambas vêm à feira.
    Mete-te nessa silveira,
    qu'eu daqui hei-d' espreitar.

Vêm Branca Anes a brava, e Marta Dias a mansa, e vem dizendo a brava:

BRANCA ANES   Pois casei má hora, e nela,
    e com tal marido, prima,
    comprarei cá üa gamela,
    para o ter debaixo dela,
    e um grão penedo em cima.
    Porque vai-se-me às figueiras,
    e come verde e maduro ;
    e quantas uvas penduro
    jeita nas gorgomileiras:
    parece negro monturo.

    Vai-se-m'às ameixieiras
    antes que sejam maduras,
    ele quebra as cerejeiras,
    ele vindima as parreiras,
    e não sei que faz das uvas.
    Ele não vai à lavrada,
    ele todo o dia come,
    ele toda a noite dorme,
    ele não faz nunca nada,
    e sempre me diz que há fome.

    Jesu! Jesu! Posso-te dizer
    e jurar e tresjurar,
    e provar e reprovar,
    e andar e revolver,
    qu' é melhor pera beber,
    que não pera maridar.
    O demo que o fez marido,
    que assim seco como é
    beberá a torre da Sé!
    Então arma um arruído
    assi debaixo do pé.

MARTA DIAS    Pois bom homem parece ele.
DINIZ LOURENÇO   Aquela é a minha frouxa.
MARTA DIAS    Deu-t'ele a fraldinha roxa?
BRANCA ANES   Melhor lh'esfole eu a pele.
    Que homem há i da puxa.
    Ó diabo que o eu dou,
    que o leve em fatiota,
    e o ladrão que m'o gabou;
    e o frade que me casou
    inda o veja na picota.

    E rogo à Virgem da Estrela,
    e a santa Gerjalem,
    e ós choros de Madanela
    e à asninha de Belém,
    que o veja ir à vela
    pera donde nunca vem.
DINIZ LOURENÇO    Compadre, no mais sofrer:
    sai de lá desse silvado.
AMÂNCIO VAZ    Pera eu ser arrepelado.
    Não havi'eu mais mister.

DINIZ LOURENÇO  E não n'hás tu de vender?
AMÂNCIO VAZ   Tu dizes que a qués feirar.
DINIZ LOURENÇO  Não qu'ela se me tomar
    leixar-m'á quando quiser.
    Mas demo-las à má estreia;
    e voto que nos tornemos,
    e er depois tornaremos
    com as cachopas d'aldeia:
    entonces concertaremos.

AMÂNCIO VAZ    Isso me parece a rni
    muito melhor que eu ir lá.
    Oh, que couces que me dá,
    quando me colhe sob si!
DINIZ LOURENÇO  Cant' àquela si dará.
DIABO    Mulheres, vós que quereis?
    Nesta feira que buscais?
MARTA DIAS    Queremo-la ver, no mais.
    Pera ver em que tratais,
    e as cousas que vendeis.

    Tendes vós aqui anéis?
DIABO    Quejandos? De que feição?
MARTA DIAS   D'uns que fazem de latão.
DIABO    Pera as mãos, ou pera os pés?
MARTA DIAS   Não - Jesu, nome de Jesu,
    Deus e homem verdadeiro!

Foge o Diabo e Marta Dias diz:

MARTA DIAS   Nunca eu vi bofalinheiro
    tão prestes tomar o mu.
    Branc'Anes mana, crê tu
    que, como Jesu é Jesu,
    era este o Diabo inteiro.

BRANCA ANES   Não é ele pau de boa lenha,
    nem lenha de bom madeiro.
MARTA DIAS   Bofá, nunc'ele cá venha.
BRANCA ANES   Viagem de Jão Moleiro,
    que foi pola cal d'azenha.
MARTA DIAS   Pasmada estou eu de Deus
    fazer o Demo marchante!
    Mana, daqui por diante
    não caminhemos nós sós.


