Curiosidades e paradoxos

Erico Veríssimo, sendo um escritor de estilo simples e directo, um contador de histórias como gostava de ser conhecido, exterior ao círculo cultural e cosmopolita do Rio de Janeiro e S. Paulo, tem uma infância tranquila e despreocupada, pois que descendia de famílias tradicionais de proprietários estancieiros, por ambos os pais, mas ainda menino-criança vai ser testemunha da rápida decadência familiar, ao ver em poucos anos dissipar-se a fortuna, o que o obriga a procurar trabalho em ofícios menores, e a mãe, para evitar a pobreza extrema, a dedicar-se à costura. Claro que tudo isto levou inevitavelmente à ruptura do casamento dos pais.
Os múltiplos sonhos que teria alimentado, para si, como pintor ou estudante numa universidade inglesa, são desviados para o contacto quotidiano com gente de toda a espécie por detrás de um balcão de simples empregado, “… O balcão me punha em contacto com: operários, soldados, empregados do comércio, funcionários públicos, caixeiros-viajantes, pequenos burgueses, estancieiros, trabalhadores do campo, caudilhos e vagabundos. Era uma parada singular… “. No entanto, serão estas personagens reais que mais tarde irão densamente povoar o seu imaginário de romancista.
Ao tentar seguir as pisadas do pai, farmacêutico, abre uma farmácia que rapidamente entra em falência – em virtude de uma fatal trilogia: muitos fiados, muitos namoros e a consequente falta de apego ao trabalho. No comércio não estava seguramente o seu destino, mas nada está perdido porque em frente à botica, no outro lado da rua, mora a sua futura mulher com quem nas horas vagas namorisca e o ajuda a passar o tempo, para além do ensino do inglês e da escrita que metodicamente pratica nos fundos da loja.
O escritor convive, em simultâneo e por várias vezes, com o drama do empobrecimento e a desonra familiar da decadência, situação esta que sente como um estímulo e fonte de inspiração futura para compor muitas das suas melhores páginas.
Para compensar o seu estado de melancolia latente, e sem dinheiro para cursar medicina, dedica-se cada vez mais às leituras de Machado de Assis e à moderna literatura inglesa, com Aldous Huxley, Somerset Maugham, autores que traduz quando vai trabalhar para a Livraria da Globo, assim como a ler Bernard Shaw, Swift, Óscar Wilde, Ibsen, etc., que irão influenciar e condicionar, logo mais, a sua técnica de escrita.
A ambiência da atmosfera com que Erico Veríssimo se envolvia quando escrevia, era muito sóbria e pobre: para ele bastava uma sala sombria, quase escura e praticamente vazia, onde apenas eram necessários uma velha máquina de escrever numa simples escrivaninha e um cabide para pendurar o chapéu, a bengala e o seu guarda-chuva.
Há quem se interrogue, se Erico Veríssimo não tivesse tido a felicidade de se empregar tão cedo na Editora da Globo, teria optado pelo percurso difícil da Escrita, quando o mais natural era ter sido Jornalista ou Funcionário Público, como era habitual na época. Provavelmente não, pois nesta altura era difícil aos autores brasileiros enveredarem só pela profissão de escritor, pois não existia a televisão e a rádio dava ainda os seus primeiros passos incipientes, logo a possibilidade de divulgação com um público anónimo, virtual, era muito reduzida.
Ainda no dealbar do século XXI, há estudos que apontam para uma grande maioria de brasileiros (aliás, um problema à escala mundial, segundo Gerard Vergnaud) que são analfabetos funcionais (67%, Ibope), ou seja, não são capazes de ler ou compreender cabalmente o que está escrito e de escrever correctamente; como não seria então o grau de aliteracia e do ensino, numa terra que se achava isolada e longe de tudo, a mais de 1550 km de distância da capital política, que era há um século Rio de Janeiro, e a mais de 1100 km do motor económico, São Paulo?
Claro que a possibilidade de poder editar tudo o que escreve, é aliciante e ajuda-o a optar sem hesitar. E como trabalhador militante agarra esta oportunidade, começando cedo a escrever romances (quase ao ritmo de um por ano), além de contos e outras histórias.
Também, ao criar uma relação de amizade com Henrique Bertaso, filho do dono da própria editora, que lhe publica toda a obra e para quem mais tarde escreve uma biografia, permite a Erico Veríssimo não ser confrontado com as ilusões e dissabores de qualquer escritor debutante que se inicia no ofício da escrita.
A dificuldade para publicar ainda hoje é manifesta, tanto lá como cá; que o digam muitos dos nossos escritores, alguns até de alguma nomeada, isto é, pelo menos dos mais badalados.
Outro paradoxo curioso foi Veríssimo nunca ter completado qualquer curso, inclusive o secundário, apesar de ser um dos grandes representantes da moderna ficção brasileira. Por vezes, a pessoa de Jorge Amado parece constituir o seu alter-ego, apesar das naturais diferenças geográficas e de pensamento político dos dois.
O escritor, talvez por isso, tem sido acusado, por certos críticos, de prolixo e difuso nas palavras com “repetições abusivas, incerteza na concepção de protagonistas, uso convencional da linguagem...”, o que torna evidente o seu maior defeito: a superficialidade e a falta de estudo psicológico e social das figuras literárias dos personagens, reconhecido em parte pelo próprio autor quando a elas se refere como marionetas “com a força e, ao mesmo tempo, a fraqueza da caricatura” (segundo Adelto Gonçalves).
No entanto, a partir de Olhai os lírios do campo, a sua obra passa a ser aceite, conseguindo tiragens dum escritor de sucesso, um verdadeiro artesão do tempo e da palavra, para a transmitir ao tempo das novas gerações, como um segredo que se guarda com a vida.
Em 1939, publica Viagem à aurora do mundo, história romanceada plena de mistério e fantasias, onde os segredos das origens do planeta, da vida e do homem são revelados.
A partir de 1941, passa a ser convidado regularmente para leccionar em algumas universidades nos Estados Unidos, sem nunca ter frequentado qualquer curso de inglês, já que o seu nível era escolar, proferindo conferências, nas quais se dedica em divulgar a literatura e a cultura brasileiras.
Vem por duas vezes a Portugal. Em 1959, encontra-se com Jaime Cortesão, Ferreira de Castro, Miguel Torga, João Gaspar Simões, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner, Alves Redol, José Rodrigues Migueis, Vitorino Nemésio, Manuel da Fonseca e outros mais (conforme Dário de Castro Alves). Aqui faz palestras em que defende a democracia, o que provoca desinteligências com a polícia política de Salazar.
A segunda visita acontece em 1966, quando tenta perceber as suas raízes portuguesas, em Ervedal da Beira. Erico Veríssimo foi sempre um apaixonado por Portugal, segundo ele próprio diz ser, o mais português de todos os escritores brasileiros.

Fonte: www.vidaslusofonas.pt