Índio

Autor: Ermitão da Picinguaba

Contato: Ermitao.Picinguaba@mail.EUnet.pt

Enquanto houver um guerra ninguém tem o direito de trazer uma criança ao Mundo. Ermitão da Picinguaba, 1945...
Saiu da sua Terra Natal como degredado, chegou onde chegou após muitos anos de sacrifícios, renúncias, formação do seu lar, de sua família, de suas propriedades.
Chegou mesmo a CRÊ SER e crendo, foi crescendo e sendo, a família também cresceu, os tempos de infância às vezes passavam, assim como os da juventude pela sua mente....
Vivia em um bairro simples de uma cidade Europeia, cheia de comércio e de movimento, seus dias eram repletos de trabalho no campo, colhendo uvas e amassando-as com os pés.O vinho era de primeira linha e só quem o bebia eram os nobres, a burguesia. Durante anos seguiu os passos embriagados de seus pés sóbrios e desejosos de também poder sorver das delicias que eram só para quem nem tomar sol tomava, com receio de estragar a pelo e apanhar um câncer.
O tempo, inapelável juiz de nossas atitudes, passou por todos e por ele passava "sobrando" essa passagem.Uma noite reuniu três de seus melhores amigos e decidiram que iriam beber "O Vinho" afinal, eles o faziam, nada mais que direito...
Embrenharam-se pelas colinas sentindo água na boca, as estrelas no céu, pareciam indicar o caminho certo. A Lua, aprisionada ao magnetismo do sistema solar... só lar... meia cheia de tudo, escondeu-se por detrás de uma nuvem e sorrateiramente deliciava-se com a aventura dos quatro.Até porque ,muitos saudavam-na com "brindes" em Terra ou Alto Mar e ela mesma tinha que à distancia aceitar fosse o que fosse ...estava presa !!!
E naquele dia as nuvens que por ali passassem permitiriam que ela participasse sem se envolver, apesar de que, de certa forma ela era a responsável por boa parte do que ocorria no Planeta Terra...TER...Rá!!! Ter Deus Sol.
Os quatro rapazes chegaram à vinícola. Ale Mohamed tirou o chapéu de feltro com aba curta, bateu nas pernas que estavam cheias de picões do mato.Olhou ao redor, nada o preocupava.Seus colegas estavam cada minuto mais excitados...
Vamos!!!! Entraram sorrateiramente pelo galpão de madeira a dentro, chegaram onde ficavam amarzenados os "Quintos"... surrupiaram alguns e saíram da mesma forma como entraram só que sobrecarregados...e lá se foram.
Ao chegarem em um bosque, colocaram os quintos sob a água de uma fonte para refrescá-los. Ale Mohamed preparou o cachimbo e sorria ao saber que logo , logo ,iria saborear o que a vida inteira fez!!!
Um dos companheiros deitou sob a copa de um pinheiro e observava a Lua observando-os.O outro tirou as botinas e as meias, aliviando seus pés da longa caminhada.O terceiro impetuosamente apanhou o seu "quinto" e , antes mesmo que os outros resfriassem sacou da rolha que estava protegida por uma camada de cera e breu, emborcou o líquido precioso do néctar baconiano.
A cada gole uma sensação nova, cantou, dançou, enquanto os outros pouco a pouco também apanhavam seus "quintos" e lá se iam em suas ilusões soltando-se ..só indo onde sempre quiseram ir.
Sorviam cada gole como se do último se tratasse e assim chegaram, cada qual do seu jeito e modo ao estágio dos sonhos de olhos abertos.
Após estarem "viajando sobre as nuvens" resolveram ir para a vila, caminhando e bebendo, cantando, dançando, voando, sonhando...
...Acordou de seus pensamentos com o filho mais novo chamando-o:
- Papai, Papai!!!
- Diga meu Filho.
- O Senhor sabia que vamos ver aquelas terras hoje à tarde???
- Sabia não, sei!
- Pois então, disseram que pertencem aos Índios.
- E Índio lá tem alguma coisa???
- Bem, o senhor sabe o que faz! Até mais tarde.
Balançou-se na rede, acendeu um cigarro de palha que já havia enrolado antes de "sonhar", levantou-se, foi à cozinha, deu um tapa na bunda da mulata que lhe serviu café...Cá...Fé...., e saiu em direção ao cavalo que iria levá-lo novamente a ver as NOVAS TERRAS DA FAZENDA.
Observou se a espingarda estava carregada junto à sela, passou pelo celeiro, apanhou um cinturão de balas e, sem esperar ninguém seguiu mato a dentro ..."Terra de Indio , esta é muito boa!"
Cavalgou uma légua até chegar ao monte que permitia avistar as terras que iriam utilizar para pasto, lá embaixo.
