Notação Biográfica

Fernando da Rocha Peres

Nasceu Gregório de Mattos e Guerra, conhecido como "Boca do Inferno", em Salvador, Bahia, em 23/12/1636 [1]. Neto de Pedro Gonçalves de Mattos ( familiar do Santo Ofício da Inquisição, em 1618), morador na Bahia [2], e filho de Gregório de Mattos, ambos naturais de Guimarães, Portugal, com Maria da Guerra. Pertencente a uma família, os Mattos da Bahia, de proprietários rurais, arrematadores de obras (empreiteiros), de funcionários da administração na colônia, Gregório de Mattos vai estudar no célebre Colégio dos Jesuítas (1642), na Bahia, e seguir para Lisboa, em 1650. Dois anos depois (1652) vamos encontrá-lo matriculado na veneranda Universidade de Coimbra, de onde sai graduado em Canones no ano de 1661. Casa-se em Lisboa, no ano da formatura, com D. Michaela de Andrade, pertencente a uma família de magistrados. Vendo o seu caminho facilitado para uma carreira jurídica, em Portugal, no ano de 1663 é nomeado Juiz de Fora de Alcácer do Sal, depois de constatada a sua "pureza de sangue" [3]. Naquela Vila, vai exercer a função de Provedor da Santa Casa de Misericórdia, para o período1665-1666 [4]. Dois anos mais tarde (1668), vamos saber que Gregório de Mattos vai ser investido da honrosa incumbência de representar a Bahia nas Cortes, em Lisboa, realizadas em 27 de Janeiro. Três anos após (1671) o magistrado ascende ao cargo de Juiz do Cível em Lisboa, para, no ano seguinte (1672), ser indicado pelo Senado da Câmara da Bahia na condição de Procurador. Em 1674 novamente vamos sabê-lo representante da Bahia nas Cortes (20 de Janeiro) e no mesmo ano destituído do mandato de Procurador. Batiza o magistrado uma filha natural em Lisboa, em 1674, chamada Francisca, na Freguesia de S. Sebastião da Pedreira. Fica viúvo em 1678, e não temos notícia de filho seu nascido de D. Michaela de Andrade. Já em 1679 é nomeado por D. Gaspar Barata de Mendonça para Desembargador da Relação Eclesiástica da Bahia e Tesoureiro-Mór da Sé, em 1682, por D. Pedro II, tendo recebido a tonsura (ordens menores) no ano anterior (1681). Reconhecido como magistrado de importância e renome, vê suas sentenças publicadas pelo jurisconsulto Emanuel Alvarez Pegas nos anos de 1682 e 1685 [5] ,e embarca Gregório de Mattos para a Bahia, aqui chegando no início do ano de 1683, depois de trinta e dois anos vividos em Portugal. D. Gaspar Barata havia renunciado ao cargo de Arcebispo, sem vir ocupá-lo na Bahia, o que fez o clérigo Gregório de Mattos retornar apressado para entrar na posse de suas prebendas eclesiásticas. Em 1683, meses após a sua chegada, é destituído dos cargos junto a cúria baiana, pelo novo Arcebispo D. Fr. João da Madre de Deus [6], por não querer usar batina e por não aceitar a imposição das ordens maiores necessárias para o exercício das suas funções junto ao Arcebispado. Já na Bahia, após sua chegada vamos ver atiçada a sua veia de poeta satírico diante da vida relaxada e promíscua na Cidade de Salvador. Como os padres não davam o bom exemplo (os da Sé vão ser chamados de "presépio de bestas "), com algumas exceções, resolve Gregório de Mattos ser o cronista dos seus costumes e de toda a sociedade baiana : dos ricos e governantes, dos brancos e negros, dos colonos e escravos, da nobreza nativa e da sua galeria de mulatas. Despido da sua identidade clerical, como já havia feito com a de magistrado, Gregório de Mattos vai desenvolver então a sua veia poética ( uma nova identidade ) para o caminho da sátira ( chama os habitantes da Bahia de "canalha infernal "), do erotismo, da pornografia, da poesia grotesca, lírica e sacra. Dentro da melhor tradição da poesia medieval ibérica, da poesia popular, e leitor dos poetas do Século de Ouro Espanhol [7], Gregório de Mattos vai encordoar a sua lira e afiar a sátira. Em 1684 dá início o poeta a suas andanças pelo Recôncavo da Bahia de Todos os Santos, nas raízes telúricas de seus maiores, em companhia de amigos, dentre os quais o poeta português Tomás Pinto Brandão (1664-1743). Nesta década de 1680 vai casar, na Bahia, com Maria de Póvoas (ou dos Povos ?), com quem terá um filho chamado Gonçalo. Por sua vida livre de "homem solto sem modo de cristão " será denunciado à Inquisição em Lisboa, no ano de 1685, por