Orígenes Lessa

Nome do Escritor: Orígenes Lessa

Biografia e comentário a respeito do autor

Orígenes Themudo Lessa - (Lençóis Paulista SP 1903 - Rio de Janeiro RJ 1986). Romancista, contista, ensaísta, jornalista e tradutor. Começa sua vida literária colaborando em jornais do colégio, aos 11 anos. Tenta alguns cursos superiores, incluindo o de educação física, e chega a estudar em um seminário protestante. Sua carreira profissional inicia-se, realmente, como publicitário, quando entra no departamento de propaganda da General Motors, onde trabalha até 1931. Enquanto exerce a função de tradutor, na empresa, entrega seus contos ao periódico Diário da Noite. É esse conjunto de histórias que dá origem ao seu primeiro volume publicado: O Escritor Proibido (1929), recebido com bastante euforia pela crítica. Nessa época, já reside em São Paulo, onde participa da Revolução Constitucionalista de 1932. Em 1937, publica o primeiro romance, intitulado O Joguete. No ano de 1939, recebe o Prêmio Alcântara Machado por O Feijão e o Sonho, seu maior sucesso editorial e também de crítica. No início da década de 1940, muda-se para Nova York, cidade em que exerce a função de redator da NBC. Lá fica até 1943, quando decide fixar residência no Rio de Janeiro. Dedica-se à produção literária com bastante avidez, escrevendo volumes de contos, novelas e romances, entre os quais se destacam Rua do Sol (1955), A Noite sem Homem (1968) e O Evangelho de Lázaro (1972). A partir da década de 1970, publica diversos títulos dedicados ao público infantojuvenil, tornando-se também reconhecido nesse gênero. Em 1981, é eleito para a Academia Brasileira de Letras.
A prosa de Orígenes Lessa reúne tanto o coloquialismo advindo das conquistas modernistas quanto o uso correto e culto do português, realizado com economia e sem preciosismos, destaca Mário da Silva Brito. Essas características podem ser encontradas nos diferentes gêneros em que atua: o conto, o texto jornalístico, a crônica, a novela e, sobretudo, em seus romances.
De acordo com Massaud Moisés, seu primeiro volume de contos ainda demonstra certo ranço moralista, encontrado em escritores do fim do século XIX, preocupados em escrever uma "literatura sorriso da sociedade". Contudo, já se detectam traços que marcariam suas narrativas futuras: a meditação em torno das tragédias cotidianas e a preocupação em entender os "abismos da alma humana". Com o tempo, a arguta observação do comportamento das pessoas, salpicado com laivos de humor e pessimismo, passa a indicar uma inclinação machadiana nas suas histórias. Por outro lado, as narrativas desprovidas de momentos de clímax e as finalizações inconclusas de alguns de seus textos aproximam-no de escritores modernos, como Dalton Trevisan, segundo as observações de Glória Pondé.
Desse modo, ao unir o veio tradicionalista a características modernas, é de se notar a linguagem limpa e elegante, os personagens bem delineados e a vivacidade dada aos diálogos, que fazem de suas narrativas curtas a porção mais significativa da obra. Tais recursos, aliados à sua experiência no setor publicitário, também favorecem uma aproximação mais direta com o grande público. Daí resulta, provavelmente, o igual sucesso alcançado em suas incursões na literatura infantojuvenil: o tom aventuresco delas, somado aos diálogos bem construídos, faz com que alguns críticos, como Renard Perez, o aproximem de Monteiro Lobato.
Em relação aos temas tratados, destaca-se, sobretudo, a crítica social e de costumes. A mulher que se desvia daquilo que é esperado em uma sociedade patriarcal, por exemplo, transforma-se em matéria para a maledicência da vizinhança, como é o caso da personagem Sara, de A Vida de José de Melo Simão. Já o conto Patrulha Noturna impressiona pelo sadismo: ambientado na São Paulo revolucionária de 1932, narra uma noite na vida de um soldado pobre, obrigado a dividir a ronda noturna com um oficial de origem abastada. "João não-sei-de-quê Filho", herdeiro de um ilustre industrial paulistano, passa o conto inteiro prometendo a "811" (número que identifica o soldado) aplacar-lhe o frio com o conhaque que possui em seu cantil; porém sempre lhe nega a bebida quando o pobre oficial a pede, prometendo-lhe entregá-la "mais tarde".

