Nome do Escritor: Ediloy Ferraro

O egresso

O sol, no seu costumeiro esplendor, clareava paulatinamente a paisagem, num hálito morno e aconchegante naquele amanhecer de um céu sem nuvens, azul e belo. O olhos insones acompanhavam distraídos os pássaros em sua azáfama matinal, na alacridade de seus trinados, alvoroçados na copa de uma árvore, para além das muralhas vigiadas por sentinelas armados. Da cela, após mais uma noite mal dormida, sonolento, os pensamentos traziam imagens de um tempo transcorrido, marco divisor marcante de sua trajetória. Sua existência encontrava-se delimitada em dois espaços temporais, da infância aos 20 anos, e o malgrado e penoso período de ostracismo involuntário e trancafiado. Sua curta e comum narrativa a voltar-lhe em reminiscências. Embora viesse de origem humilde, gozava do apoio da família de pessoas idôneas, tal como ele o fora, até então. Lembrava-se de seus constantes azedumes e sentimentos de inferioridade expressos no dia a dia, aborrecido com a tarefa de operador de uma máquina registradora em um supermercado. Parecia-lhe ironia ter que codificar tantos itens supérfluos, iguarias jamais experimentadas por ele, enquanto o aguardava uma marmita a ser esquentada com o trivial e pobre cardápio cotidiano. Depois de ter que aguentar filas enormes atendendo pessoas esnobes a ignorá-lo como se fosse parte da registradora, por vezes sem sequer dirigir-lhe qualquer palavra ou atenção, no término do expediente esperava o coletivo cheio rumo à escola pública até as vinte e duas horas da noite, onde o cansaço fazia com que as vozes dos professores naquele curso supletivo ecoassem como sons estranhos e distantes, cochilando vencido pelo sono. Seu alento vinha da namorada, a incentivá-lo cheia de esperanças e de sonhos. Ana, entusiasta e esforçada, estava à frente nos estudos, aplicada, estudava com afinco, pretendia crescer na sua empresa, iniciante como recepcionista. Vendo-a exultante, mentia aparentando interesse pelos estudos, quando na verdade aquilo era-lhe maçante, um sacrifício, não raro faltava pretextando descanso. No serviço não se conformava com os afazeres, sentia-se escravizado ao trabalho por depender economicamente dele. A possibilidade de concluir o intensivo para alunos adultos e retardatários parecia cada vez mais difícil, desinteressado empurrava com a barriga as lições, perdido em suas cogitações amargas e desconsoladas. Perdera o viço próprio da juventude, exaurido, sem objetivos a animá-lo. Inconformava-se com a situação, a própria e a dos seus. Julgava os país e irmãos ingênuos, crendo sempre que a as coisas fossem melhorar, quando tudo parecia-lhe ilusão, algo a se acreditar para dar sentido aos dias, nada mais.
A roda viva de levantar ao nascer do dia, arrumar-se, disputar espaço em condução lotada, correndo para não chegar atrasado, ansiando com a folga domingueira, não era o que desejava para si, queria mais, sem saber como. Vivendo aqueles conflitos íntimos, arrastava-se desanimado. Buscava nos doces olhos da amada momentos raros de paz e de carinho, ela sempre lembrando-lhe que deveria persistir, ser fiel às metas, superar os desafios, estudar para crescer profissionalmente. No mel do encanto daqueles momentos, o aguilhão da revolta pessoal o martirizando, incomodando. Dia de pagamento, feitas as contas, mal sobrava algum para o cinema em fim de semana. Via o sapato furado na sola, com o improviso de uma palmilha de papelão, molhando a meia em dias de chuva, aguardando o décimo terceiro salário para a compra de um novo.
A porta larga das facilidades o encontrou inebriado, sedento de mudar seu destino para o lado aparentemente mais fácil, buscar o que não tinha, à margem da lei. Via escoar a juventude e energia nos dias corriqueiros e sempre iguais, sem perspectivas. Não foi preciso muito para ser seduzido por um conhecido de infância e de brincadeiras, elemento de atitudes suspeitas e mal afamado pelos vizinhos. Bastou o aceno, estava pronto para o convite, conveniente, aliás. Admirava o outro ostentando boas roupas, grana para as baladas com as garotas, argumentos a convencê-lo a participar de pequenos ilícitos, no anonimato, rendendo mais que o parco salário mensal. Roteiro sem volta, cada vez crescendo na ganância, a ousadia derrogando os escrúpulos, vencendo resistências e o medo. Perdera o emprego, pela desídia, chegando atrasado, destratando colegas e superiores, esbanjando ironias e descaso com as tarefas designadas, sempre tidas como humilhantes. Para a namorada apresentava-se com pequenos presentes, trajes novos, alegando a promoção para encarregado do setor. Em uma das muitas façanhas clandestinas foi preso. Condenado a cumprir a pena de mais de seis anos de reclusão, tal a extensão da ficha policial, vinda à tona após a detenção, onde fora acusado de crimes de furtos, roubos e assaltos, reconhecido em acareações pelas vítimas. Dos seus entes familiares sentiu o peso dos olhares recriminatórios, o exílio a apartá-lo do pai, irmãos e da sociedade, restando o sofrer solitário da mãe, a única a visitá-lo no presídio.
Ana mal acreditava no que aconteceu, não era a pessoa que julgava conhecer e amar e com quem pensava em compartilhar o futuro juntos. Restaram-lhe aquelas últimas impressões a acusá-lo em sua consciência. A desilusão dela diante aos fatos, sua expressão de pânico e de descrédito. A distância e o mutismo sepultaram qualquer esperança em se reconciliarem. Em momentos aflitivos, solilóquios torturantes, cobrava dela compreensão, queria ter tido a oportunidade de atenuar suas faltas, justificar-se como a necessidade de melhorar a sua condição para serem felizes. Chegou a enviar cartas, sem respostas. Pensou em matá-la tão logo fosse posto em liberdade, isso na insanidade do paroxismo da revolta consigo mesmo, afinal não era assassino, e a perdoava. Sabia-se errado, fraco, covarde, arrependia-se, parecendo um pássaro estranho naquela gaiola humana, onde tinha que ostentar frieza e valentia para ser respeitado no antro dos companheiros de infortúnios. Se não tivesse sido impetuoso e orgulhoso, não teria fraquejado no caminho justo, se os estudos não o agradavam poderia ter conquistado uma profissão, mesmo modesta, como a maioria das pessoas. Naquele ambiente hostil, nos olhares daqueles enredos a serem desvendados, meninos crescidos e acuados, revoltados, feras demonstrando força como escudo para seus temores, ostentava a máscara de forte e corajoso. A lei reinante, implacável, a nenhum deles permitia lágrimas de fragilidades, choravam para dentro, ocultando suas dores e mágoas. No silêncio se subentendia a inexistência de manifestações da humanidade dos sentimentos, confundidos como fraquezas imperdoáveis. É a divisão da sociedade entre duas realidades, ali se encontravam os reclusos pela miséria moral, abrigados nos paredões dos imensos muros e gélidas celas, onde a sobrevivência dá-se mais por instinto que por opção de viver.
O seu histórico pessoal, como uma fita reprisada inúmeras vezes, justamente olhando a beleza daquela manhã, com a cantoria da passarada, o esperado dia da libertação chegara.
Logo mais estaria além das paredes restritivas do ir e vir, grades descerradas, portas abertas, ferrolhos liberados, uma ave a reaprender a voar, a traçar uma nova trajetória . Provavelmente o esperaria a resignada genitora no portão da saída a recepcioná-lo, a única e incansável a estender-lhe solidariedade incondicional.
Abria-se a nova possibilidade do retorno aos próprios passos, sem vigias e tutelas, vivendo do outro lado da prisão, sentindo um frio a percorrer-lhe a espinha, a depender somente dele reescrever a própria história...

* texto selecionado e publicado em livro pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores, CBJE - Rio de Janeiro-RJ, em agosto de 2013.