BRANCA ANES   S'eu soubera quem ele era,
    fizera-lhe bom partido:
    que me levara o marido,
    e quanto tenho lhe dera,
    e o toucado e o vestido.
    Inda que mais não levara
    desta feira, em extremo.
    Me alegrara e descansara,
    se o vira levar o Demo,
    e que nunca mais tornara.

    Porque, inda que era Diabo,
    fizera serviço a Deus,
    e a mi mercê em cabo;
    e viera-me dos céus,
    como vem a frol ao nabo.

Vão-se ao Tempo e diz Marta Dias:

MARTA DIAS   Dizei, senhores de bem,
    nesta tenda, que vendeis?
SERAFIM    Esta tenda tudo tem;
    vede vós o que quereis,
    que tudo se fará bem.
    Consciência quereis comprar,
    de que vistais vossa alma?

MARTA DIAS   Tendes sombreiros de palma
    muito bons pera segar,
    e tapados pera a calma?
SERAFIM    Consciência digo eu,
    que vos leve ao Paraíso.
BRANCA ANES    Não sabemos nós qu'é isso:
    dai-o ó decho por seu,
    que já não é tempo disso.

MARTA DIAS   Tendes vós aqui burel,
    do pardo de lã meirinha?
BRANCA ANES   Eu queria üa pucarinha
    pequenina pera mel.
SERAFIM    Esta feira é chamada
    das virtudes em seus tratos.
MARTA DIAS   Das virtudes! E há aqui patos?
BRANCA ANES   Quereis feirar a cevada
    quatro pares de sapatos?
SERAFIM    Oh, piedoso Deus eterno!
    Não comprareis pera os céus
    um pouco d'amor de Deus
    que vos livre do Inferno?
BRANCA ANES   Isso é falar per pincéus.

SERAFIM   Esta feira não se fez
    para as cousas que quereis.
BRANCA ANES   Pois cant' a essas que vendeis,
    daqui afirmo outra vez
    que nunca as vendereis.
    Porque neste sigro em fundo
    todos somos negligentes:
    foi ar que deu polas gentes,
    foi ar que deu polo mundo,
    de que as almas são doentes.

    E se hão-de correger
    quando for todo danado:
    muito cedo se há-de ver;
    que já ele não pode ser
    mais torto nem aleijado.
    Vamo-nos, Marta, à carreira,
    que as moças do lugar
    virão cá fazer a feira,
    que estes não sabem ganhar,
    nem têm cousa que homem queira.

MARTA DIAS   Eu não vejo aqui cantar,
    nem gaita, nem tamboril,
    e outros folgares mil,
    que nas feiras soem d'estar:
    e mais feira de Natal,
    e mais de Nossa Senhora,
    e estar todo Portugal.
BRANCA ALVES   S'eu soubera que era tal,
    não estivera eu cá agora.

Vêm à feira nove moças dos montes, e três mancebos, todas com cestos nas cabeças, cobertos, cantando. E, como chegam, se assentam por ordem a vender; e diz-lhe o Serafim:
SERAFIM   Pois vindes vender à feira,
    sabei que é feira dos céus;
    por tal, vendei de maneira
    que não ofendais a Deus,
    roubando a gente estrangeira.
TESAURA   Responde-lhe, Leonarda,
    tu Justina, ou Juliana.
JULIANA   Mas responda-lhe Giralda,
    Tesaura, ou Merenciana.

MERENCIANA    Responde-lhe, Teodora,
    porque creio que a ti creia.
TESAURA   Responda-lhe Doroteia.
    pois que mora,
    junto c'o Juiz d'aldeia.
DOROTEIA    Moneca responderá
    que falou já com senhor.
MONECA    Responde-lhe tu, Nabor,
    contigo s'entenderá.

    Ou Denísio, ou Gilberto,
    qualquer de vós outros três
    e não vos embaraceis ou torveis,
    porque é certo
    que bem vos entendereis.
GILBERTO   Estas cachopas não vêm
    à feira nego a folgar,
    e trazem de merendar
    nestes cestos que i têm.