Antonio Roiz da Costa, promotor do Eclesiástico na Bahia e personagem que será satirizado pelo poeta [8]. A peça ou carta decorrente da denúncia de heresia ( fala mal de Jesus Cristo e não tira barrete da cabeça quando uma procissão passa na porta de sua casa ) não tem seguimento, pois uma testemunha havia partido da Bahia e outra morrido. Acreditamos que foi o prestígio da família dos Mattos, dentre outros fatores, que fez esvaziar-se a denúncia contra o poeta. No ano de 1691 entra Gregório de Mattos para a condição de Irmão da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, e no ano seguinte paga uma dívida em dinheiro contraída junto a Santa Casa de Lisboa. Por seus poemas satíricos contra tudo e contra muitos, principalmente pelos retratos que faz do Governador Antonio Luiz Gonçalves da CÂmara Coutinho [9], o " fanchono beato " vê-se ameaçado pelos filhos desta autoridade, os quais prometem matá-lo. O Governador João de Alencastro [10], seu amigo, com outros companheiros do poeta, promove um complô para prendê-lo e enviá-lo para Angola no ano de 1694, sem direito de voltar para a Bahia, o que sucede para enorme desgosto do poeta. Em Luanda, no ano de sua chegada, em 1694, envolve-se o poeta em uma conspiração de militares, por questão do soldo e mudança do padrão monetário, e vai favorecer o governo local, na pessoa do Governador Henrique Jacques de Magalhães, colaborando com a prisão e condenação dos cabeças da sedição [11]. Como recompensa recebe o poeta a permissão de voltar ao Brasil, para ficar em Recife - longe da Bahia e dos seus desafetos - onde vai morrer em 1695, de uma febre contraída na África, com 59 anos, no dia 26 de novembro e seis dias após a morte de Zumbi dos Palmares.
A poesia apógrafa ( reprodução de um manuscrito original ) de Gregório de Mattos e Guerra (1636-1695) permaneceu guardada em códices existentes em Portugal (o mais importante é da Biblioteca Nacional de Lisboa, Secção de Reservados, número 3.576) no Brasil e nos USA. Foi o historiador Francisco Adolfo Varnhagen, em 1850, que publicou um conjunto de 39 poemas no "Florilégio da Poesia Brasileira ", editado em Lisboa. Daí em diante Gregório de Mattos passa a constar de várias antologias e "Parnasos", até hoje, tendo a sua obra apógrafa publicada, em parte, por Alfredo do Valle Cabral (1882), Afrânio Peixoto (1923 - 1933), em 6 volumes ( Edição da Academia Brasileira de Letras ) e James Amado (1968), que edita as suas "completas ", em 7 volumes ,reeditada em 2 volumes, Record,1990, com o título de Obra Poética, contendo toda a parte erótica, pornográfica e grotesca, até então desconhecida e que Afrânio Peixoto havia censurado.
A fortuna crítica do poeta inicia-se no século XVIII com uma biografia manuscrita que aparece anexa a alguns códices, com variantes, e da autoria de Manuel Pereira Rabelo. Foi esta biografia uma peça importante para que nós pudéssemos promover a revisão da vida do poeta, na busca incessante de fontes documentais. A partir do século XIX, e até hoje, o poeta Gregório de Mattos teve avolumada sua biografia e os estudos a respeito de sua vida e sua obra. No momento estamos concluindo uma mais extensa indicação de fontes bibliográficas e documentais sobre o poeta satírico mais importante da literatura de língua portuguesa no período barroco. A obra apógrafa de Gregório de Mattos mais cedo ou mais tarde será objeto de uma edição crítica, contando a sua realização com uma equipe de especialistas. Como disse o Mestre Antonio Houaiss, "o fato é que a pesquisa histórica em torno da vida de Gregório já atingiu um inesperável grau de documentação, pois há duas décadas a documentabilidade de sua vida era algo de que não se esperava muito ". Em verdade, a pesquisa, no sentido biográfico, muito tem ajudado e pode ajudar, com a localização de documentos e códices poéticos, para o retrato do poeta vagante Gregório de Mattos e para o conhecimento da sua obra. Temos nos dedicado a localizar, no Brasil e em Portugal, essas fontes documentais (vida e obra), que abrem caminho para uma compreensão do poeta brasileiro e das suas identidades como magistrado, em Portugal, e clérigo e poeta na sua terra natural, o Brasil, que ele vai chamar, certa feita, de "peste do pátrio solar".