Local de Nascimento: Echaporã SP

O dilema

Quando tocava o telefone, seja o fixo ou celular, sentia um incômodo, as mãos ficavam frias, temia pelos cobradores sempre mais insistentes. Estava na situação de haver muito mês para pouco salário. A organização financeira pessoal estava um caos, com extenso rol de responsabilidades pendentes, tirando-lhe o sossego. Como bancário temia ser incluído na lista do SPC, ameaçando o emprego. As contas eram empurradas com a barriga, negociando prazos, apertando aqui e ali. Não fora a tentação de recorrer a outros meios para se desafogar, poderia continuar no esquema de ir protelando, porém, precipitado, foi socorrido por um agiota, com juros escorchantes, para quem não tinha muita conversa fiada. Foi um abraço de afogado, vendera a alma, não conseguia equacionar aquela dívida interminável. Na terceira renegociação não havia mais argumentos, a coisa estava ficando feia, insustentável. Temia acordar no meio da noite e não mais conciliar o sono, num processo de auto-obsessão que o martirizava. Definhava a olhos vistos, aparentando alheamento e depressão.
Não raro ajudava na tesouraria, contando montanhas de notas, parecia um paradoxo tanta soma à mão, e ele sem vintém. Ironizava consigo mesmo, lembrando a saudosa mãe que dizia ter lido a sorte com uma cigana e a mesma ter afirmado que muito dinheiro passaria pelas mãos de seu único filho, de certa forma não errou. O problema era que apenas “passava”, parecendo um faminto trabalhando no preparo de alimentos, sem poder saciar-se.
Há dias evitava encontrar-se com o credor ávido e mal educado, parecendo ameaçá-lo. Fugia deste como o diabo da cruz, tentando ganhar tempo, buscar uma saída, uma solução, sem saber qual seria, ou a quem recorrer. Ele poderia colocar em cobrança alguns dos cheques, que voltariam por falta absoluta de fundos, e ficaria desempregado, mas, pensava, não poderia interessar a ele a sua falência, condição em que também perderia.
Barbeava-se pela manhã, preparando-se para mais um dia de trabalho, quando tocaram a campainha do apartamento. À porta estava o dito cujo, com olhar de trunfo por encontrá-lo, saboreando o encontro, entrando na sala sem esperar pelo convite. Passeou os olhos pelo ambiente, modesto mas bem arranjado, como quem avaliava as posses do devedor, contabilizando o seqüestro de algum bem. A forma como foi descoberto o seu endereço o deixava ainda mais confuso, por certo tinha informações sobre ele, nunca forneceria seu paradeiro a estranhos. E, sem precisar dizer palavra, o intruso esperou pela iniciativa do assustado, esbanjando-se à vontade no sofá, como se fosse íntimo da casa.
Na troca de olhares, que dispensava comentários, lia-se o desespero do pobre, com espuma de barbear ainda no rosto, mortificado pela surpresa desagradável. Ficou atônito e mudo, olhando patético e petrificado para o visitante. Instantes que pareceram séculos, o medo e a impotência estampados, como uma caça encurralada pelo predador.
Tomando a iniciativa, resoluto e implacável, contabilizava os juros sobre juros, fazendo uma matemática rápida e temerária, mostrando em números o buraco em que se metera o incauto. Exigiu um cheque em branco, confiscaria o décimo terceiro, a receber dali a dois meses, além de uma promissória exigindo o aval de algum parente ou amigo, a ser entregue incontinenti, no prazo de dois dias. Não perguntou se concordava, se as contas estavam certas, apenas fez seus cálculos e exigências. Sabia que o tinha à mão, feito uma marionete, aterrorizado.
Quando viu-se só, parecia que o mundo tinha desabado, sentiu cólica intestinal e por pouco não se sujava todo, necessitando de novo banho. Estava aflito, sem rumo. Teria um dia inteiro pela frente, no atendimento de filas intermináveis, fazendo pagamentos a idosos e a clientes nem sempre pacientes, onde obrigava-se a ser simpático e atencioso, disfarçando o conflito íntimo que o consumia. Nem tirou o café da cafeteira, desabando inconsolável sobre a poltrona, esmiuçando alternativas, tentando concatenar alguma Ideia que o socorresse, ou pelo menos lhe desse algum fôlego. Se o décimo terceiro já não lhe pertencia, poderia antecipar as férias. Não seria a primeira vez que abriria mão de alguma viagem, consolaria-se com a leitura de algum livro ou a passeios na própria cidade, sem maiores custos.
Naquele dia fora designado para trabalhar num posto de serviço dentro de uma empresa, era dia de pagamento dos funcionários. Enquanto se preparava para o atendimento, contando o dinheiro que recebia no caixa, a fila externa se avolumava. Todos os colegas se agitavam nos preparativos para o labor intenso que se iniciaria a seguir.
No decorrer do expediente, o local atulhado de clientes orientados em fila única, o vozerio da pequena multidão que mostrava inquietação, alguns portando contas a serem descontadas dos pagamentos a serem recebidos. Tudo dentro da normalidade do quinto dia útil, até que uma voz forte, dissonante, se fez ouvir, autoritária e imponente, ecoando no ambiente e pondo todos em silêncio. Eram três homens, de fala rápida, nervosos, intimidando os presentes e os funcionários com seus revólveres ameaçadores, dando ordens de um assalto.
Em gestos velozes dirigiam-se aos caixas ordenando que passassem os maços de notas para fora do balcão, as coisas acontecendo em segundos de ansiedade e de temores, o receio de serem alvos daquelas armas apontadas.
Na entrega das notas encintadas em maços de cem reais, dois volumes caíram e, no afogadilho dos meliantes, ficaram despercebidos por todos, ficando no chão, no lado interno dos caixas, praticamente dentro do seu guichê de serviço.
Encostado na parede, evitando qualquer movimento suspeito, mantinha-se imóvel, observando aqueles dois maços esquecidos, bastaria empurrá-los com os pés, disfarçando no cesto de lixo, ninguém perceberia, ficaria à conta dos assaltantes, o Banco se ressarceria da Seguradora, e ele estaria a salvo de suas encrencas financeiras.
Momentos em que transpirava pelo corpo todo, afogueado diante à possibilidade do ilícito, martirizado pelas circunstâncias de angústias acerbas que o vitimava. Todos os seus valores pareciam falir diante àquela circunstância tão propícia e oportuna, bastavam poucos gestos, ninguém daria conta, todos estavam apalermados com o inusitado. Desenrodilhava-se diante a si todas as suas inquietações, o receio de ser pilhado e preso, em contraste com a possibilidade de sair ileso e com os problemas resolvidos. Decisão que reclamava uma atitude urgente, não restando espaços para vacilações, seria o tudo ou o nada. Entre o gesto extremo e a apatia, contudo, residia toda as suas convicções e valores, postos em xeque pela conjuntura asfixiante. A lembrança de suas dívidas, a ameaça tácita do credor irredutível e truculento o impulsionavam ao delito, a sua formação o impedia de agir, num dilema atroz.
Pressionado, sentiu a cabeça, em rodopios, as faces avermelhadas, a transpiração ofegante dando conta de seu suplício, até o desmaio despropositado, gerado, possivelmente, pelo estresse extremado.
Acordou, horas depois, no ambulatório médico da empresa, medicado com tranqüilizantes, sendo assessorado pelo representante sindical da categoria profissional, que procurava acalmá-lo. Negociado com o Banco uma licença de 15 dias, bem como, a título de indenização pelos transtornos, o valor de um salário integral, sem descontos.
Ao quitar seus compromissos, sentado na praça de um jardim, revivendo suas lembranças, só querendo refletir e afastar de si a tentação que teve em participar daquilo. Considerando com seus botões de que sim, dependendo as condições e situações, podem propiciar o ladrão, mesmo a alguém de quem jamais poderia esperar, tido acima de qualquer suspeita. Ou ainda que não sabemos exatamente quem somos, ou como agirmos diante a tentações e pressões. Ele mesmo duvidava de si, e de qual atitude teria tomado, caso não apagasse naquela circunstância. Seria vencido por suas fraquezas e seu desespero, ou resistiria com suas convicções e caráter? Restava a dúvida a amargar sua consciência.

Publicado em livro na antologia de contos, Editora CBJE, Rio de Janeiro RJ, Janeiro de 2014.

Formação Acadêmica: Bacharel em Direito

As voltas que a vida dá...

