Pergunta: Qual a maior dificuldade para defender as ideias de Maquiavel?

São muitas as interpretações, negativas ou positivas, que Maquiavel recebeu ao longo dos séculos. Já em seu próprio século Bodin se referiria ao escritor florentino ora como “o primeiro que, segundo minha opinião, escreveu sobre a república, depois que, por cerca de mil e duzentos anos, a falta de cultura tomou conta de todas as coisas que circulavam pela boca de todos; e não há dúvida de que teria escrito mais, com mais verdade e melhor, se tivesse unido à experiência os escritos dos antigos filósofos e historiadores” (Methodus ad facilem historiarum cognitionem, 1566) ora como um teórico das tiranias, afirmando, no prefácio de seus Seis livros da república (1576), que “temos como exemplo um Maquiavel que teve sua voga entre os mercadejadores de tiranos” e que “pôs, como os dois fundamentos das repúblicas, a impiedade e a injustiça, acusando a religião como contrária ao Estado”. Também Giovanni Botero identificaria o pensador florentino com um teórico das tiranias e um dos fundadores da teoria da razão de Estado, afirmando, no prefácio de seu Das razões de Estado (1589), que “nelas [nas cortes reais], entre outras coisas por mim observadas, muitíssimo me admirou ouvir mencionar a toda a hora a razão de Estado e, a este propósito, citar [...] Maquiavel [...] por dar preceitos respeitantes ao governo e domínio dos povos”, e que, “assim, tendo começado a dar uma vista de olhos a um e outro autor, veriiquei que, afinal, Maquiavel fundamenta a razão de Estado na pouca consciência”. Enquanto Montaigne, depois de afirmar em seus Ensaios (publicados em 1580 [livros I e II], 1588 [livro III]), sobre o maquiavelismo, que “aqueles que em nossa época consideram dever precípuo do príncipe tratar unicamente de seus negócios, os quais se sobreporiam á fé e à consciência, podem aconselhar com aparência de razão a que assim aja quem se encontre em situação tal que lhe seja dado consolidá-la em faltando uma só vez à palavras”, escreveria, prezando pelo ceticismo e pelo relativismo político, que “os princípios de Maquiavel são, por exemplo, bastante sérios a esse respeito [sobre os negócios da política serem incertos], e no entanto têm sido facilmente refutados, e os que os refutam apresentam razões igualmente refutáveis”. No século seguinte, num dos maiores elogios que recebera na história da filosofia política, Maquiavel é tratado com as seguintes palavras por Espinosa, em seu inacabado Tratado político (1677): “Talvez Maquiavel tenha querido, também, mostrar quanto a população se deve defender de entregar o seu bem-estar a um único homem que, se não é fútil ao ponto de se julgar capaz de agradar a todos, deverá constantemente recear qualquer conspiração e, por isso, vê-se obrigado a preocupar-se sobretudo consigo próprio e, assim, a enganar a população em vez de a salvaguardar. E estou tanto mais disposto a julgar assim acerca deste habilíssimo autor, quanto mais se concorda em considerá-lo um partidário constante da liberdade e quanto, sobre a maneira necessária de a conservar, ele deu opiniões muito salutares” (V, §7). Da mesma forma, Pierre Bayle escreveria em seu Dicionário histórico e crítico (1696-1697): “É surpreendente o pequeno número de pessoas a não considerarem que Maquiavel ensina aos príncipes uma política perigosa; pois, ao contrário, são os príncipes que ensinam a Maquiavel o que ele escreveu. Os mestres de Maquiavel foram o mundo e o que nele se passa e não uma meditação oca de gabinete. Que queimem seus livros, ou os rejeitem, ou os traduzam ou os comentem, nada disso alterará o governo. Em virtude de uma infeliz e funesta necessidade, é preciso que a política se eleve acima da moral”. No século XVIII, Rousseau, herdeiro de leitores republicanos de Maquiavel como Espinosa e Diderot, airmaria em O contrato social (1762) que, “fingindo dar lições aos reis, [Maquiavel] deu-as, e grandes, aos povos” e que “O príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos” (III, VI), completando, numa nota acrescentada na edição de 1782, com a seguinte impressão: “Maquiavel era um homem honrado e um bom cidadão, mas, ligado à casa dos Medicis, via-se obrigado, diante da opressão de sua pátria, a dissimular seu amor pela liberdade. A simples escolha de seu execrável herói deixa manifesta sua intenção secreta, e a oposição dos preceitos de seu livro O príncipe aos de seus discursos sobre Tito Lívio e de sua História de Florença demonstra que esse político profundo só