Ódio são, ódio bom! Sê meu escudo!

Pergunta Cruz e Sousa: é de Cristo o sangue vertido, ou do escravo na senzala? Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
O homem estranho, no interior da confeitaria, continua a fitá-lo. Agora, sussurra alguma coisa ao ouvido de Oscar Rosas. A sensação incômoda de Cruz e Sousa cresce, mais uma vez ele sente que precisa de um escudo.
Seria possível que o escudo existisse desde Nossa Senhora do Desterro, desde os idos de 1861, ano de seu nascimento? Seu nome deveu-se então ao santo do dia, São João da Cruz, místico e visionário. Como também mística, metafísica e transcendental seria sua poesia; como o poeta estaria sob o signo da cruz.
De outros Gólgotas mais amargos subindo a montanha imensa, - vulto sombrio tetro, extra-humano! – a face escorrendo sangue, a boca escorrendo sangue, o flanco escorrendo sangue, os pés escorrendo sangue, sangue, sangue, sangue, caminhando para tão longe, para muito longe, ao rumo infinito das regiões melancólicas da Desilusão e da Saudade, transfiguradamente iluminado pelo sol augural dos Destinos!...
A imagem da tortura é bíblica ou real, empírica? É de Cristo o sangue vertido, ou do escravo na senzala? Ou se trata de uma metáfora da condição do poeta, que sofre por ser “maldito” entre os malditos? Ele se recorda da mãe, que fora escrava:
Em fundo de tristeza e de agonia
O teu perfil passa-me noite e dia
Aflito, aflito, amargamente aflito,
Gesto estranho que parece um grito.
(...)
Mas, de repente, eis que te reconheço,
Sinto da tua vida o amargo preço.
Eis que te reconheço, escravizada,
Divina Mãe, na Dor acorrentada.
Que reconheço a tua boca presa
Pela mordaça de uma sede acesa.
Presa, fechada pela atroz mordaça
Dos fundo desesperos da Desgraça.
(...)
(“Pandemonium”)
E pensar que uma parte da crítica futura o acusaria de ficar alheio às causas abolicionistas, trancafiado na “Torre de Marfim” do hermetismo simbolista, por puro desconhecimento de textos inéditos, verdadeiros gritos de denúncia e de repúdio às injustiças sociais. Poemas em que a revolta chega a sufocar o transcendentalismo, através de distorções que bem poderiam ser chamadas de expressionistas. Como este (“Escravocratas”), em que o senhor de escravos é o animal rastejante, o animal que merece ser torturado:
Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos agachados – bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à luz dum privilégio
Na pose bestial dum cágado tranqüilo.
(...)
Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
Vermelho, colossal, d´estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!)
Fonte: www.vidaslusofonas.pt