O toque do telefone em horário imprevisto, altas horas, tinha tudo para ser coisa séria e urgente, demandando preocupações. Sonolento, tateando em busca do óculos, parecendo ainda dormir, por fim atendeu. Mil hipóteses ocorrem nestas interrupções em horas descabidas, todas prenunciando tragédias e assustando quem as recebe, com ele não foi diferente.
-Quem está falando...O que é ? Aconteceu alguma coisa, que horas são ?
Mal ouviu a voz sôfrega do outro lado, impertinente e mal humorado(odiava ter o sono interrompido), desligou em seguida, dando pouca ou nenhuma atenção ao interlocutor eufórico. Lembra-se de ter despachado o inconveniente com frases balbuciadas, por pouco não perdendo a paciência, batendo o telefone. Se fosse do seu feitio o mandaria para aquele lugar, não sabe nem porque se conteve, razões tinha, e de sobra.
Virou-se de lado, buscando retornar ao sono, que já não vinha, intercalando sonolência inconsciente com o despertar, teria sonhado?
Alencar era um colega de serviço, alguém que não fazia diferença alguma, mas, por serem trabalhadores da mesma empresa, utilizando-se o uniforme padrão, ainda que em departamentos diferentes, acabaram por estabelecer um contato eventual, nada de muito sério, a princípio. Numa conversa ocasional em um bar, arrependendo-se de ter dado trelas aos murmúrios do infeliz, selaram compulsoriamente a amizade, deixando de serem apenas conhecidos, ao falar de si mesmo estreitava os laços, a confidência é própria de amigos. Começava a sua tortura, de natureza reservada não era dado a se expor com ninguém, também não entendeu porque aquele homem se sentiu tão à vontade para relatar todo o seu drama pessoal. Era um mala, a bem da verdade, apenas uma tolerância fraterna para lhe dar alguma atenção. Vivia deprimido, a mulher o abandonara levando o casal de filhos, em poucas linhas de um bilhete dava passe livre ao marido, acusando-o de intolerável, entre outros adjetivos pouco recomendáveis. Era a sinopse de mais um casamento esgarçado na poeira da convivência num histórico intramuros da intimidade de um casal. Ele dizia não saber o porquê daquilo, deduzia que era pelo pouco rendimento dele, único provedor da casa, e a questão financeira, sempre ela, a atormentá-los. A esposa esconjurada o lembrava diuturnamente que os recursos eram escassos, havia sempre necessidades extras, aquilo o aniquilava, sentindo-se impotente para reverter os fatos e ter um ganho satisfatório. As conversas entre os dois dava-se no compartilhamento de algumas cervejas, conta dividida, ambos solitários, isso quando não houvesse algo melhor a fazer, momentos em que mudava de rumo e de bar, esquivando-se sempre que possível do acompanhante de conversa de uma nota só. Problemas? Já tinha os dele e não enchia os ouvidos de ninguém. Arrependera-se de ter dado o número do telefone, aliás, nem se lembrava disso, como será que ele soube? Alguém invadiu a sua privacidade e o entregou, imagine, não bastasse aturá-lo vez ou outra, e agora receber uma ligação imprópria àquelas horas ! Deve ter tido uma crise, será que cometeria alguma sandice? Debalde o estado emocional parecia ter equilíbrio, exceto quando o usava como confessor para desafogar as mágoas, ai era um Deus nos acuda nas lamentações intermináveis. Não se sentiria culpado, era maior de idade e responsável por suas atitudes. Apesar de estar sempre triste, parecia empolgado na ligação, rindo e cantando, entusiasmado. Talvez efeitos de alguma medicação antidepressiva para liberá-lo do marasmo e da tristeza. Bastou perceber a voz inconfundível, nem bem o ouviu, e desligou. Felizmente não houve insistência, não tornou a ligar, como comumente fazia ao persegui-lo pelas ruas nos seus passos, buscando sua companhia. Passou o resto da noite semi acordado, praguejando pela insônia inusitada. Assim que o encontrasse tiraria satisfações, o chamaria à razão, findaria por vez aquele relacionamento, não era confessionário para ouvir lamúrias inesgotáveis, recomendaria a ajuda de um profissional, psicólogo ou um psiquiatra, o convênio médico da empresa oferecia esses serviços. Vê-lo e evitá-lo já estava se tornando uma rotina chata, sentia-se constrangido, afinal, apesar de tudo, penalizava-se pela situação dele, a reclamar saudades da esposa e dos filhos. As noites dele deveriam ser tediosas , ao retornar ao lar e ver-se só. Como nunca se casara não poderia sentir falta de ninguém a esperá-lo, mas, quanto a ele... Merda, o infeliz, mesmo a distância, continuava ocupando sua mente, pior, fazendo-o sentir-se responsável, tirando-lhe o melhor do sono, no amanhecer estaria um trapo, sem concentração para o trabalho. Nas conversas, verdadeiros monólogos exaustivos onde fingia estar atento, ouvia sempre o reprise do filme de sua vida, as lágrimas saudosas dos seus parentes, o lastimar do pouco dinheiro, segundo ele o fator provável da separação da mulher, rememorando passagens felizes, sorvendo em soluços disfarçados, aos goles pausados, a bebida que compartilhavam. A condição financeira era fundamental, repetia ele, restando ao parceiro apenas o concordar com a cabeça. Se tivesse recursos seria feliz, com certeza, não havia maiores problemas domésticos, julgava amar e ser amado pelos seus. Momentos em que olhava para ele e afirmava convicto, eu te ajudaria também se conseguisse ganhar alguma fortuna, reconhecendo nele o seu único amigo, agradecendo-lhe em olhares e gestos de apertos de mãos a solidariedade. Fazer o quê? Apenas emprestar por momentos a sua presença, mesmo distante, pensando em outras coisas, para vê-lo menos infeliz. Sabia que tomando alguns goles ele ficaria relaxado e dormiria melhor, não se angustiaria tanto nas saudades cruciantes. Raros instantes a sentir-se menos egoísta e mais solidário com alguém, embora reclamasse com seus botões pelo sacrifício indesejável. O tempo tudo cura, filosofava consigo mesmo, haveria também de ajudá-lo, bastando ter paciência para purgar aquela dor, chaga ainda viva, exposta. Neste intervalo, parecia já abnegado, estaria presente ( sempre que não desse para escapar) para ouvir o martírio do outro.
Apenas uma ducha rápida e um café preto para reanimá-lo para um novo dia, afastando o cansaço da noite interrompida. Tinha que enfrentar a situação, falaria com ele de forma definitiva, não poderia tolerar mais incômodos como o vivido naquela madrugada, seu rendimento profissional estaria prejudicado pela falta de concentração que a ausência do descanso ocasiona. Jamais permitiria que alguém ligasse no meio da noite, sinal de más notícias, levando a paz de quem atende. Tentaria não ser duro em demasia, apesar do nervosismo, relevando as dores já suportadas pelo companheiro. Contudo, seria claro e objetivo, não toleraria atrevimentos tais, não bastasse a perseguição diária para acompanhá-lo nas saídas do trabalho, sendo cada vez mais difíceis as escapulidas incólumes da presença indesejada, agora via telefone, superava tudo, excedera os limites do abuso e da sua tolerância.
Curiosamente, objetivando oportunidade para vê-lo e expor seus argumentos, procurou não evitá-lo, freqüentando no fim do expediente o mesmo bar, não o encontrou, nem foi encontrado por ele, que era o mais comum. Chegou a pensar que poderia ter acontecido alguma coisa, aquele telefonema naquele horário, a voz dele alterada e efusiva, será que teria cometido alguma loucura? Esperaria por notícias, coisa ruim é instantânea, todos comentam. Poderia ser que estivesse melindrado, envergonhado pela ousadia de incomodá-lo daquela maneira, deixando de procurá-lo. Ficou por ali algum tempo, bebericando devagar a sua cerveja, dando espaços para algum comentário, e nada. Tudo corria sem novidades, para alívio seu. Caso tivesse acontecido alguma coisa com o amigo não se perdoaria, fora ríspido com ele, talvez bastasse uma palavra amiga para se evitar uma tragédia, arrepiava-se preocupado. Não era religioso, o que não o impedia de ter remorsos. Lavara as mãos como Pilatos com Cristo, aquilo o aterrorizava, lembrando-se das lições de catecismo. Negar-se a dar um apoio, conforto de algum gesto de fraternidade era um ato que castigava seus princípios, temia pelo sucedido, aflito de apreensões por sua atitude desumana e egoísta. Doía a cabeça, resultado de uma cefaléia do descanso interrompido, além da consciência pesada. Deixara a garrafa sem terminar de beber, coisa rara.
Desatento, seguiu o seu caminho normal, sem desvios como fazia para despistá-lo, passando em frente à casa lotérica do bairro onde uma faixa anunciava o prêmio milionário conquistado por um freguês da casa, pensando com seus botões na sorte do contemplado, ganhador único da mega sena, uma verdadeira fortuna para não ter mais com que se preocupar.
Dias depois, já convencido de que o amigo se tocara da mancada de persegui-lo, pois nunca mais se viram, recebeu, via departamento de recursos humanos da empresa, um cartão postal do Alencar.
Na foto, tirada de um desses lugares paradisíacos , que bem poderia ser no Caribe, uma pose de uma família feliz e sorridente, Ele junto com a esposa e os dois filhos...
“- Caro amigo, tentei te avisar, consegui a duras penas o seu número de telefone, mas reconheço que abusei de sua amizade o incomodando tanto...Como dizia, não tenho problemas familiares, apenas a falta de dinheiro, que, graças a Deus, já não me preocupa. Saudações do Alencar.”

* Conto publicado em livro na Antologia Contos de Verão, editora CBJE, Rio de Janeiro, RJ, com lançamento em abril de 2014.

Curto a escrita desde a adolescência, participo de diversos sites literários (Recanto das Letras, Site de Poesias, Verso & Prosa, Blog do Lima Coelho, Mural dos Escritores); tenho dois textos para teatro com registro no EDA.

