Porque todo o poeta (como todo canto) é negro

Qual é a cor da minha forma, do meu sentir? – pergunta Cruz e Sousa. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
Rio de Janeiro: numa confeitaria elegante, nos anos de 1890, um grupo de escritores saúda, em voz alta, o jovem que se encontra à porta:
- Entra, ó Cruz e Sousa! Entra, ó grande poeta!
A ênfase dada à saudação explica-se por se tratar de um jovem negro, que corre o risco de ser ofendido, ou até escorraçado da confeitaria. A escravidão já fora abolida oficialmente, mas contra o preconceito não houve decreto, não houve lei...
João da Cruz e Sousa ouve a saudação dos amigos, até entende sua intenção de evitar-lhe uma situação constrangedora, mas fita-os com olhos tristes, como se pensasse: “Canalhas!” Tanto mais que, próximo ao grupo dos amigos e fiéis admiradores, encontra-se um rosto estranho, que o observa com olhar curioso, o que chega a ser irritante... Quem é esse homem desconhecido, que perscruta o poeta? Seria mais um dos seus contendores, provocadores, mais alguém prestes a repudiá-lo abertamente nos jornais?
Toda sua vida fora, até então, permeada por essa mesma sensação de discriminação, de rebaixamento. Até o modo afetivo como alguns de seus “seguidores” a ele se referem – o Poeta Negro – parece um estigma. Ninguém diz “poeta branco”. No Brasil escravocrata, “poeta” e “negro” são elementos que não se casam, indicam uma verdadeira aberração... Mas a dor de ser discriminado pode não ser muito diferente da grande Dor de ser homem.
Qual é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da tempestade de dilacerações que me abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos meus desejos e febre?
Uma revolta amargurada o paralisa e, por algum (quanto?) tempo, suas atenções se deslocam do exterior, da confeitaria, do constrangimento, das amarras sociais, para o interior, sua alma, presa num cárcere severo. Às vezes é preciso invocar o ódio para suportar a dor:
Ò meu ódio, meu ódio majestoso,
Meu ódio santo e puro e benfazejo,
Unge-me a fronte com teu grande beijo,
Torna-me humilde e torna-me orgulhoso.
(...)
O poeta lembra-se de que sempre precisara de um escudo. Podia ser o Ódio. Podia ser a crença em si mesmo, na própria sensibilidade superior. Podia ser a Dor. O desdém pelos chamados “detentores” do poder e do saber, o desprezo pelos ditadores de regras. Podia ser a Arte, esse escudo, esse Broquel: esses Broquéis.
Fonte: www.vidaslusofonas.pt