Formação/Outras Atividades Profissionais: Formado em educação física; atuou como jornalista, contista, novelista, romancista e ensaísta

As cores

Maria Alice abandonou o livro onde seus dedos longos liam uma história de amor. Em seu pequeno mundo de volumes, de cheiros, de sons, todas aquelas palavras eram a perpétua renovação dos mistérios em cujo seio sua imaginação se perdia. Esboçou um sorriso... Sabia estar só na casa que conhecia tão bem, em seus mínimos detalhes, casa grande de vários quartos e salas onde se movia livremente, as mãos olhando por ela, o passo calmo, firme e silencioso, casa cheia de ecos de um mundo não seu, mundo em que a imagem e a cor pareciam a nota mais viva das outras vidas de ilimitados horizontes.
Como seria cor e o que seria? Conhecia todas pelos nomes, dava com elas a cada passo nos seus livros, soavam aos seus ouvidos a todo momento, verdadeira constante de todas as palestras. Era, com certeza, a nota marcante de todas as coisas para aqueles cujos olhos viam, aqueles olhos que tantas vezes palpara com inveja calada e que se fechavam, quando os tocava, sensíveis como pássaros assustados, palpitantes de vida, sob seus dedos trêmulos, que diziam ser claros. Que seria o claro, afinal? Algo que aprendera, de há muito, ser igual ao branco. Branco, o mesmo que alvo, característica de todos os seus, marca dos amigos da casa, de todos os amigos, algo que os distinguia dos humildes serviçais da copa e da cozinha, às vezes das entregas do armazém. Conhecia o negro pela voz, o branco pela maneira de agir ou falar. Seria uma condição social? Seguramente. Nos primeiros tempos, perguntava. É preto? É branco? Raramente se enganava agora. Já sabia... Nas pessoas, sabia... Às vezes, pelo olfato, outras, pelo tom de voz, quase sempre pela condição. Embora algumas vezes – e aquilo a perturbava – encontrasse também a cor social mais nobre no trato das panelas e na limpeza da casa. Nas paredes, porém, nos objetos, já não sentia aquelas cores. E se ouvia geralmente um tom de desprezo ou de superioridade, quando se falava no negro das pessoas, que envolvia sempre a abstração deprimente da fealdade, o mesmo negro nos gatos, nos cavalos, nas estatuetas, vinha sempre conjugado à ideia de beleza, que ela sabia haver numa sonata de Beethoven, numa fuga de Bach, numa polonaise de Chopin, na voz de uma cantora, num gesto de ternura humana.
Que seria a cor, detalhe que fugia aos seus dedos, escapava ao seu olfato conhecedor das almas e dos corpos, que o seu ouvido apurado não aprendia, e que era vermelho nas cerejas, nos morangos e em certas gelatinas, mas nada tinha em comum com o adocicado de outras frutas e se encontrava também nos vestidos, nos lábios (seriam os seus vermelhos também e convidariam ao beijo, como nos anúncios de rádio?), em certas cortinas, naquele cinzeiro áspero da mesinha do centro, em determinadas rosas (e havia brancas e amarelas), na pesada poltrona que ficava à direita e onde se afundava feliz para ouvir novelas? Que seria a cor, que definia as coisas e marcava os contrastes, e ora agradava, ora desagradava? E como seria o amarelo, para alguns padrão de mau gosto, mas que tantas vezes provocava entusiasmo nos comentários do mundo onde os olhos viam? E que seria ver? Era o sentido certamente que permitia evitar as pancadas, os tropeções, sair à rua sozinho, sem apoio de bengala, e aquela inquieta procura de mãos divinatórias que tantas vezes falhavam. Era o sentido que permitia encontrar o bonito, sem tocar, nos vestidos, nos corpos, nas feições, o bonito, variedade do belo e de outras palavras sempre ouvidas e empregadas e que bem compreendia, porque o podia sentir na voz e no caráter das pessoas, nas atitudes e nos gestos humanos, no Rêve d’Amour, que executava ao piano, e em muita coisa mais...
Ver era saber que um quadro não constava apenas de uma superfície estranha, áspera e desigual, sem nenhum sentido para o seu mundo interior, por vezes bonita, ao seu tato, nas molduras, mas que para os outros figurava casas, ruas, objetos, frutas, peixes, panelas de cobre (tão gratas aos seus dedos), velhos mendigos, mulheres nuas e, em certos casos, mesmo para os outros, não dizia nada...
Claro que via muito pelos olhos dos outros. Sabia onde ficavam as coisas e seria capaz de descrevê-las nos menores detalhes. Conhecia-lhes até a cor... Se lhe pedissem o cinzeiro vermelho, iria buscá-lo sem receio. E sabia dizer, quando tocava em Ana Beatriz, se estava com o vestido bege ou com a blusa lilás. E de tal maneira a cor flutuava em seus lábios, nas palestras diárias, que para todos os familiares era como se a visse também.
— Ponha hoje o vestido verde, Ana Beatriz... Dizia aquilo um pouco para que não dessem conta da sua inferioridade, mais ainda para não inspirar compaixão. Porque a piedade alheia a cada passo a torturava e Maria Alice tinha pudor de seu estado. Seria mais feliz se pudesse estar sempre sozinha como agora, movendo-se como sombra muda pela casa, certa de não provocar exclamações repentinas de pena, quando se contundia ou tropeçava nas idas e vindas do cotidiano labor.
