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O dia 21 de dezembro de 2005 deveria ser uma das datas mais significativas para toda a literatura da Língua Portuguesa, neste começo de milênio. Todos nós, que amamos a literatura e a língua de Camões deveríamos estar reunidos para lembrar a passagem dos duzentos anos da morte do maior sonetista – e um dos mais representativos poetas – de nossa língua. Entretanto, será um dia triste, pois a censura e as trevas medievais ainda acompanham a vida e principalmente a obra de Manoel Maria Barbosa du Bocage.
Magro, de olhos azuis, carão moreno Bem servido de pés, meão de altura, Triste de facha, o mesmo de figura Nariz alto no meio e não pequeno; Incapaz de assistir num só terreno; Mais propenso ao furo do que à ternura; Bebendo em níveas mãos por taça escura De zelos infernais letal veneno; Devoto incensador de mil deidades (Digo, de moças mil) num só momento, E somente no altar amando os frades; Eis Bocage, em quem luz algum talento; Saíram dele mesmo estas verdades, Num dia em que se achou mais pachorrento. Trata-se da versão “séria”, existindo uma outra, “clandestina”, a exemplo que ocorre com muitos poemas bocageanos.
Deixar, amado bem, teu rosto lindo, Teus afagos deixar, tua candura, Tanto me oprime, que da Morte escura, Sobre mim negras sombras vêm caindo. Eu parto, e vou teu nome repetindo, Porque dê desafogo à mágoa dura; Meus tristes ais, suspiros de amargura, Aquém dos mares ficarás ouvindo. Mas se me cercam no cruel transporte Quantas fúrias o Báratro vomita, Se meu mal é pior que a mesma Morte, O Fado em me aterrar em vão cogita! Com todo o seu poder não pode a Sorte Tua imagem riscar desta alma aflita! Sua admiração pela obra de Camões também deve ter contribuído para esse retorno à marinha e pela “aventura no oriente”.
Camões, grande Camões, quão semelhante Acho teu fado ao meu, quando os cotejo! Igual causa nos fez, perdendo o Tejo, Arrostar co’o sacrílego gigante; Como tu, junto ao Ganges sussurrante, Da penúria cruel no horror me vejo; Como tu, gostos vãos, que em vão desejo, Também carpindo estou, saudoso amante. Ludíbrio, como tu, da Sorte dura Meu fim demando ao Céu, pela certeza De que só terei paz na sepultura. Modelo meu tu é, mas... oh! tristeza!... Se te imito nos transes da Ventura, Não te imito nos dons da Natureza. Antes de chegar à Índia passa pelo Rio de Janeiro, precedido pela fama literária. Conta-se que, durante um sarau, um espectador dotado de privilegiada memória resolveu aprontar uma peça para o poeta. Bocage improvisou um poema e o gaiato berrou: “Isso é um roubo. Esse poema é meu”. E repetiu todos os versos. Novo improviso e nova denúncia de fraude. Ao final da terceira ou quarta "fraude", Bocage não resistiu. Abraçou o gozador. O final da história fica por conta da imaginação: devem ter acabado comemorando o encontro com um porre homérico.
Do Mandovi na margem reclinado, Chorei debalde minha negra sina, Qual o mísero vate de Corina Nas tomitanas praias desterrado. Mais duro fez ali meu duro fado Da vil Calúnia a língua viperina; Até aos mares da longínqua China Fui por bravos tufões arremessado. Atassalou-me a serpe que devora Tantos mil; perseguiu-me o grão gigante Que no terrível promontório mora. Por bárbaros sertões gemi, vagante; Falta-me inda o pior, falta-me agora Ver Gertrúria nos braços de outro amante! E o ainda pior. Esse amante seria o próprio irmão Gil Francisco, que casaria com a Gertrúria.
Das terras a pior tu és, ó Goa, Tu pareces mais ermo que cidade, Mas alojas em ti maior vaidade Que Londres, que Paris ou que Lisboa. A chusma de teus íncolas pregoa Que excede o Grão Senhor na qualidade; Tudo quer senhoria; o próprio frade Alega, para tê-la, o jus da c’roa! De timbres prenhe estás; mas oiro e prata Em cruzes, com que dantes te benzias, Foge a teus infanções de bolsa chata. Oh! que feliz e esplêndida serias, Se algum fusco Merlim, que faz bagata, Te alborcasse a pardaus as senhorias! Essa consciência de que os moradores das “colônias” eram diferentes dos metropolitanos é interpretada por leitores apressados como racismo. Bocage viu a artificialidade da cultura mestiça, ou melhor, a inconsciência dessa mestiçagem.