    Mas pois quanto ao que entendo,
    sois, samica, anjo de Deus;
    quando partistes dos céus,
    que ficava Ele fazendo?
SERAFIM    Ficava vendo o seu gado.
GILBERTO   Santa Maria! Gado há lá?
    Oh, Jesu! como o terá
    o Senhor gordo e guardado!

    E há lá boas ladeiras,
    como na serra d'Estrela?
SERAFIM    Si.
GILBERTO  E a Virgem que faz ela?
SERAFIM    A Virgem olha as cordeiras,
    e as cordeiras a ela.
GILBERTO   E os Santos de saúde
    todos, a Deus louvores?
SERAFIM    Si.
GILBERTO   E que léguas haverá
    daqui à porta do Paraíso,
    onde São Pedro está?

NABOR   Lá vêm ó redor das vinhas
    compradores a comprar
    samica ovos e galinhas.
DOROTEIA   Não lhe hei-de vender as minhas,
    que as trago pera dar.

Vêm dous compradores,  um per nome Vicente e outro Mateus, e diz Mateus a Justina:

MATEUS  Vós rosa do amarelo,
    mana, tendes i queijadas.
JUSTINA   Tenho vosso avô marmelo!
    Conhecei-lo?
MATEUS  Aqui estão emborilhadas.
JUSTINA   Estade má ora quedo,
    pela vossa negra vida.
MATEUS  Menina, não hajais medo:
    vós sois mais engrandecida
    que Branca de Figueiredo.

    Se trazeis ovos, meus olhos,
    não m'os vendais a ninguém.
JUSTINA   Andar em burra e ter bem:
    ouvide ora o rasca-piolhos
    (azeite no micho!) em que vem!
VICENTE   Minha vida, Leonarda,
    traz caça pera vender?
LEONARDA  Vossa vida negra e parda
    não lhe abastará comer
    da vaca com da mostarda?

VICENTE   E a mesa de meu senhor
    irá sem ave de pena?
LEONARDA   Quem? E vós sois comprador?
    Pois nem grande nem pequena
    não matou o caçador.
VICENTE   Matais-me vós logo bem
    com dous olhinhos qu'eu digo.
LEONARDA    Mais vos mata a vós o trigo,
    porque não vale a vintém,
    e traz mau micho consigo.

VICENTE   Vós fazeis de mi rascão.
LEONARDA   Pação vos fizestes vós;
    porém bem nos vimos nós
    guardar bois no Alqueidão.
MATEUS   Que vindes vender à feira,
    Teodora, alma minha?
    minha alma, minha canseira?
    Trazei algüa galinha?
TEODORA   São vossa alma galinheira.

    Que má ora cá viestes
    pera quem vos pôs no paço!
MATEUS    Senhora, eu vos faço,
    que vos agastais tão prestes?
    Dizei-me vós, Teodora,
    trazeis vós tal cousa e tal
    deste jeito, muito embora?
    Mas lá dessoutro metal
    não falam à lavradora.

VICENTE    Senhora Moneca, trazeis
    algum cabrito recente?
MONECA   Não bofé, Senhor Vicente:
    quisera ora trazer três,
    de que vós foreis contente.
VICENTE   Juro à Santa Cruz de palha
    qu' hei-de ver o que aqui está.
MONECA   Não revolvais aramá,
    que não trago nemigalha.

VICENTE   Não me façais descortês,
    nem queirais ser tão garrida.
MONECA   Pola vossa negra vida!
    Olhade como é cortês !
    Oh, que lhe saia má saída.
MATEUS   Giralda, eu achar-vos-ei
    dous pares de passarinhos?
GIRALDA  Irei por eles aos ninhos,
    entonces os venderei.
    Comereis vós estorninhos?
MATEUS   Respondeis como mulher
    muito de sua vontade.
GIRALDA   Pois digo-vo-la verdade:
    pássaros hei-de vender?
    Olhai aquela piedade!