— Machucou, meu bem?
Doía mais a pergunta. Certa vez a testa sangrava, diante da família assustada e do remorso de Jorge, que deixara um móvel fora do lugar, mas teimava em dizer que não fora nada.
E quando insistiam, com visita presente, para que tocasse piano, era sistemática a recusa.
— Maria Alice é modesta, odeia exibições...
Outro era o motivo. Ela muita vez bem que ardia em desejos de se refugiar no mundo dos sons, para escapar aos mexericos de toda a gente... Mas como a remordia a admiração piedosa dos amigos... As palmas e os louvores vinham sempre cheios de pena e havia grosserias trágicas em certos entusiasmos, desde o espanto infantil por vê-la acertar direitinho com as teclas à exclamação maravilhada de alguns:
— Muita gente que enxerga se orgulharia de tocar assim...
Nunca Maria Alice o dissera, mas seu coração tinha ternuras apenas para os que não a avisavam de haver uma cadeira na frente ou não a preveniam contra a posição do abajur.
— Eu sei... eu já sei...
E como tinha os outros sentidos mais apurados, sempre se antecipava na descrição das pessoas e coisas. Sabia se era homem ou mulher o recém-chegado, antes que se pusesse a falar. Pela maneira de pisar, por mil e uma sutilezas. Sem que lhe dissessem, já sabia se era gordo ou magro, bonito ou feio. E antes que qualquer outro, lia-lhe o caráter e o temperamento. Àqueles pequeninos milagres de sua intuição e de sua capacidade de observar, todos estavam habituados em casa. Por isso lhe falavam sempre em termos de quem via para quem via. E nesses termos lhes falava também.
O livro abandonado sobre a mesa, o pensamento de Maria Alice caminhava liberto. Recordava agora o largo tempo que passara no Instituto, onde a família julgara que lhe seria mais fácil aprender a ler. Detestava o ambiente de humildade, raramente de revolta, que lá encontrara. Vivendo em comunidade, sabia facilmente quais os que enxergavam, sem que nenhum destes se desse conta disso ou dissesse que enxergava. Pela simples linguagem, pela maneira de agir o sabia. E ali começara a odiar os dois mundos diferentes. O seu, de humildes e resignados, cônscios de sua inferioridade humana, o outro, o da piedade e da cor. — Me dá o cinzeiro vermelho, Maria Alice...
Maria Alice dava.
— Vou ao cinema com o vestido claro ou com aquele estampado, Maria Alice?
Maria Alice aconselhava.
Ninguém conseguia entender como sabia ela indicar qual o sapato ou a bolsa que ia melhor com este ou aquele vestido. Quase sempre acertava. Assim como ninguém sabia que, com o tempo, Maria Alice fora identificando as cores com sentimentos e coisas. O branco era como barulho de água de torneira aberta. Cor-de-rosa se confundia com valsa. Verde, aprendera a identificá-lo com cheiro de árvore. Cinza, com maciez de veludo. Azul, com serenidade. Diziam que o céu era azul. Que seria o céu? Um lugar, com certeza. Tinha mil e uma ideias sobre o céu. Deus, anjos, glória divina, bem-aventurança, hinos e salmos. Hendel. Bach. Mas sabia haver um outro, material, sobre as pessoas e casas, feito de nuvens, que associava à ideia do veludo, mais própria do cinza, apesar de insistirem em que o céu era azul.
Aquelas associações materiais, porém, não a satisfaziam. A cor realmente era o grande mistério. Sentira muitas vezes que o cinza pertencia a substâncias ásperas ou duras. Que o branco estava no mármore duro e na folha de papel, leve e flexível. E que o negro estava num cavalo que relinchava inquieto, com um sopro vigoroso de vida, e na suavidade e leveza de um vestido de baile, mas era ao mesmo tempo a cor do ódio e da negação, a marca inexplicável da inferioridade.
E agora Maria Alice voltava outra vez ao Instituto. E ao grande amigo que lá conhecera. Voltavam as longas horas em que falavam de Bach, de Beethoven, dos mistérios para eles tão claros da música eterna. Lembrava-se da ternura daquela voz, da beleza daquela voz. De como se adivinhavam entre dezenas de outros e suas mãos se encontravam. De como as palavras de amor tinham irrompido e suas bocas se encontrado... De como um dia seus pais haviam surgido inesperadamente no Instituto e a haviam levado à sala do diretor e se haviam queixado da falta de vigilância e moralidade no estabelecimento. E de como, no momento em que a retiravam e quando ela disse que pretendia se despedir de um amigo pelo qual tinha grande afeição e com quem se queria casar, o pai exclamara horrorizado:
— Você não tem juízo, criatura? Casar-se com um mulato? Nunca!
Mulato era cor.
Estava longe aquele dia. Estava longe o Instituto, ao qual não saberia voltar, do qual nunca mais tivera notícia, e do qual somente restara o privilégio de caminhar sozinha pelo reino dos livros, tão parecido com a vida dos outros, tão cheio de cores... Um rumor familiar ouviu-se à porta. Era a volta do cinema. Ana Beatriz ia contar-lhe o filme todo, com certeza. O rumor – passos e vozes – encheu a casa.
— Tudo azul? – perguntou Ana Beatriz, entrando na sala.
— Tudo azul – respondeu Maria Alice.

