Nunca mais

Autor: Daniel Pellizzari

Os morcegos não o deixaram em paz na noite em que decidiu que não iria mais dormir. Chovia, e alguns deles, desorientados, procuraram refúgio em sua janela. Os guinchos agudos se misturavam aos trovões e às baforadas de cigarro, enquanto ele esfregava os olhos e se espreguiçava. No escuro, a quitinete parecia ainda menor, e ele tropeçava nos livros espalhados pela forração suja.
Já não dormia há três dias quando ela apareceu com uma garrafa de vinho, sabe como é, sempre bate uma saudade dos amigos, mas o que houve contigo que parece tão cansado, teus olhos. Ele quase sorriu, e pediu que ela mesma abrisse o vinho, não se sentia com força suficiente, mas o que acontecera enfim.
- Nunca mais vou dormir - ele suspirou, enquanto ela procurava o saca-rolhas.
Como assim, ela quis saber, ninguém pode ficar sem dormir. Ele acendeu um cigarro na ponta do que terminava e falou do medo, encolhido na velha poltrona de molas à mostra.
- Sabe - e inspirou a fumaça - Eu posso não acordar mais. Nunca mais.
Nunca mais, repetiu, os olhos apertados fixos no teto. Ela tomou um gole do vinho e sentou-se no chão ao lado de seus pés descalços, unhas crescidas, alguns calos. E como você espera conseguir isso, quis saber, como se o medo fosse algo tão natural como não entrar no mar por medo de morrer afogado.
Ele levantou devagar, as pernas estalando ao serem descruzadas, e caminhou até o criado-mudo ao lado da cama. Abriu a gaveta e dali tirou uma pequena caixa de madeira, verniz brilhante. Passou as costas da mão pela testa e voltou à poltrona. Vem cá, chamou.
Dentro da caixa havia uma seringa e uma borracha e uma colher e uma isqueiro e um saquinho plástico com um pó branco-amarelado, também alguns chumaços de algodão, uns limpos, outros sujos de sangue.
- Ah, isso - disse ela, ajoelhada ao lado da poltrona - Mas não vai durar pra sempre.
- Eu sei - ele respondeu, um dedo no nariz - Me dá o vinho.
Ela lhe estendeu o copo e só aí prestou atenção em seus braços, cheios de pequenas marcas roxas, algumas já enegrecidas. Bom esse vinho, ele sorriu, e trancou um bocejo. Sabia que uma hora o pó terminaria, na verdade nem mais sentia o efeito, mas pelo menos não dormia. Só tinha medo da hora em que acabasse, porque teria que sair do apartamento para comprar mais, isso cansaria tanto, e viria o sono, e ele nunca mais iria acordar.
- Não tem problema - ela disse, passando a mão em seus cabelos, o rosto dele estava tão frio - Eu posso trazer pra você.
Sério mesmo, ele duvidou e sentiu um calor subir no rosto, o canto dos olhos ardeu um pouco, mas não quis chorar, não podia, e nem percebeu a lágrima.
- Claro - sorriu ela - Amigos são pra isso, não são?
- É. São.
Silêncio, e anoitecia, a lâmpada estava queimada, o apartamento se enchia de sombras e luzes que vinham de fora, do mundo. Ele levantou, guardou a caixa, sentou na cama desarrumada e disse, terminando o copo de vinho:
- O mundo é uma merda.
Antes que ela concordasse, ele continuou, a vida é uma completa bosta e a única coisa que vale a pena são os sonhos, só que tenho medo de ficar preso neles e não voltar nunca mais, lá é tão bom, tudo é assim, sabe, como tinha que ser. Agora percebia as lágrimas, mas já desistira de evitá-las.
- Por isso, decidi não dormir mais - e encheu o copo novamente, deixando transbordar um pouco.
Ela sentou na cama a seu lado, pegou de leve em seus braços machucados e disse, a vida é sonho, alguém já disse isso, Shakespeare talvez, não tenho certeza. Porra, quem sabe isso aqui é um grande pesadelo e o que você sonha é a realidade, pensa bem. Ele enxugou o rosto com o travesseiro e olhou com atenção para ela, tão pequena, o rosto tão bonito, o corpo quente, amiga.
- É - a voz um gemido - É.
O vinho terminara, e não havia mais álcool na casa. Só cigarros, e cocaína. De repente ele assoou o nariz na camiseta, sorriu e disse, é verdade, acho que eu vou dormir então, é, vou dormir.
- Só tenho medo que me acordem e eu volte pra cá - terminou, encolhendo as mãos entre as pernas.
Pode deixar, eu cuido de você, ninguém vai te acordar, ela garantiu.
-Tá - ele sorriu, um rastro brilhante descendo do nariz até a boca.
Deitou, e ela lhe cobriu, primeiro com o lençol, depois com o cobertor, como uma mãe faria com o filho doente. Deu-lhe um beijo na testa e sentiu vontade de contar uma história, mas quando aproximou o rosto percebeu que ele já dormia, a respiração profunda, a expressão cansada, a boca aberta.
Olhou pela janela, viu as luzes dos carros que passavam pela rua treze andares abaixo, começava a chover, aquele inverno estava sendo terrível. Colocou os copos na pia, a garrafa no lixo e pôs a bolsa no ombro. Girou a maçaneta da entrada e olhou mais uma vez para a cama, quase não se enxergava nada.
-Tomara que você morra - disse, e fechou a porta.

conto anterior

Conto anterior

          

Próximo conto

próximo conto