Notas:
Fixamos o ano de nascimento do poeta para 1636 a partir de documento: Sumários Matrimoniais da Câmara Eclesiástica de Lisboa, 1661, Maço 2, número 69, manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa, Secção de Reservados. Em 1986 o Centro de Estudos Baianos da UFBA organizou um Simpósio sobre a vida e obra de Gregório de Mattos e Guerra, nos seus 350 anos de nascimento. Na oportunidade a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos lançou um selo comemorativo, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro realizou uma amostra documental sobre o poeta e a Biblioteca Nacional de Lisboa mandou imprimir um cartão postal para registrar o evento. Em 1996 o mesmo Centro de Estudos Baianos organizou um Encontro Internacional "O Poeta Renasce a Cada Ano", comemorativo dos 360 anos de nascimento de Gregório de Mattos e Guerra.
Novinsky, Anita. Cristãos Novos na Bahia. S. Paulo, Perspectiva, 1972, p. 115 e p. 138.
Habilitações de Genere; "Leitura de Bacharel ", Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Maço 2, número 6, letra G.
Conforme Nome dos Provedores da Santa Casa de Misericórdia de Alcácer do Sal, edição da Santa Casa de Misericórdia, Alcácer do Sal, 1957. Também no livro manuscrito "Termo de eleitação de irmãos (Actas), 1660-1708", depositado na SCM de Alcácer do Sal. Devo esta informação ao Dr. João Carlos Lázaro Faria, do Museu Nacional de Pedro Nunes em Alcácer do Sal.
São duas as sentenças do juiz Gregório de Mattos e Guerra, lavradas em 1671 e 1672, e publicadas em : Pegas, Emanuellis Alvarez; Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae, Ulyssipone, 1682. Tomus Septimus, pp.290 a 303 - sentença da p. 294 ap. 296 - e pp. 638 a 647. Outra sentença de Gregório de Mattos e Guerra está publicada em Pegas, Tractus de Exclusione, Inclusione, Successione, et Eredictione Maioratus, Pars Primas, Ulyssipone, 1685, págs 569 e 570.
Arcebispo da Bahia de 1683 a 1686.
A impregnação de Gregório de Mattos como leitor de Quevedo e Gongora levou a crítica a considerá-lo um plagiário. Recentemente, o livro de Gomes, João Carlos Teixeira. Gregório de Mattos : o Boca de Brasa, Rio Vozes, 1985, situa a problemática dentro de um estudo de intertextualidade.
Mattos, Gregório de; Obras Completas (edição James Amado), Salvador, Janaína, 1968, 3º vol., p. 716 a p. 727. São três sátiras ou retratos grotescos contra o doutor Antonio Roiz da Costa, Cavalheiro do Hábito de Cristo.
Governador da Bahia, capital do Brasil côlonia, de 1690 a 1694.
Amigo do poeta e Governador (1694 - 1702) cuja "lenda" diz ter mandado deixar em Palácio, na Bahia, um livro para que as pessoas copiassem poemas de Gregório de Mattos. Infelizmente este códice manuscrito jamais foi localizado.
Sobre o tema escrevemos artigo: Peres, Fernando da Rocha, Gregório de Matos e Guerra em Angola, "Afro-Ásia", nº 6-7, CEAO da UFBA, Salvador, 1968, pp. 17-40. Vide também Peres, Fernando da Rocha. Gregorio de Mattos e Guerra : uma revisão biográfica. Salvador, Edições Macunaíma, 1983.

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