Orígenes Lessa

Madrugada

Dobrei a esquina do hotel, cansado e com sono. Caminhara o dia inteiro, tomando contato com a cidade, olhando vitrinas, examinando tipos, lendo tabuletas e painéis, admirando mulheres, ouvindo frases soltas, de diálogos alheios, procurando reconstituir, pela frase mal ouvida, o rumo da conversa, o drama, a intriga, o mexerico, os interesses que uniam aquela gente cheia de gestos e abraços.
Duas horas da manhã. Às sete, devia estar no aeroporto. Foi quando me lembrei de que, na pressa daquela manhã, ao sair do hotel, deixara no banheiro o meu creme dental. Examinei a rua. Nenhuma farmácia aberta. Dei meia volta, rumei por uma avenida qualquer, o passo mole e sem pressa, no silêncio da noite. Alguma haveria de plantão... Rua deserta. Dois ou três quarteirões mais além, um guarda. Ele me daria indicação. Deu. Farmácia Metrópole, em rua cujo nome não guardei.
- O senhor vai por aqui, quebra ali, segue em frente.
Dez ou doze quarteirões. A noite era minha. Lá fui. Pouco além, dois tipos cambaleavam. Palavras vazias no espaço cansado. Atravessei, cauteloso, para a calçada fronteira. E já me esquecera dos companheiros eventuais da noite sem importância, quando estremeci, ao perceber, pelas pisadinhas leves, um cachorro atrás de mim. Tenho velho horror a cães desconhecidos. Quase igual ao horror pelos cães conhecidos, ou de conhecidos, cuja lambida fria, na intimidade que lhes tenho sido obrigado a conceder, tantas vezes, me provoca uma incontrolável repugnância.
Senti um frio no estômago. Confesso que me bambeou a perna. Que desejava de mim aquele cão ainda não visto, evidentemente à minha procura? Os meus bêbados haviam dobrado uma esquina. Estávamos na rua apenas eu e aqueles passos cada vez mais próximos. Minha primeira reação foi apressar a marcha. Mas desde criança me ensinaram que correr é pior. Cachorro é como gente: cresce para quem se revela o mais fraco. Dominei-me, portanto, só eu sei com que medo. O bicho estava perto. Ia atacar-me a barriga da perna? Passou-me pela cabeça o grave da situação. Que seria de mim, atacado por um cão feroz numa via deserta, em plena madrugada, na cidade estranha? Como me arranjaria? Como reagiria? Como lutar contra o monstro, sem pedra nem pau, duas coisas tão úteis banidas pela vida urbana?
Nunca me senti tão pequeno. Efeito do uísque de má sorte, ingerido naquela boate encontrada ao acaso, tomou-me uma descontrolada sensação de desamparo. Eu estava só, na rua e no mundo. Ou melhor, a rua e o mundo estavam cheios, cheios daqueles passos cada vez mais vizinhos. Sim, vinham chegando. Não fui atacado, porém. O animal já estava ao meu lado, teque-teque, os passinhos sutis. Bem... Era um desconhecido inofensivo. Nada queria comigo. Era um cão notívago, alma boêmia como tantos homens, cão sem teto que despertara numa soleira de porta e sentira fome. Com certeza, saindo em busca de latas de lixo e comida ao relento.
Um doce alívio me tomou. Logo ele estaria dois, três, dez, muitos passinhos miúdos e leves cada vez mais à frente, cada vez mais longe... Não se prolongou, porém, a repousante sensação. O animal continuava a meu lado, acertando o passo com o meu - teque-teque, nós dois sozinhos, cada vez mais sós... Apressei a marcha.
Lá foi ele comigo. Diminuí O bichinho também. Não o olhara ainda. Sabia que ele estava a meu lado. Os passos o diziam. O vulto. Pelo canto do olho senti que ele não me olhava também, o focinho para a frente, o caminhar tranqüilo, muito suave, na calçada larga.
- Bem. na esquina ele me deixa - pensei quase em voz alta.
Para a esquina fomos. Parei, vagamente hesitante, sem saber se era naquela ou na esquina seguinte que devia dobrar. E imediatamente vi que o bicho se detinha e me fixava.
