O cavalo Sansão de “A revolução dos bichos” (ou de “Um país chamado Brasil”)

Sansão era um bicho enorme, de quase um metro e noventa de altura, forte como dois cavalos. ...ele não tinha lá uma inteligência de primeira ordem, embora fosse grandemente respeitado pela retidão de caráter e pela tremenda capacidade de trabalho. ...Dias houve em que todo o trabalho da granja parecia cair em seu lombo. Dá manhã à noite, lá estava ele, puxando e empurrando, sempre no lugar onde o trabalho era mais pesado. ...Sua solução para cada problema, para cada contratempo, era “Trabalharei mais ainda”, frase que adotara como seu lema particular.
... se resolveu – coisa que, em si, não podia sofrer a objeção de ninguém – que o potreiro situado além do pomar seria reservado para os animais aposentados, houve uma agitada discussão a respeito da idade de aposentadoria para cada classe de animal.

...As aulas de ler e escrever, pelo contrário, fizeram enorme sucesso. Pelo outono, quase todos os bichos estavam alfabetizados, uns mais, outros menos. ...Sansão não foi capaz de ir além da letra D. ...É verdade que em vária ocasiões aprendeu E, F, G, H, mas ao consegui-lo descobria sempre que havia esquecido A, B, C, D. Afinal, decidiu contentar-se com as quatro primeiras letras...
...Jones e todos os seus homens, com mais meia dúzia de Foxwood e Pinchfield, haviam entrado pela porteira... Era evidentemente uma tentativa de recuperar a granja. ...o espetáculo mais aterrorizante em tudo aquilo era Sansão, erguendo-se nos posteriores e dando manotaços com seus enormes cascos ferrados, feito um garanhão. Logo no primeiro golpe atingiu o crânio de um cavalariço de Foxwood, que caiu prostrado sem vida na lama. Diante disso, vários homens largaram os bastões e tentaram correr. O pânico tomou conta deles... Os animais decidiram, por unanimidade, criar uma condecoração militar, a Herói Animal, Primeira Classe, conferida ali mesmo a Bola-de-Neve e a Sansão.
...Napoleão, com seus cães a segui-lo... Anunciou que daquele momento em diante... Para o futuro , todos os problemas relacionados com o funcionamento da granja seriam resolvidos por uma comissão de porcos, presidida por ele, que se reuniria em particular e depois comunicaria as decisões aos demais. ...Vários teriam protestado, se conseguissem achar os argumentos. Até Sansão ficou um tanto inquieto. Murchou as orelhas, sacudiu o topete várias vezes e fez um esforço tremendo para pôr em ordem as ideias; mas afinal não conseguiu pensar em nada para dizer. ...Sansão, que já tivera tempo de pensar, expressou o sentimento geral: “Se é o que diz o camarada Napoleão, deve estar certo”. E daí por diante adotou a máxima “Napoleão tem sempre razão”, acrescentando-a ao seu lema particular “Trabalharei mais ainda”.

...A construção do moinho de vento apresentou dificuldades imprevistas ...Nada se teria feito sem Sansão, cuja força parecia igual à de todos os outros bichos juntos. ...Era sempre Sansão que retesava os cabos e continha a pedra. Vê-lo na faina da subida, palmo a palmo, com a respiração acelerada, e os costados molhados de suor e as pontas dos cascos cravadas no solo, era algo que enchia a todos de admiração. Quitéria recomendava-lhe que tivesse cuidado e não se esforçasse demais, mas Sansão não lhe dava ouvidos. As duas máximas “Trabalharei mais ainda” e “Napoleão tem sempre razão” pareciam resolver todos os seus problemas. ...ia sozinho à pedreira, juntava um monte de pedras quebradas e puxava-o até o local do moinho de vento, sem ajuda de ninguém.
