Naquele dia, na tentativa de fugir da rotina, resolve pegar o trem. Enjoara de viajar apenas de lotação. Sentia um seco na boca, além de um leve enjôo. O café tomado no bar estava forte demais. Ao embarcar na estação, pensa na vida. Quando jovem utilizara aquele meio de transporte à exaustão. Recorda das suas longas caminhadas rumo à antiga estação de Morro Agudo. O som produzido pelo trem lhe aprazia. A voz do locutor anunciando a próxima parada era a que mais lhe causava admiração, não importava quem fosse o locutor ou locutora.
Contudo, naquele dia o ramal era outro. Não era o Japeri da sua infância. Estava na estação Belford Roxo. A composição, apesar de cheia, lhe ofecera um lugar, não próximo da janela. Ao se aproximar de Vila Rosali, um pé de jamelão toma a paisagem. A infância lhe invade o pensamento. Sentia uma melancolia estranha e inexplicável, como toda melancolia. O barulho do trem lhe agrada. Involuntariamente, um quadro de sua meninice toma forma. Os trilhos, a imensidão da linha férrea, espremida entre casas na maior parte do percurso. Desejara ser maquinista. Que moleque algum dia não o quis?
Começa a anoitecer na altura de Magno. Desceria na Central, dentro de instantes, a escuridão tomaria conta dos trilhos. No breu da noite, o trem se perde. Parece flutuar no céu. Não sabia o porquê, mas aquela sensação lhe agradava. Fazia anos que não tinha um laivo de lirismo em sua vida.
De repente, um, dois, três, dez, trinta, quarenta vagalumes cruzam a treva, uns próximos, outros distantes. Não costumava ter verve emocional por sua personalidade seca e cética, moldada, cuidadosamente, por uma vida igualmente seca e cética. Contudo, sentiu esboçar no rosto o início de um sorriso. Outra vez a infância apenas não invade-lhe a mente como se presentifica. Os vagalumes, ou pirilampos, representavam a vida. Seres que portavam a luz... Olhava fascinado tentado desvendar da onde vinha aquela fluorescência renintente. Nunca vira tantos vagalumes assim. Talvez uns cem. Avesso as suas crenças, entende aquilo como um presságio. Uma sensação diferente da que sentia assalta seu corpo. O sorriso deixa de ser esboço e passa a delinear os lábios secos. Num rompante se levanta, quer colocar a cabeça do lado de fora do vagão, como há anos. Deseja tentar tocar um pirilampo. Sempre o quis. No logro, quem sabe, de tocar aquilo que sentia. Ele não é mais adulto, é um menino. Quer sim, unir-se aos vagalumes, piscar como eles e partilhar da sua luz mergulhada no negrume.
Ao se aproximar da janela, na fronteira entre o êxtase e o abismo, vê vultos, sombras, espectros. Algo quase humano vagando. Começa a ganhar um contorno singular. Eles vagam sem direção. Não...não são vagalumes. Não são! Um átimo de segundo foi o suficiente para entender.
São cachimbos de crack. Homens, mulheres, crianças de diversas idades. Espectros legados à escuridão.
Rápido, se afasta da janela. Em seus lábios o contorno de um sorriso promissor é interrompido. Sente a boca secar ainda mais.
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