Florbela Espanca

Autor: Alberto de Mendonça

Ao abrir, ao acaso, o livro de sonetos de Florbela Espanca, há muito esquecido na estante, que pertencera a antigo condiscípulo de meu pai, deparei com meia folha de papel costaneira, dobrado em dois, que continha interessante texto, manuscrito, que considerei digno de ser publicado.
Após aturada reflexão, tomei a ousadia de apresentá-lo ao leitor, que ao longo dos anos tem a bondade de ler as minhas crónicas; alterei, porém, o nome do autor, evitando, assim, futuros constrangimentos.
Todavia, devo acrescentar, para cevar a curiosidade do leitor, que não me recordo de ter escutado, da boca de meu pai, referência, nem ao amigo, nem à menina trigueira, que o fascinou.
Eis, para delícia do leitor, o texto tal qual o encontrei:
Chamo-me Aberto de Mendonça; tenho oitenta e dois anos, e vivi parte da juventude em Trás-os-Montes.
Logo que emerge do fundo da memória, a província esquecida por muitos, o coração sangra-me em saudade, pelos longos quatro anos, que vivi em região agreste, envolto em tristeza e soledade.
Verdade é, que foi amenizado o penar, por garotita, de tez trigueira, moreninha, da cor daquele pão doirado de centeio, que, experientes padeiras, fabricavam em Bragança, cozido em rústicos fornos.
Eram dois bagos luminosos e cativantes seus lindos olhos, dum castanho meigo, que irradiavam inocência e balsamíficavam o infortúnio de infelizes, que deambulam, como judeus errantes, pelas agruras do mundo.
Ao trepar curto lance de escaleira, que dava acesso a sua modesta casa, era ela, de rosto risonho, que me aguardava, cobrindo-me as faces de expressivos beijos; e, enquanto os bracitos se entrelaçavam ao pescoço, as esguias perninhas, cingiam-se à cintura, esmagando o jovem peito, ao meu.
A espontânea recepção, quantas vezes reprovada pela mãe, enchia-me de alegria e dava-me reforçadas forças para enfrentar dissabores, em que andava envolvido.
Foi, em lágrimas, que me despedi; não tanto da cidade, que me acolhera, mas pela certeza de apartar-me da única criatura, que, desinteressadamente, gostava de mim.
Dois anos decorreram; seriam três; já não sei, que me afastara de Trás-os-Montes; avolumavam-se as saudades, de tal jeito, que brotou o imperioso desejo de regressar.
Poucas notícias haviam da rapariguinha que conhecera; mas acicatava-me a curiosidade e o entranhado afecto que nutrira pela jovial menina, que se pintava, diante dos meus olhos, anjo benfazejo.
Logo que desembarquei da desengonçada ambulância, que percorre a linha do Tua, e depositei a pesada maleta na Pensão Transmontana, corri em busca de sua casa.
Havia mudado, mas não foi difícil localizar a nova moradia.
Desta vez não me recebeu à porta, nem abraçou-me efusivamente, nem cingiu os braços ao pescoço; apenas recebi tímido beijo; e, segurando-me pela mão, levou-me, de sala em sala, a mostrar a nova casa, que era ampla e era bela.
O rosto continuava gaiato e aveludado. A inocência estampava-se ainda na face, levemente anacarada, mas o corpo era de menina-moça, ainda que a alma fosse de criança.
Reavivou-se, ao vê-la assim tão formosa, o antigo afecto; o coração rejubilava-me de alegria, ao mesmo tempo que o peito se contraía, tolhendo-me a respiração.
Seria amor?! Pensei. Certamente que não – disse de mim para mim; certo é, que nessa noite, sonhei que andávamos, de mãos dadas, pela cidade…trocando fugitivos beijos de amor.
Regressei melancólico e enamorado. Dava-me tristeza cismar na diferença de idade e mormente o facto de sua família ser abastada.
A medo escrevi-lhe. Demorou a resposta, mas veio. Missiva de adolescente, carta brincalhona; só a custo, nas entrelinhas divisei afecto, que não era fraternal.
Carteamo-nos algum tempo; correspondência espaçada e desinteressante, que avivou a chama do braseiro que queimava-me o peito. Perseguia-me o receio de ser rejeitado, o temor de repulsão, e principalmente o de me ver rapaz pobre, desprovido de perspectivas risonhas.
É triste ser pobre!; mas mais triste é amar, e não ser amado, porque deixa recordações penosas que o tempo não apaga.
Se o amor correspondido enche a alma de alegria, felicidade que se imprime no rosto e reflecte-se nos olhos; o amor platónico, deixa acúleos que cavam infortúnios e desamor à vida.
Depois, esse era o primeiro. O primeiro que se aninhou no peito, e como era imaculado, aprisionou a alma sedenta de amor. Nem o desafogo das lágrimas nem o tempo – que tudo destrói, – aquietou o coração doente.
Pode haver muitos amores, pode haver muitas paixões, mas só um ou dois, permanecem até à morte; e esse, é geralmente o primeiro, quando foi puro e angélico.
Tudo me convidava à desistência, a contrariar o ardor que escaldava o peito.
Decorrido décadas, analisando, desapaixonadamente os acontecimentos, sinto, que se fosse ousado, esse honesto amor juvenil, poderia ter terminado ou melhor, começado, no altar; quiçá com o beneplácito dos seus; mas naquele recuado tempo, temeroso e vergonhoso, como era, faltava-me coragem para tão destemida aventura.
Apesar de ser avançado em anos, que não param de crescer, ainda o coração verte saudades pelas horas felizes que se perderam para sempre, mas vivem, ainda, dentro de mim
Que será feito da moreninha de farto rabo-de-cavalo? Será que ainda se lembra de mim? Ou será que morri na sua memória?
Pressinto o calor dos derradeiros raios do crepúsculo escarlate do fim do Inverno. Como os da minha idade, volto-me para o passado: cenas, quadros, episódios gratificantes, afloram em catadupa no armazém da memória, e deixam marcas profundas de saudade, que fazem chorar meus olhos.
Como é bom recordar e verter lágrimas de saudade, mesmo sabendo que esse passado, jamais passará de novo.
E aqui tem o leitor o que descobri ao abrir um livro de Florbela Espanca. Uma declaração de amor, tardia, e muito original, Recordações de uma vida, de certo, há muito desaparecida; mas, como todos nós, amou e sofreu muito por um amor que só existiu, provavelmente, no seu espírito.
Mas, que lembra, que em matéria de amor, não há idades, e que nem sempre o tempo, as décadas, as agruras da vida, conseguem apagar o amor da juventude.


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