Lembrou-se no Brasil bruxa insolente De armar ao pobre mundo estranha peta; Procura um mono, que infernal careta Lhe faz de longe, e lhe arranha o dente. Pilhando-o por mercê do Averno ardente, Conserva-lhe as feições na face preta; Corta-lhe a cauda, veste-o de roupeta, E os guinchos lhe converte em voz de gente. Deixa-lhe os calos, deixa-lhe a catinga; Eis entre os Lusos o animal sem rabo Prole se aclama da rainha Ginga; Dos versistas se diz modelo e cabo; A sua alta ciência é a mandinga, O seu benigno Apolo é o Diabo. Duzentos e tantos anos depois, nós, aqui do Brasil, podemos assistir pela televisão outros “descendentes da rainha Ginga”, muitas vezes investidos de cargos oficiais e pagos com dinheiro dos cofres públicos, fazendo suas “macaquices” na Europa... E não podem vir a Passo Fundo participar da Jornada Nacional de Literatura...
Vós, ó Franças, Semedos, Quintanilhas, Macedos e outras pestes condenadas; Vós de cujas buzinas penduradas Treme de Jove as melindrosas filhas; Vós, néscios, que mamais das vis quadrilhas Do baixo vulgo insossas gargalhadas, Por versos maus, por trovas aleijadas, De que engenhais as vossas maravalhas, Deixai Elmano, que, inocente e honrado, Nunca de vós se lembra, meditando Em coisas sérias, de mais alto estado. E se quereis, os olhos alongando, Ei-lo! Vede-o no Pindo recostado, De perna erguida sobre vós mijando. As principais obras de sua autoria publicadas em vida foram: Rimas (Tomo I), em 1791; Rimas (Tomo II), em 1799; Rimas (Tomo I, 2ª edição, correta e aumentada, no ano seguinte; Poesias (Tomo III), em 1804; Improvisos de Bocage na Sua Mui Perigosa Enfermidade, em 1805. Pouco antes de sua morte foi dada a lume Colecção dos Novos Improvisos de Bocage na Sua Moléstia.
Bojudo fradalhão de larga venta, Abismo imundo de tabaco esturro, Doutor na asneira, na ciência burro, Com barba hirsuta, que no peito assenta; No púlpito um Domingo se apresenta; Prega nas grades espantoso murro; E acalmado do povo o grão sussurro O dique das asneiras arrebenta. Quatro putas mofavam de seus brados, Não querendo que gritasse contra as modas Um pecador dos mais desaforados; “Não (diz uma) tu, padre, não me engodas; Sempre me há de lembrar por meus pecados A noite em que me deste nove fodas!” Bocage criticava padres, mas era visceralmente católico. Muitos de seus poemas estão carregados de um profundo catolicismo. Marianista extremado e antiprotestante, ele, que somente no altar amava os frades, foi sepultado na Igreja das Mercês, em Lisboa.
Lá quando em mim perder a humanidade Mais um daqueles, que não fazem falta, Verbi-gratia – o teólogo, o peralta, Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade; Não quero funeral comunidade, Que engrole “sub-venites” em voz alta; Pingados gatarrões, gente da malta, Eu também vos dispenso a caridade; Mas quando ferrugenta enxada idosa Sepulcro me cavar em ermo outeiro, Lavre-me este epitáfio mão piedosa: “Aqui dorme Bocage, o putanheiro; Passou vida folgada, e milagrosa; Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro”. Quase morrendo ditou a seu amigo Morgado de Assentiz, um dos sonetos mais densamente humanos conhecidos, verdadeiro “confiteor”, que anda pelas melhores antologias da língua lusitana. Já Bocage não sou!... À cova escura Meu estro vai parar desfeito em vento... Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento Leve me torne sempre a terra dura. Conheço agora já quão vã figura Em prosa e verso fez meu louco intento. Musa!... Tivera algum merecimento, Se um raio da razão seguisse, pura! Eu me arrependo; a língua quase fria Brade em alto pregão à mocidade, Que atrás do som fantástico corria: “Outro Aretino fui... A santidade Manchei... Oh! Se me creste, gente impia, Rasga meus versos, crê na Eternidade! Como tantos outros grandes artistas, Manoel Maria Barbosa du Bocage terminou seus dias na mais absoluta pobreza, realizando traduções para sobreviver. E como eles, também, teve a seu lado bons e dedicados amigos. Ficou mais conhecido pelas piadas que lhe são atribuídas porque foi um poeta que viveu intensamente sua época e por isso é transcendental.
Paulo Monteiro pertence a diversas entidades culturais do Brasil e do exterior. Tem centenas de artigos e ensaios publicados sobre temas históricos e literários. |