- Não me liberto deste bicho - pensei, olhando-o, quase disposto a lutar, a enfrentá-lo com decisão.
Mas o bicho desviou os olhos.
É traiçoeiro e covarde - pensei. - Se não tomo cuidado, ele me assalta.
E de novo o medo me alcançou. O animal devia estar com fome. Talvez estivesse desesperado. Não podia penetrar-lhe as intenções, é claro. Se ele ao menos me olhasse, poderia formar alguma Ideia. Mas ele olhava, com uma curiosidade despreocupada, para outro lado.
Dei dois passos à frente, ele fez menção de marchar. Fiz meia volta à esquerda e atravessei a rua. O animal vacilou, ficou um instante parado.
- Desistiu - disse comigo.
E estuguei o passo. Mas ainda não alcançara o outro lado, já o tinha junto a mim, as patinhas sutis, em ritmo cadenciados pipocando no chão.
- Ele há de parar em algum poste. Nesse momento, fujo.
Mas os postes sucediam-se e caso raro entre os cães, ele continuava indiferente. Não farejava, não hesitava, não parava, parecia farto dos cheiros caninos que em todas as árvores, postes, quinas e esquinas tanto excitam os seus irmãos de toda a terra.
Assim foi que continuamos, às vezes mais rápido, outras vezes mais lento, metros, metros e metros, ao longo de calçadas, cruzando ruas, quadras, quadras, quadras. O medo maior havia passado. Já caminháramos juntos vários quarteirões, e ele não dera indício maior de hostilidade. Provavelmente nada teria contra mim. Não era de briga. Mas a sua presença me transmitia um indizível desconforto. Marchávamos quarteirões sobre quarteirões sem que houvesse outro alguém nas ruas de iluminação visivelmente racionada. E aquela sensação de continuar sozinho ao sabor dos caprichos de uma dentada de rafeiro sem dono, sem ninguém para quem apelar, sem porta aberta onde buscar refúgio, punha-me um aperto na alma, impossível de negar.
Com que alívio, num dobrar de esquina, avistei o letreiro luminoso que anunciava a farmácia. Luz vinha do interior. Estava aberta. Lá encontraria outros seres humanos, ouviria voz humana, dividiria com os outros a atenção do animal. Talvez se perdesse por entre os balcões ou por entre as pernas de outros possíveis clientes. Talvez se interessasse por eles. Talvez se assustasse com as luzes da casa e arrepiasse carreira. Ou talvez, pelo menos, estivesse distraído à minha saída, permitindo-me a fuga.
Entrei. Creme dental. Por que não uma escova nova? Quanto custava a loção de barba anunciada naquele cartaz com um homem sorridente que afinal descobrira o segredo de conquistar o olhar e o coração de todas as mulheres? Era caro? Não era? Eu queria, na verdade, encher tempo. Havia que descorçoar o meu estranho companheiro de madrugada que felizmente ficara lá fora. Após alguns minutos, já pago o creme dental e uma latinha de talco, voltei-me para a porta. Não o vi. Desaparecera, afinal! Boa-noite, satisfeito, e ganhei a rua. Mal dei os primeiros passos, porém, vi que era acompanhado outra vez.
- Você não pirou, seu cachorro?
O cachorro me olhou pela primeira vez, com olhos tão doces e interrogativos, que me comovi. Pareceu-me ver o desespero da sua incompreensão, menos pelas palavras que pela aspereza do tom. Parei. E foi numa tentativa de reconciliação, envergonhado comigo mesmo, que sorri para o meu misterioso acompanhante:
- Como é, compadre... você não tem casa?
Naturalmente ele não entendeu as palavras, mas sentiu que o tom era outro. Havia agora uma tranqüilidade amiga nos seus olhos bons. Recomecei a caminhada, pleque-pleque ele seguia, sereno, humilde, cabisbaixo. Resolvi fazer experiências. Dobrava esquinas, cruzava as ruas, ia de uma para outra calçada. Sempre que mudava de rumo ele estava a meu lado, não atrás, não à frente, silencioso e calmo, sem mostrar surpresa, jeito cansado de resignação e doçura.