Inconfidências de Walkíria

Da janela de madeira, no encosto protegendo os braços por um pequeno travesseiro, ali passava todo o tempo de que dispunha, única mulher em casa, cuidava de manter a limpeza e demais afazeres, sobrando-lhe horas para devaneios e distrações. Vivia imersa em suas recordações, alternando épocas, viajando nas lembranças, interligando o passado e o presente.
No desenrodilhar de suas divagações saudosas, via-se jovem e enamorada do primeiro homem, questionava-se consigo mesma, ralhando se não fora exigente demais. Acabou por fazê-lo desistir devido ao gênio intransigente e autoritário. Não era de dar mão à palmatória, pessoa convicta e de opinião, não dada a meios termos. Desiludira o pretendente por picuinhas, embora sentisse a falta que ele deixou. Esta era a versão corrente, opiniões do velho pai e dos manos, que ela, por conveniência, adotara para si mesma. Os fatos, porém, eram outros, insuspeitos. Apesar dos hábitos conservadores de sua juventude, partiu dela a vontade de entregar-se ao jovem, no fundo achava um absurdo ter que ser desposada para só depois desfrutarem um do outro. Havia tantas exigências antes do casório, além do que, se percebesse que não se davam bem na intimidade, estariam atados a vida toda por um compromisso oficial, além do religioso, valores considerados por todos. Pensava com seus botões, tantas relações falsas, mantidas por preceitos sociais e hipócritas, isso não queria para ela, nunca.
Ria-se consigo mesma da cara de espanto dele, diante a sua proposta inusitada, ao propor-lhe que fossem às vias de fato, ou seja, que iniciassem a vida sexual mesmo antes dos entretantos exigidos pela sociedade, e dele ter uma condição financeira mínima para se casarem.. Será que ele pensou que ela não fosse uma mulher “direita”?,Imagine desejar sexo, principalmente partindo a iniciativa dela,.aquilo fugia a qualquer propósito de uma moça respeitável e virgem. Geralmente cabia ao homem ser mais ousado e até atrevido com a namorada, avançando sinais. Os namoros costumavam ser vigiados pelos pais ou irmãos mais velhos. Sentia-se enfastiada de namorar em olhares, apenas com o entrelaçar das mãos, a imaginação corria solta, suspirando-se. Levá-lo para a cama, portanto, foi um plano mirabolante.
Daquela mesma janela, que dava para o seu quarto, convenceu-o a transpô-la, a avançadas horas, para dentro da sua alcova, antecipando as esperadas núpcias. Meio sem jeito, pego de surpresa o pobre, vermelho de vergonha parecendo um tomate nas bochechas alvas. Na verdade fora intimado, não restava alternativas. Ou a desejava e provava, ou acabariam com o noivado ali mesmo. Recusar seria por a prova sua virilidade, além de perdê-la, sabia bem o gênio da pretendida. Quis argumentar de que poderiam falar deles, e que devia respeito ao pai dela, viúvo, e aos seus três irmãos, mas não houve jeito.
Acertado os detalhes, ela deixou a ampla janela de madeira entreaberta, sem o trinco, e o esperou nua sob a camisola de algodão. Por precaução deixou um azeite sobre o criado mudo, para lubrificarem-se, se houvesse necessidade. Cobriu com um pano grande a cama, não queria deixar vestígios, caso sangrasse. Ela mesmo encarregava-se de lavar as roupas, portanto sem riscos de descobrirem.
Todos os familiares se recolhiam cedo, depois de desligarem o velho rádio de pilhas na sala, onde, após a ave Maria, ouviam as notícias..O pai e irmãos tinham uma sanfona, onde se dedicavam em incansáveis notas, passando de mão em mão entre eles. Em pouco apenas o ressonar de pessoas dormindo, por vezes um ronco mais forte, mas todos entregues aos leitos, depois da labuta na lavoura pelo dia todo.
Ao ver-se dentro do quarto, ainda assustado por transpor a janela de forma clandestina, como um ladrão na madrugada, ela lembrava-se risonha e divertida da expressão de espanto dele. Possivelmente também sua primeira experiência com uma mulher, pelo susto e despreparo que apresentava naquela situação.
Teve que ser dela novamente a iniciativa, diante ao inerte companheiro, sem saber como agir. O temor de ser descoberto tirava-lhe a excitação, sem saber o que dizer, estava mudo e apatetado. As conversas, poucas, deveriam ser sussurradas aos ouvidos para não atrair a atenção dos demais da casa, entregues ao sono pesado.
O que faltava a ele sobrava a ela, afoita e desejosa de ser possuída. Vendo-o atônito, despiu a camisola e o beijou no pescoço, ajudando-o a desvencilhar das vestes. Aquele homem troncudo e ingênuo, parecendo antes um menino assustado, tinha o corpo malhado pelo sol do campo das colheitas. O viço dos ombros largos, que o recostar de seus seios nas costas os intumesceram de desejo, erguendo-lhe os mamilos. Arfava só com o encontro de sua pele macia na dele, áspera e máscula. Seu dorso nu a instigava a quebrar o gelo que o constrangimento do incipiente jovem demonstrava. Por fim, seduzido e entregue, rompia os limites da timidez e a embalava nos braços, sequioso de seu corpo alvo e bem delineado. Vulcões em erupções, amaram-se freneticamente, quedando-se extenuados. De quantas milionésimas vezes aquele filme voltava a ser exibido em suas lembranças, a reavivando nas saudades, deixando-a excitada? Suspirava querendo reter no presente o passado distante.
Contudo, a sua ousadia era demais para ele, assustado com a sua voluntaridade, mesmo tendo sido o primeiro, os vestígios rubros no pano não deixavam dúvidas, não suportou a avidez da companheira, sempre o desejando mais e mais. Em nada lembrava a terna namorada, discreta, que conhecia. Aparecia diante a ele como uma devassa, ainda bem que ela se manifestou antes do matrimônio, jamais teria paz com aquele demônio de saias como esposa, com aquela sanha indomável com certeza o trairia. Escafedeu-se da cidadela, após mais alguns encontros arrebatadores e furtivos, emagrecera a olhos vistos. Seu sumiço deu-se a conta de que estivesse enfermo e fora buscar recursos médicos em outra cidade. O pai e os irmãos, por respeito à abandonada, evitavam o assunto, preocupados com a má sorte da desafortunada familiar.
Ela ,na cara de santa, sabendo bem o porquê da ausência, fazia-se de muda, triste, viúva de homem vivo desaparecido. Razão de silenciosa e solidária consternação dos familiares. Quando as saudades batiam mais forte, vinham as lembranças daquelas noites clandestinas e sensuais, sua iniciação sexual tão desejada. Ele poderia ter sumido, mas duvidava que não se lembrasse dela e de seus encontros, estreantes ambos nos inconfessáveis prazeres.
O segundo a cair na teia da aranha, ou no quarto da desconsolada solitária, foi um vendedor ambulante, vindo de outras plagas. Achegou-se cavalheiro para apresentar suas bugigangas, foi fisgado. Estavam a sós em casa, os demais demandavam cedo para a roça, ela ficava para cuidar dos afazeres domésticos e da comida.
O homem de fala rápida, matreiro expositor de seus produtos, a quem foi servido um cafezinho. Observando a vizinhança, atenta, foi fechada a janela e o trinco na porta. Ela bem sabia seduzir, deixando a mostra as pernas, de forma proposital. Ele, respeitoso, fingiu não perceber, continuando com sua prosa comercial, repetitiva e chata. Não havia tempo a perder, quando deu por si ela estava lhe roçando os seios desnudos, expondo seu sorriso provocante e convidativo, não dando azos a nenhuma dúvida de suas libidinosas intenções.
Homem experiente, entendeu rápido o jogo da sedução, a pegando pelos cabelos e mordendo de leve seu pescoço... De leve, recomendou ela, sem deixar marcas...
Nus como vieram ao mundo, saciaram-se um do outro. Extasiados naquela tarde solarenta e prazerosa. Dele não aceitou nada, nem uma lembrancinha. O que o intrigou, afinal, pensava, elas sempre cobravam alguma coisa, um enfeite para o cabelo ou outro mimo de pequena monta, dos quais seu mostruário era repleto. Ele que não imaginasse que ela fosse uma rameira, vendendo-se por quinquilharias, não disse mas deixou claro, demonstrando desinteresse por sua mercadoria. Dele desejou o calor e ardor de seu sexo, nada além disso.
Ficaram de se ver outras vezes, sempre no máximo sigilo. Nem se preocupou com aliança no dedo do conversador, não era ciumenta, só o quis por momentos. Nunca mais se viram.
Lembrava-se do romance com o dentista, espremidos no consultório, alvoroçados, ela e o doutor, parecendo consulta ginecológica e não dentária. Aquele tratamento rendeu muitas idas, parecia que estava com os dentes em cacarecos, com duas sessões semanais, durante algum tempo. Até que ele se rendeu, revelando que não poderiam continuar, baixando a guarda nos brios de macho e confessando-se exaurido, comprometendo sua vida conjugal já estremecida.
Outros se seguiram, de preferência casados. Assim não abriam o bico com receio de se comprometerem. Quanto a ela, o interesse era por instantes fugazes, não se prendia a ninguém. Gostava de tê-los quando quisesse, embora, assustados com sua volúpia, após poucos encontros se ausentavam. Alguns, respeitosos e temerosos, ao vê-la na janela, cumprimentavam-na retirando o chapéu, cortesia dispensada a respeitáveis senhoras e senhoritas. Respondia as vênias com irônico e insinuante sorriso.
Tinha a certeza de que os varões a temiam na intimidade, debandavam com receio de não darem conta de sua tara insaciável. Era melhor assim, detinha um trunfo contra boatos maledicentes, sabia os limites de cada um com quem se deitava, tinham-os à mão, por temerem esse segredo. A convicção do receio deles com aquela arma implacável, assim, tacitamente entendidos, a veneravam como uma respeitável dama..
Para os demais que passavam, obsequiosos, podia ler em suas fisionomias os seus pensamentos, imaginando-a uma pobre infeliz que ficara para titia, solteirona. Havia ainda as casadas, a passarem orgulhosas exibindo seus pares ( muitos deles bastante conhecidos na intimidade das quatros paredes de seu quarto) a ostentarem o matrimônio como troféus.
Quanto a ela, ria consigo mesma, sentia-se livre para usufruir de todos,sem compromissos com nenhum...