VICENTE    Senhora minha Juliana
    peço-vos que me faleis
    discreta palenciana,
    e dizei-me que vendeis.
JULIANA    Vendo favas de Viana.
VICENTE    Tendes alguns laparinhos?
JULIANA    Sim, de porca.
VICENTE    Nem coelhos?
JULIANA    Quereis comprar dous francelhos,
    pera caçardes ratinhos?
JULIANA    Quero, polos Evangelhos!

MATEUS    Vós, Tesaura, minha estrela,
    não viríeis cá em vão.
TESAURA   Pois si, vossa estrela vos er'ela:
    como aquilo é de rascão!
MATEUS    Mas como isso é de donzela!
    Porém vá já como vai,
    e casemo-nos, senhora.
TESAURA   Pois casai co'ele, casai,
    Casar, ma ora, meu  ai,
    casar, má hora.

MATEUS    Porém trazeis algum pato?
TESAURA   E quanto dareis por ele?
    Hui, e ele revolve o fato:
    olho mau se meta nele.
MATEUS    Não trazeis vós o qu'eu cato.
VICENTE   Merenciana deve ter
    neste cesto algum cabrito.
    Não m'haveis de revolver
MERENCIANA
    senão, pardeus, que dê grito
    tamanho, que haveis de ver.

VICENTE    Eu hei-de ver que trazeis.
MERENCIANA   se vós no cesto bulis. . .
VICENTE    Senhora, que me fareis?
MERENCIANA   Um aqui-d'el-rei, ouvis?
    Não sejais vós descortês.
VICENTE  Não quero senão amores,
    pois vosso, senhora, sou.
MERENCIANA   Amores de vosso avô,
    o da ilha dos Açores.
    Andar aramá vós só.

MATEUS    Vamo-nos daqui, Vicente.
VICENTE   Bofá vamos.
MATEUS    Nunca vi tal feira.
VICENTE   Vamos comprar à Ribeira,
    que anda lá cousa mais quente.

Vão-se os compradores, e diz o Serafim às moças:

SERAFIM   Vós outras quereis comprar
    das virtudes?
    Senhor, não.
SERAFIM   Saibamos por que rezão.
DOROTEIA   Porque no nosso lugar
    não dão por virtudes pão.
    Nem casar não vejo eu
    por virtudes a ninguém.
    Quem tiver muito de seu,
    e tão bons olhos com'eu
    sem isso casará bem.

SERAFIM    Pois porque viestes ora
    cansar à feira de pé?

TEODORA    Porque nos dizem que é
    feira de Nossa Senhora:
    e vedes aqui porquê.
    E as graças que dizeis
    que tendes aqui na praça,
    se vós outros as vendeis,
    a Virgem as dá de graça
    aos bons, como sabeis.

    E porque a graça e alegria,
    a madre da consolação
    deu ao mundo neste dia,
    nós vimos com devação
    a cantar-lhe úa folia.
    E pois que já descansámos
    assi em boa maneira,
    moças, assi como estamos,
    demos fim a esta feira,
    primeiro que nos partamos.

Alevantam-se todas, e ordenadas em folia cantaram a cantiga seguinte, com que se despediram.
Cantiga.

I CORO    "Blanca estais colorada,
    "Virgem sagrada.
    "Em Belém vila do amor
    "da rosa nasceu a flor:
    "Virgem sagrada."

II CORO    "Em Belém vila do amor
    "nasceu a rosa do rosal:
    "Virgem sagrada."

I CORO    "Da rosa nasceu a flor:
    "pera nosso Salvador:
    "Virgem sagrada."

II CORO    "Nasceu a rosa do rosal,
    "Deus e homem natural:
    "Virgem sagrada."

    Gratias agamus
    Domino Deo nostro