A crônica histórica de...

Fernão Lopes terá nascido por volta de 1380, pouco se sabe da sua vida, mas em 1418 ocupava funções públicas de responsabilidade. Tabelião e mesteiral, serviu a família real do tempo, foi escrivão de dom Duarte, de dom João I e do infante dom. Fernando, em cuja casa serviu como "escrivão da puridade" ou secretário. Em 1434 desempenhou funções de guarda-mor da Torre do Tombo, recebendo mais tarde, como forma de recompensa pelos serviços prestados, uma tença anual e o título de "vassalo de el-rei", quando, "por estar velho e fraco", foi reformado do cargo. Expoente maior dos nossos cronistas históricos, ainda hoje se estudam e lêem com grande admiração todas as suas "crónicas", sobretudo pelo sentido denunciador, sempre com elevados escrúpulos pelo rigor e verdade dos factos, nas páginas sobre os acontecimentos que atravessaram Portugal no período medieval. O historiador António José Saraiva afirmou, que "o que há de mais notável em Fernão Lopes e o que o torna inconfundível entre todos os cronistas da Idade Média é a larguíssima visão de conjunto que lhe permite discernir muito mais do que os feitos dos reis e cavaleiros - todo o processo histórico da revolução que transformou nos séculos XIV e XV a sociedade portuguesa". De Fernão Lopes importa conhecer Crónica de dom Pedro, Crónica de dom Fernando e, sobretudo, a Crónica de dom João I, em que profundamente se descrevem as condições sociais e políticas da revolução de 1383-1385.
No casticismo da prosa burilada com um admirável gosto literário, como exemplo maior da arte de escrever português, Fernão Lopes ainda hoje merece ser lido e relido, não só pela frescura das descrições, mas antes pela verdade e rigor histórico que coloca nas páginas em que enaltece ou descreve os factos deste reino no século XIV de boa memória. E disso sempre o próprio Fernão Lopes se pôde gabar como fez no Prólogo da Crónica de dom João: "Grande licença deu a afeição que tiveram carrego de ordenar estórias, mormente dos senhores em cuja mercê e terra viviam, e onde foram nados seus antigos avós, sendo-lhes muito favoráveis no recontamento de seus feitos. E tal favoreza como esta nasce de mundanal afeição, a qual não é salvo conformidade de alguma cousa ao entendimento do homem. Assim que a terra em que os homens, por longo costume e tempo, foram criados gera uma tal conformidade entre o seu entendimento e ela, que, havendo de julgar alguma sua cousa, assim em louvor como por contrairo, nunca por eles é direitamente recontada, porque, louvando-a, dizem sempre mais de aquilo que é e, se de outro modo, não escrevem suas perdas tão minguadamente como aconteceram."
E, viajando ainda pelas águas do tempo a pé pelo tabuleiro de cima da ponte dom Luiz, no leve estremecer do "metro" ou "andante" que traz até mim a memória viva do que foi e é esta cidade do Porto em imagens enfeitadas pelo vento calmo, nevoeiro ou chuva miudinha: a muralha fernandina erguida ainda em desafio, a ponte de dona Maria Pia hoje sem o movimento de comboios, sei como é uma paisagem insuperável na memória destas renovadas águas, no começo do mundo e da vida, na exaltação deste rio de tantas histórias, e assim recordo que daqui houve nome Portugal ainda na evocação de Fernão Lopes ter sabido falar do modo de ter sido aclamado como Regedor e Defensor o senhor dom João Mestre de Aviz, no terreiro do Olival e ao alto da Sé quando o Porto era já uma cidade de poderosa riqueza, lembrando que foi então Domingos Peres das Eiras que disse por si mesmo e por todo o povo que ali estava: "Nós somos prestes com boa vontade de servir o Mestre com os nossos corpos e haveres, ouro e prata, para nunca sermos em poder dos castelhanos. E o mesmo Domingos Peres das Eiras insistiu depois que não havia em esta cidade quem tivesse o pensamento contrairo disso: "Se o tiver, não o poderá ter por muito tempo, e para isso, as naus e as barcas e galés com todas as cousas que nelas fizeram mister oferecemos ao Mestre de muito boa vontade".
Ora, de tudo isto e de muitas coisas mais nos falam, com o solene encantamento da linguagem, as Crónicas de Fernão Lopes, tão ricamente ilustradas pelo Pintor Rogério Ribeiro nesta belíssima edição apresentada por António Borges Coelho, ensaísta e historiador que, a caminho dos seus oitenta anos, não perdeu o entusiasmo e admiração que sempre manifestou pelo nosso maior cronista. E por isso diz, na Nota Introdutória como justificação desta extensa antologia das Crónicas de Fernão Lopes e sobretudo acerca do propósito deste seu grande trabalho que "visa alargar a um maior número de leitores a fruição destes tesouros da cultura medieval portuguesa. As duas primeiras crónicas, usando as palavras de Fernão Lopes, fazem parte do 'primeiro princípio' que desembocaria nos acontecimentos de 1383/85. Para o historiador não há nas crónicas capítulos a mais e o linguista quereria passar à lupa todas as palavras velhas e os seus sinais. Uma antologia é escolha. Esta pretende ser um patamar que motive maior número de leitores para o contacto com este apaixonante criador medieval. E é redundante eu dizer que tentei acertar na escolha de testos fundamentais, quer do ponto de vista historiográfico, quer do ponto de vista literário".
Mas, a concluir, dizemos que este trabalho de antologia de Borges Coelho é mesmo de antologia e poucas vezes se terá estudado e anotado da Crónicas de Fernão Lopes com este rigor literário, a par de um profundo conhecimento da prosa medieval.

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