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Ausências & Temores

Ao levantar-se refugou o afago da gata em seus pés, mostrando intolerância, a bichana saiu contrafeita num miado arisco. Ergueu os braços para se espreguiçar, estava moída, tivera uma noite aborrecida, pelo calor intenso e o tédio. Levantara várias vezes, buscando água gelada. Olhava para a folhinha na parede, era quarta-feira, havia 10 dias que o marido se ausentara, nunca ficara tanto tempo fora. Não estava se controlando, afinal, sem notícias, pois naquele ermo esquecido por Deus, nem o celular tinha sinal, virou apetrecho sem utilidade.
Casaram-se e resolveram morar ali. Apesar dos incômodos, seria, na pretensão deles, algo provisório, não precisariam pagar aluguel, visto que a humilde propriedade fora deixada pelos pais do marido.
Para tal, ela ficaria sem atividade profissional, visto que o local não oferecia empregos, além de serviços domésticos. Ele era representante comercial da empresa, vivia em viagens, geralmente se estendendo além do prometido.
Aquilo a estava deixando intranqüila, sempre trabalhara fora, agora via-se obrigada a pequenas tarefas domésticas, entediando-se. A ausência do companheiro a fazia injuriada, chegando a pensar besteiras: Tenho sinceras dúvidas sobre as atividades dele nas cidades visitadas, homem é tudo igual, não podem ver rabo de saias...Não acredito que se abstenha de sexo por tantos dias.
Justamente por aquelas cismas que tantas vezes a visitava, que resolvera assistir uma sessão no terreiro, queria saber das andanças do marido em tão prolongadas ausências. Nunca tinha freqüentado tal ambiente. Motivada por uma prosa à toa com uma vizinha, freqüentadora habitual. Não confessara suas dúvidas com a moradora ao lado, era reservada, pois roupa suja se lavava em casa. Iria como companhia, por pura curiosidade, sem entrar em detalhes.
- Pois tenho certeza que vai gostar, tem “ entidades” fortes, ajudam a arrumar emprego, dão conselhos para os negócios e para a saúde, falava convicta a acompanhante.
Lá estava ela, sentada em um banco de madeira, surpresa com o ambiente, cheio de imagens. Naquela noite a “gira” seria da esquerda, os homens trajavam roupas escuras e vermelhas. As mulheres participantes também com indumentárias rubras e escuras, saias longas e enfeitadas, com colares, pulseiras e adereços nos cabelos, além da pintura acentuada nas faces.
Aberta a sessão, com os convidados em pé, passava o defumador esfumaçando o ar, envolviam-se naquela queima odorífica de ervas, acompanhava silenciosa os movimentos dos presentes, a cantoria era geral. Os atabaques enchiam os ouvidos com a percussão ritmada.
Aos poucos, o grupo de médiuns que se encontrava no centro do terreiro, parecia entrar em transe, movendo-se ora para trás e para a frente, falando em voz estranha, dando risadas e cumprimentando-se entre si. As mulheres rodavam com suas saias armadas, piteiras nos lábios, olhando charmosas para o público masculino da assistência.
O atendimento era por fichas e hora de chegada, tinham que entrar descalças na área determinada, onde seria feita a consulta. Nervosa, ela pensou em desistir, aquilo tudo era muito estranho. Depois tinha dúvidas do que fora buscar ali, nem como iniciar sua conversa com a “entidade”. Só não desistiu por que não queria voltar sozinha, sua casa distava várias quadras e a iluminação nas ruas era precária, a vizinha, já acostumada, não iria perder a entrevista por ela. Aquietou-se, constrangida, decidida a tomar apenas um passe para não passar despercebida.
Quando finalmente fora chamada pelo número da senha, viu-se cumprimentada por uma mulher, figura exótica, com risadas soltas, ostentando uma taça de champanhe, oferecendo a ela, que não sabia como agir.
- Então menina, em que minha força pode te ajudar ?
Ante o mutismo da consultada, num riso escancarado, falou-lhe aos ouvidos: O pernas de calça anda aprontando, minha menina ?
Diante ao assombro dela, sem querer abrir-se com receio de ser ouvida por estranhos, fez sinal de que não tinha certeza...
Pois bem, coloque um marafo pro meu homem, ai deu o nome dele para a cambono ( pessoa que anota as orientações), uma rosa vermelha para mim ( deu o seu nome), e deixa com a gente... Se ele tiver mentindo, você fica sabendo logo. (Gargalhadas.) Senão, terá uma notícia que mudará para melhor a vida de vocês, tirando-lhe suas inquietações, aliviando seu coração.
Saiu dali mais grilada do que quando havia entrado. Não disseram nem que sim e nem que não, mas a pulga estava colocada atrás da orelha. Somando a angústia da solidão e a carência de carinho do companheiro ausente, parecia que tinham falado tudo o que ela já desconfiava. O que a abismava era como aquela mulher sabia de sua dúvida, se ela sequer abriu a boca? Ou será que tinha falado e nem se lembrava diante de tanto nervosismo?
Caminho de volta, a vizinha interessada em saber as impressões dela, perguntando, fazendo com que ela se esquivasse com evasivas. Confidenciar-se com estranhos, nunca. Lugar pequeno, falta do que fazer, a língua corre solta. Não queria ser tida como a traída na boca de ninguém. Assuntos pessoais seriam resolvidos com reservas e dentro das paredes de sua casa, nenhum sinal para a platéia sequiosa por boatos difamatórios.
Apenas dois dias depois ele chegou. Falando muito, animado com suas notícias de vendas, sequer percebendo o desânimo da companheira, desconfiada e infeliz.
A pretexto de buscar suas roupas para lavar, procurou pelas cuecas, tentando aspirar perfumes femininos nas camisas, cheirando-as, e alguma pista de eventual relacionamentos clandestinos do parceiro. Revirava as peças afoita, torcendo para não encontrar nada que depusesse contra ele. Precisava recuperar a sua paz íntima, abalada por tantas suspeitas.
Depois de banhar-se e comer alguma coisa, buscou por ela, enamorado e saudoso. A princípio pensou em negar-se a ele, e expor toda a sua angústia por esperá-lo por tantos dias, porém, carente, achou que não estaria jogando com a melhor tática, dizem que quem não tem em casa busca em outros braços.
Nos momentos íntimos não conseguia perceber traição, pois demonstrava um “apetite” de esfomeado, a deixando feliz e saciada, não sendo possível tanto ânimo caso ele estivesse com uma vida dupla. Assim ele passava alguns dias com ela, até que retornava a pegar a estrada, deixando-a solitária.
Os dias corriam, períodos de esperas e de chegadas, noites inteiras imaginando como ele estaria, e, no inferno das incertezas, com quem pudesse estar, revirava-se incomodada no leito de casal.
Por tantas hesitações, via-se frente a frente com uma cartomante, precisava ter certeza, a dúvida a estava deixando maluca. No reservado da casa daquela mulher, moradora distante, sentia-se mais à vontade para se abrir. No terreiro, as consultas aconteciam sem privacidade, apesar do barulho existente e das conversas serem feitas “ao pé do ouvido”, além da presença de vários conhecidos, razão pela qual nunca mais retornou àquele local.
Diferentemente da consulta anterior, com a entidade, a consulente era simpática, extrovertida e a deixava confiante. Juntos tomaram café com bolachas, antes de iniciar a leitura do baralho normal e do tarô.
As cartas não denunciavam nenhuma traição do companheiro, pelo contrário afigurava-se homem trabalhador e entusiasmado com seu serviço e devotado esposo, porém algo surgia naquela leitura que intrigava aquela senhora. Parecia um bloqueio, um impedimento de enxergar mais claro. Acabou por confidenciar à consultada, que não sabia o que ocorria, mas pela primeira vez tinha a visão obscurecida. Algo não estava claro. Desculpava-se, não pretendendo sequer cobrá-la pelo atendimento que não achava a contento.
- Algo está impedindo que eu veja mais longe, por acaso você ficou pendente de fazer alguma coisa? Vejo com insistência uma figura feminina, desejando algo de você...
Parecia que acordava, ouvindo intimamente uma gargalhada, estremeceu-se, lembrando do que fora pedido pela Pomba Gira, uma garrafa de cachaça para o parceiro dela e uma rosa vermelha para ela.
- Então cumpra, falou a cartomante decidida. Depois retorne, as coisas ficarão mais claras.
As exigências foram cumpridas discretamente, e, aliviada, deixou de procurar dentes em cabeça de cavalo, esquecendo-se de tantas asneiras e desconfianças.
Após alguns dias, uma indisposição, um leve enjôo, uma tontura intermitente. A notícia não poderia ser melhor, estava feliz, percebendo-se grávida, a menstruação atrasada reforçava a sua intuição materna.
Alvoroçada com o imprevisto tão desejado, percebeu-se liberta de sua Ideia fixa, tomada por outros afazeres teria algo mais sério com que se ocupar...
* Publicado em livro na antologia de contos: Causos, contos e lorotas que só brasileiro sabe contar, editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ, Março de 2013.