teve até aqui leitores superficiais ou corrompidos. A corte de Roma proibiu severamente o seu livro, creio. É essa corte que ele descreve mais claramente” (III, VI). Inspirado em Rousseau (mas não em sua leitura de Maquiavel), Robespierre escreve, no “Discurso sobre os princípios de moral política que devem guiar a Constituição Nacional na administração interna da República” (de 05 de fevereiro de 1794): “Se não tivéssemos tido uma tarefa maior a cumprir, se aqui se tratasse apenas dos interesses de uma facção ou de uma aristocracia nova, poderíamos ter acreditado, como certos escritores ainda mais ignorantes que perversos, que o plano da Revolução francesa estava escrito por extenso nos livros de Tácito e de Maquiavel, e poderíamos ter procurado os deveres dos representantes do povo na história de Augusto, de Tibério ou de Vespasiano, ou mesmo na de certos legisladores franceses; pois, afora algumas nuanças de perfídia ou de crueldade, todos os tiranos se assemelham”. No século XIX, Maquiavel seria envolvido nas diversas disputas nacionalistas, inspirando o jovem Hegel a escrever A constituição da Alemanha (escrito entre 1801-1802 e publicado em 1893), que dizia: “A obra de Maquiavel permanecerá como um grande testemunho, tanto de seu tempo como de sua própria fé em que o destino de um povo que apressa sua decadência política pode se salvar graças ao gênio”; assim como Fichte a escrever um panleto nacionalista chamado Sobre Maquiavel como escritor (1807), onde se lê os seguintes dizeres: “Maquiavel repousa inteiro sobre a vida efetiva e a imagem dela, a história; e tudo aquilo que o mais ino, o mais abrangente entendimento e sabedoria prática da vida e do governo são capazes de introduzir na história e, por isso mesmo, desentranhar novamente dela, ele o executa exemplarmente e, como estamos inclinados a acreditar, de maneira privilegiada em relação aos outros escritores modernos de sua espécie”. No século passado, inúmeras imagens de Maquiavel voltariam a reproduzir as ideias já bastante matizadas (mas nunca esquecidas) ao longo dos séculos, especialmente o fantasma do maquiavelismo. O grande sociólogo alemão Max Weber compararia o maquiavelismo moderno de Maquiavel como o antigo de Kautilya, afirmando, em seu A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904-05 [1ª versão]; 1920 [2ª versão]): “Maquiavel por certo, teve precursores na Índia, porém em todas as teorias políticas indianas faltava um método sistemático comparável ao de Aristóteles inexistindo conceitos racionais”; e repetindo, em sua palestra “A política como vocação” (proferida em janeiro de 1919): “A literatura hindu chega a oferecer-nos uma exposição clássica do ‘maquiavelismo’ radical, no sentido popular de maquiavelismo; basta ler o Arthaçastra, de Kautilya, escrito muito antes da era cristã, provavelmente quando governava Chandragupta. Comparado a esse documento, O príncipe de Maquiavel, é um livro inofensivo”. Em sua famosa conferência sobre o pensador renascentista, chamada “Nota sobre Maquiavel” (1949), Maurice Merleau-Ponty concluía o seguinte: “Há uma maneira de desqualificar Maquiavel que é maquiavélica, e consiste no ardil piedoso daqueles que dirigem seus olhos e os nossos para o céu dos princípios para desviá-los daquilo que fazem. E há um a maneira de louvar Maquiavel que é todo o contrário do maquiavelismo, pois honra na sua obra uma contribuição à clareza política”. Enquanto Hannah Arendt, fortemente influenciada pelo pensamento republicano de Maquiavel, asseveraria, em suas anotações para um curso oferecido nos EUA em 1955: “Maquiavel não pergunta jamais: para que serve a política? Isto é muito surpreendente. Ninguém salvo ele põe inteiramente de lado essa questão. A política não tem fim mais elevado do que ela própria”. Também Michel Foucault, em seus cursos dados no Collège de France entre 1975-1976, airmaria: “Mas, na verdade, em Maquiavel, a história não é o domínio no qual ele vai analisar relações de poder. A história, para Maquiavel, é simplesmente um lugar de exemplos, uma espécie de coletânea de jurisprudência ou de modelos táticos para o exercício do poder. A história, para Maquiavel, sempre se limita a registrar relações de força e cálculos ocasionados por essas relações”.
Fonte: Reflexões sobre Maquiavel / Rafael Salatini & Marcos Del Roio (organizadores) – Marília: Oficina Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. Compre e leia o livro, vale a pena. Pretigie o autor.

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