Análise: O mulato

Por Gabriel Diniz

O Mulato, eis o nome do romance que, segundo alguns críticos, inaugurou o naturalismo em nosso país. O advento dessa escola em nosso país ainda é controverso, haja vista que outros estudiosos consideram a obra O Coronel Sangrado de Inglês de Sousa a primeira desse estilo literário. Os que defendem essa ideia dizem que a obra de Azevedo ainda contava com muitos cacoetes românticos; a de Sousa, por sua vez, lançada quatro anos antes de O Mulato, possuía mais elementos da escola criada pelo francês Émile Zola.
Controvérsias à parte, ater-nos-emos agora ao supracitado romance de Azevedo.
O escritor, nascido na Província do Maranhão, debutou na cena literária oitocentista com a obra Uma lagrima de mulher, essa totalmente calcada nos preceitos românticos. Todavia, uma transformação ocorreu em seu segundo romance, O Mulato. Conta-se que o autor teve vários problemas com a Igreja no Maranhão, justamente por ter publicado diversos artigos em jornais atacando o clero. Dum certo modo, isso acabou reflectindo-se em O Mulato. Como? Vejamos!
O enredo centra-se na história de dois protagonistas Ana Rosa e Raimundo. Os dois primos apaixonam-se, porém encontrão enormes dificuldades para concretizar o amor. O mancebo,filho de José da Silva, é fruto dum caso de seu pai com a escrava Domingas. A donzela, por sua vez, é filha de Manuel Pedro da Silva, o Manuel Pescada, comerciante na cidade de São Luís. O encontro do casal se dá quando José da Silva contrai núpcias com Quitéria, a mesma não aceita a ideia do marido ter tido um filho com uma escrava. Sendo assim, o infante vai morar com o tio Manuel. Lá recebe o carinho de Mariana, esposa de Pescada. Nesse mesmo tempo, Quitéria é pega por José da Silva com o cônego Diogo. Enfurecido com a traição, Silva esgana a esposa. O clérigo, espertamente, faz um tracto com o marido traído, que consiste em não delatá-lo. Porém, José da Silva não poderá também falar nada sobre o adultério da esposa. Deste modo, a causa mortis de Quitéria é atribuída um problema natural e também à feitiçaria.
O padre Diogo, entretanto, não decide correr nenhum risco, temendo que Silva dê com a língua nos dentes, mata-o numa estrada que é conhecida pelo comentimento vários crimes atribuídos a escravos fugidos. Devido a isso, o clérigo fica isento de ter cometido quaisquer delitos.
O tempo passa, e Raimundo viaja para a Corte e depois para Europa. No velho continente torna-se doutor em Direito e conhece vários países e depois retorna para o Brasil. Ele fica alguns tempos na capital fluminense, e decide ir para o Maranhão para resolver seus negócios.
Na província, o mancebo é recebido com grande alegria e hospeda-se na casa do tia. Porém, aos poucos ele vai despertando a inveja da população. As coisas pioram, quando o rapaz demonstra, devido aos seus estudos, grande fé ciência em detrimento dos dogmas católicos. A sociedade da capital da província acusa-o de ser um
E a situação fica mais complicada quando Raimundo decide pedir a Manuel a mão de Ana Rosa em casamento. O tio nega o pedido veementemente. O mancebo insiste em saber o porquê. Manuel reluta em dizê-lo, porém cede as pressões do sobrinho e diz que não permite o casamento, pois ele é um mulato. Deste modo, revela quem a mãe do jovem.
Raimundo, entristecido, decide partir o mais rápido possível para à Corte. Entretanto, o amor por Ana Rosa é maior. A jovem engravida, o casal decide, então, fugir. Porém, o plano é frustrado, dado que o cônego Diogo juntamente com Dias — um português caixeiro que trabalha para Manuel e anseia em casar com Ana Rosa — conseguem impedir a fuga.
Raimundo desesperado com a falha do plano, começa a deambular pela cidade e decide lançar mão da justiça para casar-se com a amada. Porém, o clérigo incita Dias a dar cabo na vida do mancebo.
Os anos passam, no final o leitor é supreendido com Ana Rosa e Dias casados, os dois muito felizes e com três filhos. Um desfecho no mínimo desapontador para aqueles que almejam um final típico das novelas românticas.
Penso, que esse é sem dúvidas um dos melhores romances do século XIX. Mesmo com esse hibridismo romantismo mais naturalismo — fato esse que muitos apontam como um fator negativo —, Azevedo foi o primeiro escritor a tocar fortemente no assunto da escravidão brasileira. É importante lembrar que nesse período, teorias europeias condenavam fortemente a junção de diferentes etnias, que na época recebiam o nome de raças. Destarte, a ideia da miscigenação era vista negativamente pela ciência do século XIX. Essas ideias foram fortemente propagadas em nosso país. O próprio termo “mulato” já é pejorativo, uma vez que calca-se na ideia de mula.
De mais a mais, o autor também desnuda como ninguém a hipocrísia da sociedade da provincia do Maranhão. E, além disso, O mulato traz à tona o anticlericalismo — um dos preceitos básicos da escola naturalista — e a visão acerca da mulher, que era vista como uma simples procriadora, que se não sujeitasse ao casamento e consequentemente ao sexo, estaria fadada a sofrer crises de nervo, histerismo. Enfermidade essa que foi amplamente discutida em vários romances naturalistas brasileiros; o tema perpassou praticamente por todas as obras de cunho zolista do escritor.
É válido destacar também as outras personagens do romance. Temos a figura duma velha mexiriqueira, do poeta fracassado, da viúva louca por se casar. da donzelas desprovida de beleza que estão atrás dum marido.
Há descrição das cenas é também bastante impactante. Logo no início da obra o autor é levado pelo narrador a conhecer as ruas de São Luís. Sendo assim, depara-se com um leilão de escravos que é descrito duma maneira bastante detalhista. Os diálogos também são óptimos, principalmente alguns acerca da política brasileira.
O valor da obra de Azevedo é indiscutível, todavia muitos críticos consideram a produção do naturalista assaz inferior quando comparada a de Machado de Assis. A meu ver um erro crasso, visto que as obras de ambos escritores podem ser colocadas no mesmo patamar.
Por fim, faz-se mister dizer que O Mulato possui duas versões. Na primeira, lançada na década de 1870, Raimundo não é o protagonista da obra, quem ganha esse papel é cônego Diogo. Os estudiosos também apontam que o autor, nessa segunda versão, inseriu mais elementos naturalistas no livro.
A dica é: leiam O Mulato! A obra é com certeza um dos maiores clássicos de nossa literatura.