Angélica e Firmino - Primeiro Ato - Cena I

INTERLOCUTORES
FIRMINO POMPEU
ANGÉLICA CRIADO
DONA CLARA TIBÉRIO
CÂNDIDA BARÃO DE JENIPAPO
GUSTAVO CATÃO
ANTÔNIO ARNAUD
ADOLFO MÉDICO VELHO
MIRABEAU UMA MUCAMBA
DIONÍSIO

PRIMEIRO ATO

Sala com uma janela à direita, que deita para o mar; duas portas no fundo que dão ingresso para a alcova de Firmino, à esquerda, e para sua biblioteca, à direita. No meio da sala uma grande banca com lampião de globo, muitos livros, brochuras, mapas, papéis espalhados, instrumentos de física, tudo formando uma pitoresca desordem. É noite.

CENA I

FIRMINO, abrindo a janela

FIRMINO – Que formoso luar! Como é límpida a atmosfera dos trópicos! Como brilha o Cruzeiro do Sul entre essas miríadas de sóis que iluminam o trono do Senhor, e como tudo na terra se prepara para embalsamar o coração no mais suave perfume! Tudo dorme e se refocila para a continuação da obra que hoje findou. A ampulheta diária renovará as mesmas cenas no dia de manhã; o círculo de luz que começa na aurora e acaba com as trevas se fechará sem lançar um raio no futuro, nesse futuro imenso, aonde dorme o gigante do Equador, e em cujo trono virá um dia assentar-se a nobre civilização, escoltada do seu séquito sublime, e avultar no mundo quanto o Amazonas avulta sobre todos os rios da Terra. Ó minha pátria, minha querida pátria! Um sagrado delírio nos faz estremecer todas as fibras e eleva o meu pensamento à morada dos sonhos elísios; uma doce prelibação fruo na taça das delícias quando te contemplo! A árvore da vida, que em ti se agiganta com triplicada beleza, com força desusada, ainda cresce para muitos como a túbera nas entranhas da terra, em trevas profundas. Não, apesar de tudo a humanidade há de marchar, mesmo em despeito do fatal exemplo da prosperidade do vício, da elevação da mediocridade e do triunfo da impunidade. (Senta-se à mesa) A palavra neste século deve substituir a espada; o prelo, o campo de batalha e as idéias, o indivíduo. Avante, que a conquista é bela e o futuro, imenso. Mais bela seria, mais rápida, mais sublime, se o capricho não substituísse a razão, e... Sensualismo, sensualismo puro! Orgia de sibaritas, que semeiam flores no túmulo da pátria, que em pleno dia caminham às apalpadelas, que na hora em que o chão fumega com o ardor do sol olham para o céu e não encontram o rei dos astros, porque para os seus sentidos o mundo é uma habitação de trevas, onde só brilha o moribundo farol do interesse particular. Ó mocidade, mocidade, fênix das nações, esperança de... (Ouve tocar dentro uma campainha) O que será? Creio que Angélica precisa de alguma coisa, Desgraçada menina! Que paixão oculta lhe fermenta no peito! A flama que a nutre é a mesma que a devora; eu não ouso perguntar-lho, e nem suspeito por quem ao certo. Que coração tão nobre, que alma tão grande, que imaginação tão sublime!... Talvez que algum desses monstros filhos da beleza física, algum extravagante encoberto, desses profanadores, dissipadores, que têm por ofício o ócio e por glória o escândalo... Talvez que algum desses saltimbancos seja a causa do seu definhamento. Sensível, apreensiva, daquela casta de gênios os mais felizes e os mais infelizes, vai sofrendo em silêncio suas mágoas enquanto os outros irmãos rolam nas futilidades. Vamos a trabalhar, vamos mostrar, sem os atavios da eloqüência mas com a razão e com os exemplos, os males incalculáveis da impunidade e das calúnias da imprensa. (Principia a escrever; ouve passos na biblioteca) Quem está aí? Minha tia já veio do baile, ou chegam agora?

ANGÉLICA (Dentro) – Sou eu, meu primo, que procuro um livro. Não dá licença?

FIRMINO – Coitadinha! (Para Angélica) Que livro quer, que eu lho vou dar? (Levanta-se e vai à porta) Prima Angélica, não faça imprudências; ler a esta hora?!

ANGÉLICA (Dentro) – Não se incomode, já o achei; aqui está.

Extraído do livro: Angélica e Firmino (Adquira e leia o livro, vale a pena)