Apresentação humana de Fernando Pessoa

Desde a sua adolescência que Fernando Pessoa dialogou, entre o orgulho e a agonia, com a convicção de ter sido marcado pelo génio, e quis realizar uma obra de superior destino, que antepôs a qualquer satisfação possível. Sendo Fernando Pessoa um sonhador, este facto sustentou-lhe a escolha de uma existência à margem da sua classe natural e oposta à da sua família, à qual, sempre permaneceu vinculado por um formalismo comedido e aristocrático que não cumpria extremamente. Dentro do exílio, que foi o da sua vontade, a sua diferença, inclinou-se a pretexto da sua força oculta, a de ser poeta, e quotidianamente cumpriu exemplarmente a função de escrever. Foi um homem que se contentou com uma história sem brilhos e sem misérias espetaculares, e que preferiu uma vida secreta e sem importância, em poesia, como em vida, cumpriu, enganou-se, falhou, sabendo-o sempre, com a incómoda evidência da previsão e comentário com que se julgava, e nem sequer teve ilusões satisfatórias fosse até acerca da glória que finalmente desejava para o que escrevia. A sua presença sempre se volveu estranha, pela forma de reserva inesperada, pelas bruscas confidencias intempestivas, pelo pudor defendido como uma aparência às avessas, e temperado com um humorismo irónico, de desencanto e defesa. Foi o próprio Fernando Pessoa que revelou, à luz desfavorável do artifício e do exagero, os seus tiques e os seus hábitos com que a censura se entretivesse no que ter à dizer dele. Gostava de manter intocáveis a sua intimidade e a vida privada, limpa, facilitando o pitoresco e a anedota com que o desconhecessem sem, contudo, o mentirem.
No entanto o cenário que o rodeou e a personagem na qual se transformou aos poucos, são adaptáveis à ideia do tipo que nós fazemos da sua existência de homem de letras, embora singular. Sem que seja preciso grande esforço ou grande imaginação, reencontramos a atmosfera dos cafés habituais da Baixa cidade de Lisboa, que ele frequentava como cliente modesto entre as horas de presença dos escritórios próximos, e como intelectual às horas dos intelectuais. Aí o distinguimos, vestido de escuro e refugiado no gesto imóvel de cruzar os pés sob a mesa, e inclinar a cabeça a qual apoiava numa das mãos. Reconhecemos o seu ar de secreta e vaga ausência, a sua distraída contemplação, o seu lento sorriso silencioso ou uma pequena gargalhada nervosa. A imagem assim obtida, leva-nos do autor à obra e da obra ao autor, num vaivém de interferencias do conhecimento que temos. Qualquer decifração que se pretenda fazer incidir sobre a personalidade humana que permitiu uma tal personalidade literária, está por força presa à declarada relevância da segunda sobre a primeira.
Fernando Pessoa na sua convenção de atitudes e aparências, no processo da literatura, é deduzível da interpretação do seu génio.

Fonte: www.angelfire.com