Data de Nascimento: 12/06/1957

O lance certeiro

Aneraldo tinha por hábito relacionar tudo de sua vida à sua paixão futebolística, assim, pela tabela do campeonato, ele resvalava da segunda para a terceira divisão em sua atividade profissional... há exatos oito meses sem marcar gol, ou seja, finalizar a partida, concluir um negócio. Não havia torcida a favor de sua posição, mas, cobradores, quantos ! Não fossem alguns bicos de locação estaria fora da disputa há muito.
Apostara suas fichas naquela venda, tudo parecia perfeito, os lances elaborados, faltando finalizar e mandar a bola para dentro da rede, questão de detalhes... Tinha faro apurado, sabia quando a maré estava a seu favor, os dribles do destino acenavam auspiciosos, sem negativismos, mudou a sintonia do rádio do carro do noticiário sempre com assuntos nebulosos, só falando em crises de vários setores da economia...Queria livrar-se da aura escura daquele ambiente catastrofista, a torcida dele para ele, era favorável ao arremate triunfal, à volta por cima, ao lance certeiro...
Tamborilava os dedos no volante do carro, minimizando a ansiedade na música suave, otimista, como o povão na arquibancada vibrando pelo timão, seu Corinthians de devoção. Olhou despercebido pelo mostrador de combustível, na reserva. Como ele, parecendo estar no banco, à espera de ir para o jogo. Dava para chegar ao destino, depois veria o que fazer, teria que ter a paciência de um vencedor, a bola estava em seu pé, pronta para o arremesso que o tiraria da zona de rebaixamento...
Cumprimentou efusivo o porteiro do prédio, parecendo adentrar a arena da partida, envaidecido de sua performance, sentindo-se olhado pela multidão a saudar seu campeão... Chegara antecipado ao apartamento a ser mostrado para a sua futura ocupante, seu troféu ardorosamente esperado pela campanha vitoriosa de seu tino comercial. A partida estava ganha, os filhos concordaram com o preço, e o espaço era também o que desejava a senhora mãe que vinha assinar o contrato,e para conhecer sua futura moradia, venda à vista, comissão grossa em conta, assovios de olés da fictícia torcida...
Adentrou o imóvel, com o sol exuberante daquela tarde inundando os ambientes, arejando os pulmões de atleta pronto a entrar em cena e fazer sua partida triunfal, os ponteiros do relógio davam conta de sua antecipação na chegada, exatos quinze minutos antes, coisas de jogador cioso de seus compromissos, pronto para o aquecimento no campo.
Correu os olhos pelos cômodos, impecavelmente limpos, como a grama rente esperando pelo certame inesquecível... Toda aquela disfarçada ansiedade, no silêncio da atmosfera, o banheiro ostentando um rolo de papel higiênico dupla face, um convite ao desafogar, equilibrando seu ritmo, antes de entrar e ser ovacionado pelo seu público. Aquilo tudo era um convite implícito para uma boa defecada, a intenção já comunicada ao cérebro, no descer das calças, ainda restavam dez minutos...
Assoviava e ria consigo mesmo, levantando-se e apropriando-se do papel deixado pelo antigo inquilino em oportuna ocasião. Porém, há sempre poréns, a descarga da hidra estava travada, imóvel. Pensou em forçá-la mas ateve-se do inconveniente, caso ela estivesse com problemas, seria um incômodo imprevisto na porta do lance derradeiro... E agora, deixaria seu resíduo a boiar no vaso ? Como justificar aquilo aos pretendentes compradores ? Rápido correu à área de serviço, e nada havia para colher água, nenhuma vasilha por improvisada que fosse. Pânico na reta de chegada, como uma cãibra na musculatura da perna do artilheiro...
O melhor a fazer era recolher aquilo com as próprias mãos, afinal era dele mesmo, o que não poderia era correr o risco de impedimentos na grande área. Feito isso, embalado o volume repugnante, restava dar fim àquilo, e rápido... Pressionado como se estivesse com o juiz de apito na boca aguardando a ação.
Da janela da sala, do 10º andar daria na porta de entrada do edifício,nem pensar; foi então para um dos quartos, cairia nas árvores do estacionamento, com sorte ficaria retido nas folhagens...
A jogada deu zebra na finalização...Coisas do destino, bola do pênalti chutada fora na decisão.
O seu volume feito um pequeno pacote, como um chute arremetido, não teve a rede desejada, e desabou sobre o vidro dianteiro do veículo de seus esperados clientes, que estacionavam o carro; e, indignados, com a fezes esparramada e mal cheirosa, saíram esconjurados, abandonando rápido o local, desistindo do negócio...
No caminho de volta, bandeira de seu time em baixa, sentiu o carro falhar. O combustível acabou próximo a um córrego, terremo ermo, duas traves improvisadas, de madeira, um campinho amador na várzea, era como se sentia como jogador....Então concluiu que fora, efetivamente, rebaixado na classificação...

EMAIL: ediloyferraro@outlook.com

Idas & Vindas

Personagem única naquele momento. Radiante no vestido longo de grinaldas, belíssima. Adentrar a igreja, ao som da marcha nupcial, era o sonho que se realizava. Altiva e sorridente, nos olhares dos convidados os cumprimentos silenciosos, admirados com o deslumbre da noiva, maquiagem leve realçando a sua beleza natural. Singelo arranjo floral adornado em suas mãos de luvas alvas. Todo aquele aparato em cenário onírico, onde o noivo, trêmulo de emoção, a aguardava. Inebriada pelo evento, sorria felicidades.
Nos recônditos de si mesma, a mente buscava outro cenário, confundindo-a. A pessoa que a aguardava não era a mesma, dividia-se buscando naquele homem, um outro, que sempre a fazia esperar. Na sua luta íntima para se desapegar do forasteiro do seu coração, aceitara retornar com o ex namorado, a quem havia combinado um tempo para resolver alguns assuntos. Sentia-se mal por aparentar usá-lo, esperava ter com ele uma convivência que redundasse no mesmo desejo que ardia por aquele outro alguém, a quem tentava esquecer. Buscava nele as emoções experimentadas com o estranho parceiro, mesmo considerando as diferenças entre as pessoas. Não negava nutrir sentimentos pelo noivo, apenas a figura realçada do outro parecia anuviar sua ótica e seu sentir. Aquele que a desposava era ternura e carinho, dedicado a querer fazer todas as suas vontades. O outro era aventura, tesão, pele, poesia bruta. Por se achar tão segura de si, no íntimo admirava aquele que a fazia desnorteada, a desdizia , a punha à prova. Era uma brincadeira perigosa, e o risco tinha sido um desafio tentador, a fazê-la vencida em suas certezas. Ocorre que aquilo a machucava, feria seus conceitos e convicções, estava se sobrepondo, sendo maior que ela própria. Estava aflita. Não mais se dominava, pelo contrário, o queria noites a fim, sem saber sequer de seu paradeiro, nômade, fortuito. Jamais se prometeram nada, além de se curtirem quando se encontrassem, apenas isso. Vê-lo, estar com ele, era um bálsamo a compensar as ausências, amargas e constantes. A relação com o agora marido era mansa, duradoura, equilibrada, dissonante, inteiramente, do barco à deriva das sensações vividas com o estrangeiro a habitar sua alma, povoando-a de conflitos.
Em uma tarde, passeando na praia, o conhecera. Fatos banais, conversas, curiosidades, até a intimidade que a seduziu. Achava graça naquilo, senhora de si, apostava que o deixaria quando ela bem quisesse , como sempre fez. Enganara-se.
Ensaiava sempre que o recusaria, mas capitulava ao vê-lo, incapaz de se revoltar com seu homem, sentia-se totalmente dominada. Sabia que seria por poucos momentos, por que então desperdiçá-los em discussões? Assim, razão vencida pelo desejo, entregava-se totalmente àquela relação fugaz, sem saber quando se veriam novamente. Por que ela permitiu que ele cruzasse seu caminho e a fizesse refém de sua vida, imprevista, cheias de idas e de vindas? Talvez a necessidade de buscar mais emoção, tentar curtir outras sensações, razão pela qual pedira ao atônito namorado, atual marido, uma pausa no namoro, para repensar a vida, não exatamente nestes termos, para poupá-lo. À época pedira uma distância temporária, queria focar-se nos seus estudos e trabalho. Ele, o agora marido, estava sempre à mão, o estímulo da descoberta já não existia.
Apostara no inusitado e não se reconhecia mais dona de si, de sua vontade, apenas vivia na espera, sem data de retorno. Substituía respostas pelo cativante sorriso rasgado, de quem tem fome da fêmea que veio buscar para saciá-lo intensamente. A arrojava sobre a cama, a desnudando frenético, aquilo a deixava excitada e servil, suas mãos parecendo garras, veias saltadas na pele de ébano, suada, tostada pelo sol. Curtiam-se vorazmente, até a exaustão.
Era a antítese de qualquer lógica, a tirava do seu eixo, a deixando possuída, antes a fêmea que a mulher racional que julgava ser, marionete entregue àquele gozo indescritível. Ele era o bem e o mal, um destino incerto, que ela sabia, teria que encontrar forças para deixá-lo, e sempre protelando, com receio de que se fosse definitivamente... Todos sempre acreditam-se capazes de se esquivarem do que lhes traz prazer, aparentemente, mas se entregam aos gozos sem darem conta de si mesmos, apenas pelos frenesis de instantes. Reconhecia-se como leviana, a contra gosto. Apesar de entregue àquela paixão doentia, pretendia ser fiel aos compromissos que a levaram ao matrimônio. Que ela estivesse confusa, dividida, tudo bem, o que não consentia consigo mesma era a traição ao esposo, jamais. Tampouco a fidelidade seria por respeito à instituição Família, e sim ao carinho e atenção que se fazia merecedor o noivo, tão devotado a ela.
Resolvera distanciar-se de qualquer possibilidade de aproximação, a distância teria que ajudá-la a vencer suas fraquezas, consolidando resistências para esquecer definitivamente aquela aventura sem futuro. Com o casamento mudaria de endereço, não se permitindo hesitações. De certa forma aquilo a confortava, a fortalecia diante a si mesma, a retomar o leme de sua vida, como sempre fizera.
Tudo aquilo, como em filme se desenrolando em sua mente, nos passos dados da entrada da capela até o altar, onde outro homem, seu futuro esposo, a esperava. Belo rapaz, olhos claros, semblante de paz, vertendo no olhar imenso amor pela noiva, e agora esposa.
Aos poucos, readquiria o autodomínio, tomava a frente de si mesma, experimentava a paz do convívio com o cônjuge, sempre gentil e afável, enamorado dela. Na balança dos seus questionamentos, pesava os dois amores, tão diferentes ! Como uma criança experimentando um brinquedo radical, saindo de seu universo seguro, sentiu-se ao sabor dos ventos, o que a assustou embora a tenha embriagado, agora olhava ternamente o esposo e via que o amava, prezando seu carinho e afeto.
A prova final deu-se por acaso. Ela e o seu amor errante, em encontro casual. Ele abrindo-se no sorriso que tanto a encantou, já não surtia o mesmo efeito da magia da conquista e das novas experiências, havia desfalecido, foi apenas como rever um velho amigo...