Voltei a falar-lhe várias vezes. Sempre que falava, detinha-me. Ele se detinha também e me encarava com uma curiosidade muda e mansa. Não havia sofrimento na sua impossibilidade de responder. Nem esforço. Era um pobre cão de rua na madrugada sem homens nem carros nem barulhos.
Como se chamaria? Fiel? Sultão? Peri? Lord? Leão? Jo1i? Chamei vários nomes e nenhum teve sentido. Era cão sem dono e sem nome, apesar de não dar impressão de desnutrido, que ele saberia seguramente se defender na batalha pelos ossos da rua.
Mas não estaria com fome?
Assaltou-me de novo aquela Ideia. Aquela marcha silenciosa ao lado do homem desconhecido talvez não significasse outra coisa.
- Está com fome, velhinho?
Seus olhos doces nada disseram, mas ainda assim convenci-me de que era esse o problema. Tive remorso da minha insensibilidade. Fiel, Lord ou Sultão, com ou sem dono, ele tinha fome. Por isso caminhava pela noite adentro. Por isso aderia ao primeiro passante. E alonguei os olhos a ver se descobria algum bar ou botequim. Alguns quarteirões adiante, numa rua transversal, havia feixes de luz sobre a calcada. Para lá rumei, certo de que o meu amigo me acompanharia. Os passinhos se amiudaram em meu seguimento. Era um bar de última classe. Um mulato dormia, a cabeça caída sobre a mesa de ferro.
- Tem queijo?
Atirei-o ao cachorro. O animal olhou-o com indiferença.
- Mortadela?
O meu companheiro não se mostrou interessado.
Vi um pernil de porco. Pedi um pedaço. O português do balcão me achava muito mais bêbado que o seu bebedor solitário e adormecido. Mas satisfez a encomenda.
Abaixei-me, chamei o cão, ele se aproximou agitando a cauda, estendi-lhe, sem o jogar no chão, o naco cheiroso e tentador. O cachorro, os olhos onde nadava uma doçura ainda mais contagiosa, contemplou longamente a oferta inesperada e voltou-se para a rua, como a dizer que não tinha fome.
- Quanto é?
Paguei a despesa e saí, meu amigo a meu lado, teque-teque na calçada.
- É amigo desinteressado - pensei. - Talvez esteja aqui para me proteger. Sentiu, talvez, que estou correndo algum perigo.
E um receio novo me encheu o coração. Dois quarteirões adiante ouviam-se os passos de um noctâmbulo apressado, atravessando a rua. Nisso, avistei as luzes do hotel. Senti a necessidade de correr para ele, de fugir novamente. Atravessei a rua e, pela primeira vez, o meu cão ficou do outro lado, pensativo. Tomou-me um medo supersticioso.
- Como é! Você não vem?
Sem hesitação e sem festa, como num gesto de rotina, ele baixou a cabeça e veio ao meu encontro, continuou a marchar comigo.
Meu coração se alegrou: Você está aqui para me proteger, não é, velhinho? Ele continuou caminhando, de cabeça humilde. Estávamos na porta do hotel.
- Quer entrar?
Ele me contemplou com o jeito triste de quem sabia ser inútil o convite. A larga porta iluminada não fora feita para os cães de rua. Examinei o meu relógio de pulso. Três da manhã. Dentro de quatro horas deveria estar no aeroporto.
- Então adeus, camarada ...
Curvei-me, acariciei-lhe a cabeça, ele fez um movimento macio de agrado e de gratidão.
Dois ou três minutos depois eu estava no meu apartamento do segundo andar. Cheguei-me à janela. O cachorro continuava na calçada, solitário e sereno, olhando talvez com tristeza as luzes do hotel imponente.
Nisso, vem da esquina, do outro lado, um vulto de homem. Os passos ressoam. O vulto cambaleia na noite. O animal voltou os olhos, ficou a contemplá-lo, por alguns segundos. O homem caminhava pela calçada fronteira, passava agora sob as luzes fortes, continuava, incerto e só. Foi quando o meu companheiro se movimentou. Cruzou a rua, teque-teque, foi chegando, acertou o passo com o desconhecido. Vi-os caminhando lado a lado, mais um quarteirão. Na segunda esquina o homem dobrou. Meu amigo também.

