Nossos áureos tempos

Autor: Marcelo Queiroz Braga

Contato: mqb@ig.com.br

As horas não passavam. Mas minhas unhas continuavam crescendo, como se eu estivesse perdido numa ilha deserta ou em férias sem um cortador de unhas.
Nada disso importa. Ela ficara de chegar às dezenove horas em ponto. Em ponto! vejam bem. Já passava um quarto das vinte horas.
Sorte que tenho a mania de carregar sempre um livro — ou coisa que o valha. Ajuda a matar o tempo, distrai. Mas, àquela hora, naquelas circunstâncias, de nada valia. Eu estava nervoso, aflito.
Chegou sorrindo, o que em nada apaziguou minha aflição. Trazia as mãos carregadas de sacolas. Decerto batera pernas até mais tarde na Savassi, não se importando com minha aflição. Eu, que detesto esperar.
Mostrou-me rapidamente tudo o que comprara: uma saia preta que batia um pouco abaixo do joelho; uma blusa dourada decotada, como a moda impunha; um top preto, para usar com sua saia godê; e uma blusinha transparente, “só para matar a vontade”, fez questão de frisar. Seiscentos e noventa e cinco reais… de três vezes! Um negócio da China, verdadeira pechincha. Sei, sei. Quatro peças de roupa, setecentos reais. Vai entender…
Claro que achei um absurdo! Não estava acostumado com a diferença entre o preço das roupas masculinas e o das femininas. E, além do mais, muito raramente comprava roupa para mim. Deixava ao encargo de minha mãe. Minha santa mãezinha…
Pretendia pegar um cinema, mas a sessão já havia começado. Não quis jogar isso na cara dela, apesar de ter todo o direito. Ela ainda sorria, e só então seu sorriso começou a fazer efeito em mim.
Ela se parecia tanto comigo! E isso me fazia sentir por ela uma pena quase tão grande quanto a que sentia de mim mesmo.
O brilho de seus olhos refletia a mesma pureza que, há muito, os meus já não tinham. O seu jeito de falar de tudo sempre com o mesmo entusiasmo frenético me dava alento, ânimo. Eu rejuvenescia aos poucos com cada sorriso que ela me dava, com cada gargalhada gostosa que ela soltava, com cada comentário inocente que ela fazia. A monstruosa diferença de idade que havia entre nós até me aprazia. Às vezes.
Enquanto rumávamos para casa — o cinema já havia gorado mesmo… — relembrava os nossos áureos tempos, logo quando nos conhecemos naquela boate que já não existe mais — época em que eu ainda não sentia pena de nada nem, tampouco, aquela impaciência que sua voz calma começava a me causar.
Ela ia falando sobre as lojas que freqüentara durante toda a tarde, e eu nem prestava atenção. Apenas tinha na cabeça a lembrança do que fôramos em nossos tempos áureos, logo no começo do namoro.
Um fiozinho de tesão percorria meu corpo quando relembrava as nossas primeiras transas, ela completamente virgem — fisiológica e moralmente —, ávida por experiência, lições, aulas práticas, agindo por puro instinto, fêmea de grande potencial, como, de fato, vim a confirmar posteriormente. As noites e noites que passamos em claro, quase morrendo de tanto amor. Mais eu, pois ela era um poço de juventude, um calor envolvente, um desejo insaciável, amava a noite inteira e não me deixava dormir quando o sol aparecia mais pálido que de costume, querendo amar mais e mais até que o dia já estivesse acordado e ela pudesse sair à rua para andar de patins.
Como ela ficara feliz no nosso primeiro Natal, quando cheguei em sua casa carregando o enorme embrulho! Perguntou o que era, balançou a caixa, tentando adivinhar sem ter de abrir o embrulho. Fiz-me de bobo, permaneci calado, insistindo na surpresa. Seus olhos brilharam com toda a pureza que eles sempre tiveram logo que a caixa perdeu todo o papel cor de rosa. “Patins! Eu adoro patins!”. Eu sabia. Por isso mesmo que os comprara. O óbvio saía de sua boca dum jeito tão inocente que se dissimulava em verdade ocasional.
Voltava suada e doida para me ter novamente. Dizem que o exercício físico desperta a libido, aflora a tesão e, nessas horas, quando ela chegava toda suada e com um sorriso lindo no rosto, eu confirmava na própria pele as experiências teóricas feitas nas Universidades norte-americanas. Ela voltava tanto ou mais voraz do que quando saía para patinar. E eu acabava desistindo de tentar dormir e me entregava à fúria de seu desejo de recém-desvirginada.
Nunca pensei que pudesse falar tão calmamente sobre nossa intimidade, ainda mais me utilizando de palavras tão cruas quanto nuas…
Agora, ela falava de como conseguira um desconto tão substancial e eu nem me importava; nem que ela tivesse comprado sem desconto algum eu teria me importado, apesar de o dinheiro gasto haver sido o meu. Eu precisava parar de deixar minha santa mãezinha comprar minhas roupas. Isso me causava um certo desconforto, vergonha até. No começo, escondi dela essa minha fraqueza, essa minha dependência inveterada. Mas depois deixei que ela soubesse, ela achou natural e até riu. Linda! Eu adorava quando ela ria daquela forma, entre cúmplice e algoz.
Chegamos em casa logo. Fui direto ao banheiro e fingi não ouvir ela me chamando para a cama. Dizia que eu não precisava ir para o banheiro fazer o que estava fazendo, porque ela poderia muito bem me ajudar, adorava me ajudar com aquelas coisas. E perguntou se eu não me lembrava do tanto que ela gostava de me ajudar. Fingi não ouvir e terminei sozinho o que começara sozinho, ainda envolto pelas lembranças de nossos áureos tempos.
Quando saí, ela já estava nua sobre a cama. Reparou em minhas olheiras e confirmou o que apenas havia suposto: eu de fato havia feito aquilo. Sozinho. Ensaiou uma tromba, que logo se desfez. Ela nunca conseguira ficar emburrada comigo por mais de um minuto. Me chamou: “Vem…”. Eu disse que não iria. Naquela noite, não. Ela pegou seus patins — há muito guardados no maleiro do armário embutido — e disse que sairia à rua para patinar. Eu argumentei que era noite, você não sabe patinar à noite. Ela se mostrou um tanto confusa, mas logo retorquiu, satisfeita: “É o mesmo que andar de dia, só que não tem sol!”. Mas mesmo assim você não vai! Ensaiou outra tromba, que se transformou em um sorriso largo, tão logo eu tirei as calças para vestir o pijama. Agarrou-se em mim, impossibilitando-me qualquer movimento.
Acabei me rendendo. Mas já não conseguia varar a noite brincando de amar. Ela sentia falta do ardor de nossos áureos tempos e se postava num canto do quarto, tomando sorvete de morango e tentando chorar.
Quando acordei, ela ainda estava lá do mesmo jeito, mas as tentativas de choro perdidas no tempo.
“Já é dia. Vá patinar”. Então, ela levantou de um salto, catou os patins jogados pelo corredor e me olhou com o brilho de sua pureza. Sorriu para mim aquele sorriso dela que eu sempre adorei e que, como ela, nunca muda.
Ouvi o bater da porta quase simultaneamente com seu grito: “Te amo!”. Permaneci deitado, relembrando nossos áureos tempos, enquanto esperava que ela voltasse toda suada da rua.

conto anterior

Conto anterior

          

Próximo conto

próximo conto