...Napoleão decretou uma ampla investigação sobre as atividades de Bola-de-Neve. ...”Camaradas”, gritou, cheio de tiques nervosos, “descobrimos uma coisa pavorosa, Bola-de-Neve vendeu-se a Frederick... Até Sansão, que raras vezes fazia perguntas, ficou confuso. Deitou-se, enfiou as patas dianteiras debaixo do corpanzil, fechou os olhos e, com grande esforço, tentou reunir os pensamentos. “Não acredito”, disse. “Bola-de-Neve lutou bravamente na batalha do estábulo. Isso eu vi com meus próprios olhos. Pois até não lhe demos uma Herói Animal, Primeira Classe logo depois?” “Esse foi o nosso erro camarada, já que agora sabemos – está tudo lá, nos papéis que encontramos – que, na realidade, ele tentava nos conduzir à derrota.” “Mas ele foi ferido”, insistiu Sansão. “Todos nós o vimos ensanguentado.” “Era parte do plano”, gritou garganta... Sansão, porém, ainda permanecia contrafeito. “Não acredito que Bola-de-Neve fosse traidor desde o começo”, disse por fim. “O que fez depois é outra coisa. Eu ainda acho que na batalha do estábulo ele foi um bom camarada.” “Nosso líder, o camarada Napoleão”, disse Garganta, falando devagar e com firmeza, “declarou categoricamente (categoricamente camaradas!) que Bola-de-Neve era agente de Jones desde o início... “Ah! Aí é diferente!”, respondeu Sansão, “Se o camarada Napoleão diz, deve ter razão.” “Esse é o verdadeiro espírito, camarada!”, exclamou Garganta. Porém todos notaram a olhadela feia que deu para Sansão... e acrescentou de maneira contundente: “Alert o a todos os animais desta fazenda para que mantenham os olhos bem abertos. Temos motivos para pensar que alguns agentes secretos de Bola-de-Neve estão ocultos entre nós neste momento!”
...Quatro dias depois, à tardinha, Napoleão mandou que os bichos se reunissem no pátio... deu um guincho estridente. Imediatamente os cachorros avançaram... Para surpresa de todos, três deles lançaram-se sobre Sansão. Ele reagiu com um pataço, que pegou um dos cachorros ainda no ar, e apertou-o no chão. O cachorro ganiu pedindo piedade, e os outros dois fugiram com o rabo entre as pernas. Sansão olho para Napoleão para saber se devia liquidar o cachorro ou deixá-lo ir. Napoleão pareceu mudar de expressão e, ríspido, ordenou a Sansão que o soltasse... E assim prosseguiu a sessão de confissões e execuções, até haver um montão de cadáveres aos pés de Napoleão... Durante algum tempo ninguém falou. Só Sansão permanecia de pé. Andava, impaciente, de um lado para o outro, batendo com a longa cauda negra nos flancos e proferindo, de vez em quando, um gemido de estupefação. Finalmente disse: “Não entendo. Nunca pensei que coisas assim pudessem acontecer em nossa granja. Deve ser o resultado de alguma falha nossa. A solução que vejo é trabalhar mais ainda. Daqui por diante vou levantar uma hora mais cedo.”
...Os animais estavam fazendo a refeição matinal quando os sentinelas chegaram correndo com a notícia de que Frederick e seus seguidores já haviam atravessado a porteira... Corajosos, os bichos saíram ao seu encontro, mas desta vez não obteriam uma vitória fácil... E os animais ouviram, vindo da direção da granja, o troar solene da espingarda. “A troco de que está atirando aquela arma?”, perguntou Sansão. “Celebrando a nossa vitória!”, exclamou Garganta. “Vitória? Que vitória?”, gritou Sansão. Tinha os joelhos sangrando, perdera uma ferradura, rachara o casco, e uma dúzia de chumbinhos havia se alojado em sua pata traseira. “...eles destruíram o moinho de vento. Nosso trabalho de dois anos!” “Que importa? Construiremos outro...” Quer dizer que ganhamos o que já era nosso”, retrucou Sansão... As balas sob o couro de Sansão aferroavam dolorosamente. Ele enxergava a sua frente a pesada tarefa de reconstruir o moinho de vento, e mesmo em imaginação já se atirava ao trabalho. Pela primeira vez, entretanto, ocorreu-lhe a lembrança de que tinha onze anos de idade e que talvez seus músculos não tivessem a mesma força de antes.
...Napoleão ordenou que fosse arado o pequeno potreiro atrás do pomar, anteriormente destinado ao repouso dos animais aposentados. Espalhou-se que a grama estava cansada e necessitava de uma nova semeadura, porém, logo se soube que Napoleão pretendia semeá-la com cevada.