Data de Nascimento: 12/07/1903

Mal entendido

Os dois garotos brincam na praia.Um, branquinho, queimado de sol., os olhos claros, quase negro de tanto tomar sol toda manhã. O outro, negrinho, de família no morro. Os dois descem à praia diariamente. O primeiro, do nono andar de um apartamento de frente, tapetes no chão, lustres de cristal. O outro, de um morro qualquer, barraco de madeira. Os “amigos” se encontram a hora certa, camaradagem de pé na areia igualitária. O primeiro traz uma bela bola. O segundo não tem bola, mas traz jogo. O primeiro é bem nutrido, atestado vivo de que vitamina batida no liquidificador é mesmo bom. O segundo é fino e sujo, os dentes inexplicavelmente claros e fortes... Paulinho chama-se o primeiro, porque o avô foi Paulo e com ele começou a fortuna da família. O outro chama-se Jorge.
Descem os dois todo dia. Quando Paulinho vem acompanhado pelos pais, Jorginho assiste, apenas com o olhar, ao jogo em que a censura familiar não deixa preto se meter. Quando Paulinho vem só com a empregada – e é quase sempre – nem é preciso pedir licença. Jorginho tem lugar seguro, que ele é o artilheiro-mor da vizinhança. E a pelada se prolonga. Por ele, a manhã toda, a tarde toda, a vida toda. Não tem escola, não tem compromisso. Amendoim torrado ele vende à noite. Ao fim de meia hora, a pelada vai-se desfazendo. Parentes e empregados vêm recolher os futuros Garrinchas, os Pelés e Zagalos em formação. Paulinho fica mais tempo. E, quando está só, ele e Jorginho descansam na areia. Inseparáveis na pelada – Paulinho arma o jogo, Jorginho apanha a bola e arremata de maneira inapelável – uma funda rivalidade os separa em tudo mais. Nunca se entendem. Porque Paulinho é importante, e Jorginho é um coitado. Paulinho vai à escola à tarde, de carro. Jorginho vende amendoim à noite. Oito anos, Paulinho.
Nove anos, Jorginho. Reconhecendo a superioridade incrível do negro, no bate-bola, reclamando a sua colaboração, garantidora de tentos, Paulinho se vinga depois. E com sua falta de diplomacia, tão própria da idade, faz valer os seus títulos, para humilhar o companheiro.
- Tua casa tem tapete no chão? A minha tem até no quarto da empregada. Tem lustre de cristal? Jorginho pergunta o que é. Paulinho explica. Jorginho não tem. Nem luz tem.
- Teu pai tem sítio em Petrópolis?
- Não – responde sério Jorginho.
- O meu tem... Teu pai tem usina em Campos? O meu tem. E o teu pai tem iate?
- Não.
- O meu tem. E quantos apartamentos o teu pai tem? O meu tem dez. Só em Copacabana. O resto é na Tijuca.
- Tem nenhum – responde Jorginho que baixa os olhos, acaricia o monte de areia que está juntando. ... Paulinho apanha a bola molhada, procura limpá-la dos grãozinhos de areia, pergunta de novo: - Teu pai é deputado?
Jorginho nem sabe o que seja aquilo, mas já diz que não, pelas dúvidas. Deve ser coisa importante. - Teu pai tem automóvel? Jorginho sorri tristemente, negando.
- O meu tem – diz novamente em triunfo de garoto bem-nascido. O meu tem , um que ele vai para a cidade, um da mamãe, uma caminhonete pra ir para o sítio e um pra ir pra Petrópolis. Jorginho está completamente esmagado. Paulinho sorri, orgulhoso. E agora nem pergunta mais, só informa: - O meu tem 40 ternos de roupa, o teu não tem. O meu tem três casas de campo, o teu não tem. O pai tem dez cavalos de corrida, aposto que o teu não tem. Meu pai é amigo do Governador, o teu não é, pronto! Jorginho sente-se o menor dos moleques do mundo, o menor de todos os mortais.
Mas Paulinho ainda não está satisfeito.
- O meu pai tem foto no jornal, o teu pai não tem. É quando Jorginho pula vitorioso. Dessa vez tem resposta. Retira do bolsinho do calção rasgado um pedaço amarfanhado de jornal. Exibe-o, peito cheio, orgulho no olhar.
- Isso não. O meu também tem.
E em tom de desafio, irretorquível:
- Você pensa que só teu pai que é ladrão?

