Três vezes Lima Barreto

Publicado em 1909, o primeiro romance de Lima Barreto (1881-1922), “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, rendeu ao autor muito mais inimigos e antipatias do que respeito literário de seus contemporâneos. O livro descreve as dificuldades de um jovem mulato em meio ao ambiente preconceituoso, arrivista e corrupto de um grande jornal da capital do País.
Há nítidos traços autobiográficos, além de vinganças e acertos de conta, no relato que Barreto faz do cotidiano de “O Globo”, nome inventado pelo escritor para falar do “Correio da Manhã”, então o mais importante diário da cidade, onde trabalhou.
Este excesso de aproximações com figuras de carne e osso da “Belle Époque” carioca, descritas em retratos muito nítidos e apenas nomes trocados, acabou ofuscando o principal: a força literária da obra em si, incluindo a denúncia de cunho social que faz.
Como escreveu o seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, em 1961, “muito mais importante que uma caricatura impiedosa, é, na verdade, a mensagem humana que se encerra no bojo da novela”. Ou como anotou Alfredo Bosi, em texto publicado em 2002, “Isaías Caminha” em seus momentos altos “transcende, ainda por obra da reflexão, o seu estigma individual”.
Para jornalistas e historiadores, porém, o retrato impiedoso pintado por Barreto de uma redação de jornal no início do século XX ainda provoca grande interesse pelo mesmo motivo que talvez tenha atrapalhado a carreira do escritor. Os tipos que freqüentam a redação de “O Globo” parecem extremamente atuais, assim como muitas das situações que ocorrem.
A estes leitores, interessados em história da imprensa, a mais recente edição de “Recordações do escrivão Isaías Caminha” (Penguin & Companhia das Letras, 312 págs., R$ 25) traz um biscoito fino: 109 notas da historiadora Isabel Lustosa, com explicações acuradas e chaves que esclarecem quem serviu de inspiração para os personagens e situações descritos no romance.
Nota a nota, a historiadora abre as portas do “roman à clef” e permite uma leitura diferenciada a leitores curiosos como eu. Mas não se preocupe, caso concorde com os críticos que este “quem é quem” é o que menos importa no romance: a edição da Penguin traz também os ótimos textos de Francisco de Assis Barbosa e Alfredo Bosi mencionados antes.
Em “Lima Barreto versus Coelho Neto – Um Fla-Flu literário” (Difel, 240 págs., R$ 39), Mauro Rosso faz um detalhado levantamento da polêmica que envolveu os dois escritores a respeito do futebol.
O autor de “Policarpo Quaresma”, como se sabe, desde cedo entendeu que o futebol era um modismo estrangeiro, elitista e, pior, um esporte violento. Lima Barreto não foi capaz (ou não quis) enxergar a popularização que ocorreu a partir da década de 10 e manteve-se firme numa posição que hoje soa equivocada.
Já Coelho Neto foi um torcedor apaixonado do Fluminense. Um de seus filhos, Preguinho, jogou pelo clube e pela seleção brasileira. De estilo difícil, floreado, defende o “lado certo” na polêmica, mas a simpatia do leitor pende para Lima Barreto, com seu texto saboroso e irônico. Obrigatório para estudiosos dos primórdios do futebol no Brasil, este “Fla-Flu literário” pode ser de leitura um pouco difícil para o torcedor.
Fonte: mauriciostycer.blogosfera.uol.com.br