E lá embaixo estava a aldeia dos Índios, Pacífica, com muitas crianças brincando com algumas cabras e porcos. As crianças descalças pisavam na terra enquanto mulheres socavam uma espécie de tacape em um pilão. Observou com um binóculo tudo o que lá acontecia , de repente percebeu alguém , um casal, que estava dentro de uma tina de madeira, ...
Algumas mulheres à volta, sorriam enquanto pareciam dançar.Os dois foram substituídos por um casal idêntico, ela grávida vestida com um traje feito com couro pintado.
Os que saíram iam em direção a um velho Indio que sentado em um tamborete também de couro pintado, tendo um cocar com chifres de búfalo e penas multi-coloridas , fumava um grande cachimbo , cuspia no chão a cada tragada , pegava o cuspe com o barro que formava, passava na testa dos dois e lhes indicava uma choça toda preparada , por onde uma fumaça branca saía.
O ritual continuou por umas cinco ou seis vezes. Vários casais e sempre a mulher Índia estava grávida, socavam a mistura que havia na tina, recebiam a "benção" do que parecia ser um Pagé e seguiam para a tenda de onde saía a fumaça branca.
Ele foi se aproximando pela mata sem se preocupar muito, deixando o cavalo ir naturalmente como se aquela fosse a rotina diária. Aquela aldeia ainda estava intacta, pura..!!!
Sabia a linguagem deles. Ao chegar perto dele o indiozinho que corria atrás de um cabritinho olhou para o belo animal que ele montava, respirou de emoção e sorriu, ele tirou o chapéu ao se aproximar mais da aldeia e fez um sinal com a boca parecido com o uivo de um Lobo.
O indiozinho que vinha logo atrás sorriu juntamente com outros da Aldeia.
O Pagé continuava sentado e muito sério, nem olhou para o estranho que se aproximava. O indiozinho alertou os outros e o mais velho deles aproximou-se, falou algo e todos acorreram em direção ao cavaleiro que recolocara o chapéu e abria um alforje entregando a cada um algumas pedrinhas brilhantes e coloridas...amarradas em um fio de nylon.
Eles pulavam de alegria enquanto o ritual dos casais continuava muito sério e discreto, do outro lado da aldeia.
Ele foi se aproximando, agora a pé, rodeado pelos Indios mais jovens. Ao chegar ao centro da Taba, o que parecia ser um Cacique aproximou-se do casal que "amassava" a mistura com os pés. O casal retirou-se e seguiu o Ritual. O Pagé então levantou-se , aproximou-se da grande tina, apanhou uma cuia que pendia de uma árvore próxima enfiou-a com muito mistério dentro da tina , levantou-se em reverência ao Sol, com a cabeça baixa, dirigiu o conteúdo da cuia aos lábios.
Outro Indio assomou da grande choça também com um grande cocar de penas que iam até aos joelhos; aproximou-se da velha tina, jogou algo parecido com cinzas, com as duas mãos, para dentro dela...Depois com uma das mãos fez um círculo em direção ao Sol....cantava, dançava, sonhava...a música dizia: Luz!!!!
Dali a pouco assomou à porta da grande choça uma India Idosa com um bebê recém nascido nos braços e o cordão umbilical cortado, entre os lábios , soprava e o cordão enchia-se do sopro da vida...Aproximou-se da grande tina, entrou e começou a cantar, a dançar, a sonhar...pisando lá dentro como se pisasse em nuvens...
Ale Mohamed olhou tudo aquilo, deu meia volta e voltou para a mesma rede, a mesma varanda, outro cigarro de palha, o mesmo tapa na bunda da mulata que lhe serviu o café...o filho chegou em uma carroça ...
- Papai vamos lá ver as Terras???
- Não... ninguém mais vai lá... NINGUÉM!!!!
O filho deu meia volta à carroça e sumiu.
O cigarro apagou, o homem sonhava, no sonho ele era um coroinha; a missa era em Latim... O Padre falando:
"In nome di Patre, Di Fili e di Spiritus Sanctus, Amém... In... Dio..."
Índio... In... Dio... Em Deus!
A cadeira balançava, o Homem sonhava, voava, cantava, dançava... ao seu lado sobre uma mesinha com toalha da Ilha da Madeira, um Quinta de Vinho Madeira...vazio...
Escrito em 1987 no Pantanal... do Mato Grosso, Brasil!!!
Édison Pereira de Almeida - Escritor Brasileiro.
Oficina de Textos - Onde O Verbo aprimora a verba.
Sítio da Relva - Assomadinha
9100 SANTA CRUZ - Ilha da Madeira - Portugal

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