Local de Nascimento: Lençóis Paulista SP

Resumo - O Feijão e o Sonho

A obra publicado em 1938, O Feijão e o Sonho caiu no agrado da crítica e do público exatamente por desenvolver uma temática tão a gosto do caráter romântico do brasileiro médio.
A trama gira em torno de Campos Lara, poeta que vive a embalar o sonho da criação literária, alheio aos aspectos práticos da luta pela sobrevivência. Casado com Maria Rosa, a relação é um desajuste só.
Campos Lara sonhando, escrevendo, poetando; Maria Rosa batalhando, preocupando-se e, principalmente, azucrinando a vida do irresponsável marido.
Os rendimentos conseguidos pelo poeta, dando aulas ou escrevendo para os jornais são extremamente escassos e insuficientes para fazer frente às despesas da família.
Os credores não dão sossego; o senhorio cobra os aluguéis atrasados; o dono da farmácia deixa de fornecer medicamentos para a filharada adoentada; a alimentação é parca e de má qualidade: a vida é um inferno.
A todo esse desacerto, Campos Lara não dá a mínima atenção. Sua cabeça, povoada de versos e de orgulho intelectual não desce do limbo em que se encontra para encarar problemas triviais de manutenção familiar. Seus mirabolantes projetos literários enchem sua vida e seu tempo.
Pula de emprego em emprego, vê seus alunos escaparem e os que permanecem são os que não podem pagar. Maria Rosa luta desesperadamente contra a miséria e o infortúnio.
Ao final, com a situação financeira mitigada, mas não de todo regularizada, Campos Lara e Maria Rosa ajustam-se e sonham com o futuro do filho caçula.
Será advogado... Engenheiro... Até que Campos Lara descobre que seu filho será, como ele, poeta...
E isso o enche de orgulho, esquecendo todo o drama e o sofrimento que palmilhou durante toda uma existência, exatamente por dedicar-se à poesia, uma atividade sem qualquer compensação financeira, num país de analfabetos.

Principais Obras Publicadas

Contos, romances e reportagens:

O escritor proibido, contos (1929);
Garçon, garçonnette, garçonnière, contos (1930);
A cidade que o diabo esqueceu, contos (1931);
Não há de ser nada, reportagem (1932);
Ilha Grande, reportagem (1933);
Passa-três, contos (1935);
O feijão e o sonho, romance (1938);
Ok, América, reportagem (1945);
Omelete em Bombaim, contos (1946);
A desintegração da morte, novela (1948);
Rua do Sol, romance (1955);
Oásis na mata, reportagem (1956);
João Simões continua, romance (1959);
Balbino, o homem do mar, contos (1960);
Histórias urbanas, contos (1963);
A noite sem homem, romance (1968);
Nove mulheres, contos (1968);
Beco da fome, romance (1972);
O evangelho de Lázaro, romance (1972);
Um rosto perdido, contos (1979);
Mulher nua na calçada, contos (1984);
O edifício fantasma, romance (1984);
Simão Cireneu, romance (1986).

Ensaios

Getúlio Vargas na literatura de cordel (1973);
O índio cor-de-rosa. Evocação de Noel Nutels (1985);
Inácio da Catingueira e Luís Gama, dois poetas negros contra o racismo dos mestiços (1982);
A voz dos poetas (1984).

Infanto-juvenil

O sonho de Prequeté (1934);
Memórias de um cabo de vassoura (1971);
Napoleão em Parada de Lucas (1971 ou 1972)
Sequestro em Parada de Lucas (1972);
Memórias de um fusca (1972);
Napoleão ataca outra vez (1972);
A escada de nuvens (1972);
Confissões de um vira-lata (1972);
Aventuras do Moleque Jabuti (1972);
A floresta azul (1972);
O 13º Trabalho de Hércules (1975);
O mundo é assim, Taubaté (1976);
É conversando que as coisas se entendem (1978);
Tempo quente na floresta azul (1983).