Crônica de Olavo Bilac

Que outro assunto, hoje, senão a morte de Arthur Azevedo?

A Crônica está de luto: perdeu um dos seus melhores servidores — talvez o melhor, porque foi de todos o que mais soube tratá-la, como ela quer ser tratada, com um espírito onímodo, dando a todos os assuntos uma leve graça fugitiva, e pondo a arte do dizer ao alcance de todas as inteligências, sem prejuízo da correção do estilo.

Foi a Crônica e foi o Teatro que deram a Arthur Azevedo a larga popularidade que o favoreceu em vida, e que ainda o acompanhou à cova, traduzida na multidão extraordinária que o levou ao cemitério; popularidade essa de que o escritor nunca se vangloriou, aceitando-a sem grande orgulho, sem dela abusar. Teatro e Crônica estão de luto pesado…

Quando comecei a minha vida de escritor, podia obscuro, paupérrimo e desamparado, querendo abrir caminho na vida com os meus cotovelos fracos em que se puía o pano do meu único paletó — Arthur já era o príncipe da Crônica: os seus artigos diários tinham um largo público, e o seu louvor e a sua censura criavam doutrina. Mandei-lhe um dia dois sonetos, e vi-os estampados no dia seguinte: lembro-me bem! foi o melhor dia da minha vida! nunca vi o céu tão azul! boêmio adolescente, atravessei a rua do Ouvidor como o conquistador da cidade e do país, tendo a ilusão de que as solas avariadas dos meus sapatos arrancavam chispas de estrelas das pedras do calçamento! Já lá se vão mais de vinte anos…

A quantos outros escritores novatos Arthur não deu, como me deu a mim, o amparo da sua popularidade, o prestígio do seu nome, a proteção da sua bondade genero­sa! Foi um criador de nomes e de reputações, esse domi­nador da opinião: e não é estranhável que tenha recebido muitas ingratidões em paga de tantos benefícios — porque parece ser uma condição essencial da vida a revolta da criatura contra o criador…

O cronista e o comediógrafo conservaram até a morte e hão de conservá-la por muito tempo — essa popularidade que poucos homens têm alcançado na carreira das letras, no Brasil. Dizem os incompreendidos que só é popu­lar quem abdica o orgulho artístico e renuncia ao gozo da Arte pura c nobre. Mas ainda não conheci um incompreendido que não quebrasse lanças para alcançar celebridade: o ódio do vulgo ignaro, o horror da multidão profana, o desprezo do louvor popular, só vêm depois, quando falha sem esperança a última tentativa da conquista… A verdade e que somente logra ser bem compreendido quem é simples: e a simplicidade é a virtude máxima do escritor e do artista.

Arthur teve sempre essa virtude admirável entre todas. E nem por isso deixou de ser um puro, um legítimo artista, sempre que o quis ser. Foi um poeta lírico como poucos; e isto já é um grande louvor, em uma terra em que. há tantos poetas líricos de primeira ordem. Há sonetos de Arthur Azevedo que sempre hão de figurar em todas as antologias da nossa língua — e, no teatro, seu nome há de ficar como o do empreendedor fecundo e forte. A sua campanha «mu favor do levantamento da arte dramática no Brasil já está incorporada ao patrimônio da nossa história de povo civilizado, como uma demonstração de energia e de fé. Não houve remoques que a desanimassem, não houve desenganos que a enfraquecessem; até no delírio, antecâmara da morre, vestíbulo do nada, em que a sua inteligência esteve parada durante algumas horas, o defensor do Teatro balbuciava palavras em que ainda vibrava a maior preocupação de toda a sua vida…

Arthur foi sempre um artista. E não me refiro apenas à sua arte de escrever. Foi artista em todas as manifestações da existência, no escrever, no pensar, no falar, no viver. Não havia províncias da Arte em que ele fosse forasteiro: familiar em umas, hóspede em outras, era conhecedor e freqüentador de todas, amando a música, adorando a pintura, admirando a escultura, estudando e compreendendo até as artes vassalas, as subartes que são mais da competência dos artífices do que da dos verdadeiros artistas.

Quando o fui ver pela última vez, já morto, já estendido no caixão que o ia levar ao fundo da sepultura, encontrei-o dentro de uma moldura que o definia, dentro de uma casa que o explicava.

Há sempre uma relação íntima entre o animal e o seu habitat.

Mas essa relação não é sempre a mesma. Nas espécies inferiores, é o animal que pratica o mimemetismo, adaptando-se ao meio, imitando-o, incorporando-se a ele: a minhoca tem a cor, o aspecto, a umidade da terra em cujo seio vive; o peixe tem nas escamas e nos olhos a fluidez, o brilho, a fosforescência das águas em que se agita; e o inseto e os répteis reproduzem, por instinto de conservação, a aparência da sua habitação preferida, imitando este a rugosidade da casca das árvores, aquele o verde opaco ou brilhante, das folhagens, aquele outro a forma das flores ou o duro aspecto das pedras.

Mas na espécie superior, o mimetismo é, ao contrário, exercido pelo animal sobre o meio. É o homem quem comunica a sua fisionomia à casa: a inteligência humana, dominadora do meio físico, afeiçoa o habitat à imagem do habitante. Assim a casa é o prolongamento material e espiritual do morador. Não é preciso ser um psicólogo sutil, um profundo conhecedor dos segredos da indução e da dedução, para dizer, pelo simples aspecto de uma residência: "Aqui mora um artista ou um financeiro, um médico ou um engenheiro, um homem de trabalho ou um vadio gozador da vida". Parece que em rodos os móveis, em rocios os ornatos, em rodas as alfaias, e até no chão, nas paredes e no teto de uma casa há o urros tantos espelhos milagrosos que fixam a fisionomia, o modo de vida, a alma do seu proprietário…

Pensei tudo isto, na sala da casa do Campo de São Cristóvão, onde o corpo de Arthur fez o seu último estágio antes do descanso definitivo no cemitério.

A sala estava alfaiada de luto. Mas os crepes, os veludos negros, as sanefas tristes em que brilhavam as cruzes de ouro, não tinham podido tirar ao aposento o seu aspecto de santuário de um artista. Contrastando com os ornatos funerários, contrariando-os, opondo-se a eles, e vencendo-os, avultavam os quadros, os livros, as estátuas. Entre dous tocheiros, apareciam, como um protesto contra a Morte, a carnação rosada de uma ninfa, o colo nu de uma deusa, o sorriso lindo de uma criança, em telas de mestres; as grinaldas de flores, com as suas largas fitas negras ou roxas, entremeavam-se com estátuas e estatuetas, em que a Vida e a Beleza ardiam e cantavam; e a coleção opulenta de quadros, de esculturas, de livros, de gravuras transbordava da saía, ganhava os corredores, estendia-se pelas escadas, conquistava rodos os aposentos. Por todas aquelas paredes pompeavam o gozo de viver, o culto da formosura, a religião da Arte — toda a fisionomia, toda a vida, toda a alma do escritor que ali jazia inerte, e que dali a minutos ia descer a escada dentro do féretro oscilante…

O Artista ia deixar a sua casa, que era a continuação e o complemento da sua personalidade… Um véu de lágrimas me escureceu a vista: a casa ficava, como uma moldu­ra sem tela, como uma peanha sem estátua, como uma estante sem livros…

Mas que importa que também desapareçam agora a estante, a peanha e a moldura? Não desaparece verdadeiramente o Artista, que ficará vivendo na história deste país, quando a Morte também já tiver consumido todos os corações e todas as inteligências que admiraram a sua inteligência.

O. B. Gazeta de Notícias 25/10/1908

Fonte: www.consciencia.org