* Selecionado para publicação em livro de antologias de contos, editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ, 2013.

Local onde vive: São Paulo SP

O sol em Zênite

O homem adentrou o recinto, ampla sala de recepção, aturdido, em passos vacilantes, indecisos. Conseguira uma cópia da chave com um funcionário, na noite anterior, que não tinha conhecimento de que não era mais um dos proprietários. Alegara esquecimento e que precisaria retirar alguns documentos naquele dia pela manhã, habilmente o aguardara quando se distanciava da empresa.
O olhar incrédulo para as novas instalações, provavelmente uma aquisição muito cara para quem estava prestes a fechar as portas. As mãos crespas raspavam, amiúde, nervosamente, como um rito, o tecido da calça, aparentando limpar o suor dos dedos, visível pelas manchas aparentes na altura superior da peça, próxima aos bolsos. Trajava um terno de cor sóbria. Tinha os cabelos escorridos com uma teimosa mecha a cair pela testa, nos atos ágeis os gestos denunciavam a impaciência e uma ansiedade latentes.
No salão deserto, de várias saletas e divisões, os passos ganhavam ressonância perturbável ao visitante, o que o colocava em posição de cautela, andando em passos comedidos, não querendo se denunciar.
Os dedos amarelados pela nicotina correram o peito e retiraram do bolso um maço de cigarros, metendo um deles, de forma automática, nos lábios, porém logo estraçalhado pelos pés, após a inútil busca por fogo.
Ninguém, além dele, parecia estar no imóvel. Procuraria, pois tinha uma nefasta certeza de que fora iludido, trapaceado em sua confiança, enganado pelos sócios. Jamais poderia supor aquela situação, a de ser posto para trás pelos dois, irmãos por consideração, amigos de escola e de formação. Estudantes de mesma turma, eram inseparáveis. Juntos se consorciaram para o empreendimento, agora via-se colocado para fora, descartado como uma peça imprestável. Havia uma triangulação platônica naquela relação, ambos cobiçavam e julgavam amar a sócia, colega e amiga de ambos. Eram os três que sempre caminhavam, até então, lado a lado.
Há pouco tempo haviam concordado com a extinção da Empresa. Não estavam obtendo os resultados que esperavam, os recursos financeiros escasseavam, faltavam clientes. Tinham uma incorporadora imobiliária, porém a realidade não era alvissareira, portanto teriam que se desfazer da atividade comercial. A ele coube uma pequena indenização por sua cota. Mas os outros não desistiram de continuar tentando, não cumpriram o combinado. Sentia-se excluído, posto a parte. Como puderam, em curto espaço, aumentar os negócios que pareciam fadados à falência ? A aquisição daquela sede era a prova de que havia algo de sujo naquela proposta de exclusão. Aquilo não parecia certo, por que ele teve que aceitar a sua retirada se eles continuaram com o empreendimento? O fato concreto é que os contratos a serem efetivados, inexplicavelmente, foram cancelados, gerando uma insegurança nas finanças, ultimando a decisão de finalizarem a Empresa. A proposta pressupunha, dividido em partes iguais entre os três, em seguida seria extinta a atividade. Bastou que ele concordasse, após se desligar, não só não ocorreu o fim , como os então negócios cancelados voltaram a ser implementados, promovendo uma súbita mudança de planos, com a prosperidade evidente da Incorporadora. Julgava-se desonestamente excluído pelos demais participantes.
Ideias que o infernizavam, julgava-se duplamente traído, como sócio e amigo. Bastou aceitar a sua retirada que a empresa, aparentemente estagnada, ganhou agilidade, mostrava-se próspera. Sentia que os dois passaram a evitá-lo, coisa inimaginável em outros tempos, o que só aumentava a sua desconfiança e certeza da traição.
Ambos nutriam uma paixão comportada pela sócia, desde as épocas escolares, disputavam a simpatia da amiga. Aquilo chegava como um duplo golpe, perdera a participação societária e a percebia distante de si, aliás, mais próxima do rival e ex sócio, a quem já não considerava mais como o amigo de outrora.
À medida que a hora transcorria, como vitimado por sufocante calor, um lenço branco de motivos azuis ensopava-se limpando-lhe a fronte, sempre em atitudes cuidadas. O bolso do paletó estufava-se com o lenço ali enfiado em desalinho, com parte pendida para fora. A gravata arregaçada, adorno a incomodar o pescoço vermelho e a cair por entre os pelos entrevistos pela abertura de três botões abertos na camisa. A descompostura casava-se com as feições contraídas, os lábios cerrados traiam ligeiros repuxos na face lívida. Os olhos injetados de veias minúsculas e vermelhas, excêntricas às pupilas, na clara visão de noites insones. A barba aparada com desleixo, ferindo-se em alguns pontos da face, visíveis em manchas de sangue seco.
No silêncio imperturbável do ambiente, o sobressalto do visitante intruso com o toque pesado do velho relógio de parede, modelo clássico, anunciando em meio tom as onze primeiras horas daquele sábado de sol. O escritório não tinha expediente, propício a ele para se aventurar a remexer nas gavetas em buscas de documentos e comprovação do logro a que fora submetido. Passado o susto, como que movido pela urgência , os passos tornaram-se mais céleres, atrevidos, vasculhando atentamente os corredores, movido pela força brotada na ânsia da procura, como se fosse a razão única de sua existência.
Seus gestos cuidadosos, precavidos, cederam à insânia de percorrer confusamente os cômodos contíguos à sala de entrada, tornando-se uma patética figura numa arena, qual coelho utilizado para sorteio, onde se apostam em qual casa vai entrar o animal, uma vez solto ao centro.
O barulho de uma chave na maçaneta da porta de entrada fê-lo deter-se, num estalo se recompor, ocultando-se ao lado de uma estante.
Sons de vozes , com folguedos alegres, em atitudes sensuais, a porta se abre e se fecha rapidamente. O casal se beija calorosamente, satisfeitos, parecem brindar a concretização de uma boa venda.
Despreocupados, comentam as novidades, sem suspeitarem de que não estavam a sós. Certos do anonimato, comemoram os êxitos dos empreendimentos realizados, além do descarte do sócio, um a menos na divisão dos resultados. Conceituavam-no como um ingênuo, e o mundo não perdoa os fracos, na conclusão dos convivas entretidos em um brinde. Para compensar, ambos julgavam que a lição seria proveitosa ao ex amigo, teria a serventia de experiência de vida.
Já, então, não restava mais nenhuma dúvida. Nem precisava de documentos comprobatórios da farsa, os próprios se denunciavam sem suspeitarem de sua presença. Restava a ele presenciar os dois entregues aos afagos e brincadeiras. Seus gestos são automáticos, como se executasse um plano já decidido, pensado, arquitetado em mil conjecturas. Bastava concluí-lo. Sorver o fel de tantas mágoas, vivenciar aquilo que torcia, no íntimo, para não ser verídico.
Nas mãos nervosas um cano curto de uma arma, tiros infalíveis, a mão direita apoiada na esquerda. O primeiro a cair foi o sócio , sem tempo para pronunciar palavra.
Atordoada pela surpresa, debalde tentou se defender acusando o outro que agonizava pela Ideia infeliz. Não teve muita chance de suplicar por misericórdia, a bala fora fatal, à queima roupa. O atirador sentiu nas narinas a fragrância do perfume suave dela que tantas vezes o embevecera. O sangue tingia o vestido branco decotado.
A abóboda do recinto resplandeceu de luz, o sol subia em zênite, iluminando todo o interior, no momento em que o relógio, em suas badaladas sonoras, ultimava as doze horas.
O homem, ensopado em suor, entre fatigado e angustiado, apático, detona mais um projétil, contra a própria cabeça.
No chão, três corpos. Excluído no sucesso, permaneceriam unidos na desgraça.