...A rachadura do casco de Sansão levou tempo para cicatrizar... Sansão recusou-se a aceitar um só dia de dispensa, e fez questão de não dar mostras da dor que sofria... tanto Quitéria como Benjamim dizia a Sansão que não trabalhasse tanto. “Pulmão de cavalo não é de ferro”, alertava ela. Sansão, porém, não atendia. Explicava que só tinha uma ambição, ver o moinho de vento concluído antes de aposentar-se. De início, quando as leis da granja dos bichos foram elaboradas, fixara-se a idade de doze anos para os cavalos... Para os animais idosos, fixaram-se pensões generosas. Até então nenhum bicho se aposentara, mas ultimamente o assunto vinha sendo objeto de frequentes conversas. ...O décimo segundo aniversário de Sansão seria no fim do verão do ano seguinte.
...Depois que o casco ficou bom, Sansão trabalhou mais violentamente do que nunca. Aliás, naquele ano, todos os bichos trabalharam feito escravos. ...Às vezes ficava difícil aguentar as longas horas sem comer, mas Sansão nunca fraquejou. ...Apenas sua aparência estava um pouco modificada... “Sansão vai se recuperar quando crescer o capim da primavera”, diziam os outros, mas a primavera chegou, e Sansão não mudou de aspecto. Por vezes, na rampa da pedreira, quando enrijecia a musculatura contra o peso de um enorme pedregulho, tinha-se a impressão de que apenas a vontade o mantinha em pé. Nesses momentos seus lábios formavam claramente as palavras “Trabalharei mais ainda”, mas não emitiam nenhum som.
...Certa noite, no verão, correu a súbita notícia de que algo acontecera a Sansão. ...”Sansão está caído, não consegue levantar-se!” ...Lá estava Sansão, deitado entre os paus da carroça, com o pescoço esticado e sem poder sequer levantar a cabeça. Corria-lhe da boca um filete de sangue. Quitéria abaixou-se ao seu lado. “Sansão”, chamou, “você está bem?” “É o meu pulmão”, ele disse quase sem voz. “Não tem importância. Vocês terminarão o moinho sem mim. Já deixei bastante pedra aí. De qualquer maneira, só me restava um mês de atividade. Para falar a verdade, tenho estado à espera desta hora. E, como Benjamim também está ficando velho, talvez o deixem aposentar-se para me fazer companhia.”
...“Precisamos de socorro imediatamente”, gritou Quitéria. ...Mais ou menos um quarto de hora depois, Garganta apareceu, cheio de simpatia e preocupação. Disse que o camarada Napoleão tomara conhecimento, abaladíssimo, do mal que sucedera a uma dos trabalhadores mais leais da granja, e já estava cuidando de enviar Sansão para tratar-se no hospital de Willingdon. ...Durante os dois dias seguintes Sansão permaneceu na baia. ...Sansão afirmava não estar triste com o acontecido. Caso se recuperasse bem, poderia viver mais três anos, e já imaginava os dias tranquilos que passaria no rincão da pastagem. Seria a primeira vez que lhe sobraria tempo de folga para estudar e melhorar seus conhecimentos. Pretendia dedicar o resto de sua existência ao aprendizado das vinte e duas letras restantes do alfabeto.
...Era a primeira vez na vida que viam Benjamim nervoso – para falar a verdade, era a primeira vez que alguém o via galopar. “Depressa, corram!”, gritou. “Venham logo! Estão levando Sansão!” ...”Até breve, Sansão!”, gritaram. “Até já!” ...”Idiotas! Idiotas!, exclamou Benjamim, corcoveando em volta deles e ferindo o chão com os cascos pequeninos. “Imbecis! Não veem o que está escrito ali ao lado?” “Alfred Simmonds, matadouros de cavalos, fabricante de cola, Wellington, peles e farinhas de ossos. Fornece para canis. Será que não percebem? Vão levar Sansão para o carniceiro!” ...Nesse momento, o homem da boleia estalou o chicote, o os cavalos saíram a trote vivo, abandonando o pátio.
...Três dias depois, chegou a notícia de que havia falecido no hospital veterinário de Wellington...
Extraído do livro: A revolução dos bichos – Autor: George Orwell. Compre e leia o livro, vale a pena.


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