Livros publicados: Publicado, mensalmente, desde outubro de 2009, em antologias de contos pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores; Participante de diversas antologias de contos por editoras independentes ( Izabelle Vasconcelos, Beco dos Escritores, etc)

A dúvida de um segredo

Lá vinha o Valdevino, coxo, arrastando sua perna esquerda, como se puxasse um fardo, atormentado em claudicantes passos. Com o tempo acostumara-se com a deformidade, não congênita, adquirida por uma fatalidade, da qual pagaria para sofrer uma amnésia e esquecê-la para sempre.
Com o andar manco já se habituara, afinal a capacidade humana em se adaptar às situações é surpreendente. Parecia que sempre teve aquela anomalia, não se pejava de seu andar irregular, embora se sentisse cansado. Seu caminhar lento, o fazia carregar a cruz, não visível, mas presente em todos os momentos, remoendo as lembranças, pesadelos pessoais à luz do dia.
Antes fosse uma cicatriz, possível de ser camuflada em qualquer parte do corpo, onde as vestes cobrissem e não despertassem atenções. Talvez até convivesse melhor com aquilo, afinal, pensava, não há quem não tenha suas marcas, ocultas ou aparentes, a cruciarem os seus dias.
Assim que a tragédia ocorreu em seu torrão natal, voltando à vida normal, pediu transferência de local de trabalho, mudou de cidade, e foi embora. Então, apenas os parentes, que vinham de vez em quando, já que ele evitava retornar, conheciam o real do acontecido. Guardavam silêncio para não melindrá-lo com recordações infelizes. Para os demais, fora vítima de um acidente de trânsito, não se recordava dos detalhes, pois apagara, só despertando com os primeiros socorros. Finalizava a prosa enxerida, mudava de estação, alterando as atenções. Inadvertidamente, somos atrevidos com as chagas alheias.
Do que já vivemos, enterramos o que não interessa, mas as marcas, naquele caso, eram muito evidentes, físicas, visíveis. Como a relembrá-lo permanentemente, não lhe dando tréguas. Preferia não rever os que conhecera de infância e adolescência, de tudo sabiam, o enojava imaginar a lembrança involuntária que todos teriam ao vê-lo. Sua atitude passada, torpe e injustificável, o envergonhava. A ele bastava a inclemência de ser o seu próprio juiz.
Era trauma íntimo, onde a outros figuraria como relés curiosidade, levando-se em conta de que os dramas alheios, geralmente causam comentários maledicentes, julgamentos levianos.
Contudo, driblando as adversidades dos olhares atrevidos, ao ficar à sós as cenas retornavam como num filme repetido inúmeras vezes. Evitava assistir na televisão cenas de amor, a remetê-lo em saudades e mágoas de pura descrença, ou pior, que focalizassem brigas e tiros. Experimentava suores a empapá-lo inteiro. O trauma era latente.
Rapaz criado em pequena cidade, cedo começara a namorar a então noiva, e tudo parecia perfeito. Concursado em serviço público, tinha estabilidade no emprego. Era só questão de alguns acertos financeiros para poderem se casar, como pretendiam. Conheciam-se desde crianças, eram feitos um para o outro, no dizer de todos, inclusive no entender dele próprio.
Não percebera nenhuma mudança de comportamento nela, parecia feliz com o casamento próximo, o relacionamento corria normal. A noiva, para concluir um curso, viajava todas as noites para uma cidade próxima, maior e com melhores recursos. Alguns jovens da localidade faziam o mesmo percurso, buscando a conclusão de seus estudos.
Alegando que as aulas as vezes se estendiam até tarde, na outra cidade, ficava em casa de uma colega, retornando cedo, no dia seguinte. Isso ocorria em dois dias da semana, habituara-se com isso.
Amâncio era um dos amigos mais próximos, conheciam-se desde a infância, entre eles não havia segredos. Ele próprio empreendia viagens para fins de estudos noturnos. E dele veio uma suspeita que mudaria o rumo de sua vida...
Com muito jeito, escolhendo as palavras visando amenizar a notícia, contou-lhe que a sua noiva era vista com freqüência com um dos professores, e que seria interessante que ele, vez ou outra, a acompanhasse, pretextando qualquer coisa.
Na verdade, queria que ele mesmo visse, não gostava daquela posição de delator, mas, também, não admitiria a possibilidade de vê-lo no papel de enganado. Poderia ser ou não, melhor que ele averiguasse. Achou por bem que o próprio tirasse suas conclusões, fazendo seu juízo. Achava que agindo assim estava sendo correto com a amizade de tantos anos. Levantada a questão, lavava as suas mãos.
A princípio sentiu-se incomodado com a insinuação no ar, ofendera-se calado pela honra da amada colocada sob suspeitas. Não poderia dar ouvidos à maldade alheia, mesmo que viesse de alguém de confiança como Amâncio. Engoliu a seco, disfarçou para não aparentar melindres. Plantada estava, contudo, a desconfiança.
Não confirmou com o amigo que seguiria seu conselho, aliás, tentou aparentar tranqüilidade, em respeito à noiva e a si mesmo. Mas eclodia em seu íntimo, como um vulcão adormecido, em lavas incandescentes, o veneno inoculado nas próprias veias.
A partir de então, já não era o mesmo, pacato e bem humorado como todos o conheciam. Mantinha-se silencioso, como encolhido em si mesmo. A custo mantinha sua postura frente à noiva, tentando aparentar naturalidade. A olhava atento nos olhos, a conhecia e não lhe percebia dissimulação. Suas noites, todavia, não eram mais de sono solto, confortante. Angustiava-se amiúde com a possibilidade de ser traído.
Resolveu que a seguiria. Iria sozinho, nem mesmo o amigo confidente tomaria conhecimento. Precisava ver com os próprios olhos, porém não queria colocar a lealdade da futura esposa em dúvida para ninguém. Acontecesse o que fosse não era dado a escândalos.
Nos dias em que pernoitava na outra cidade, ele a seguiu. Manteve-se à distância, nos arredores da escola, observando o movimento dos estudantes, entrando e saindo. Ao término das aulas a viu em companhia do tal professor, conversavam normalmente, não demonstrando maiores intimidades, apenas seguiam na mesma direção, a do carro dele, pois ela não dirigia.
Ao vê-la entrar no veículo, como se fizesse com habitualidade, impacientou-se, controlando-se para não se declarar aos dois. Voltaria em outras oportunidades, precisava ter mais elementos para não ser leviano e precipitado. Afinal, não contava que ela aceitasse caronas com ninguém, principalmente com um homem, e àquelas horas.
Seu estado psíquico era de um desvairado, não atinava com seus botões. Ora a entendia, tudo tratava-se de um cordialidade, apenas um obséquio de alguém favorecendo a outra pessoa, para, no mesmo instante, entrar em verdadeira confusão mental, imaginando o pior. A traição, então, se delineava medonha aos seus olhos.
Várias foram as incursões dele, sorrateiramente, a vigiar o par. De pessoa afável e cortês, transfigurou-se açoitado pelas dúvidas, ao ponto de adquirir uma arma de fogo, comprada de um estranho.
Das noites insones que passava a se angustiar com suas apreensões, começou a esboçar uma vindita, exigiria de ambos satisfações, sob a mira do revólver, fazendo ver que ele não era o ingênuo que poderia aparentar.
Amargurado pelas desconfianças, inábil com a arma, postou-se frente à frente com o casal, surgindo inesperado das sombras, em atitude de desespero e ameaçador.
Da noiva, surpresa e assustada, negando qualquer envolvimento, rogando bom senso, ouviu-se um grito e um desmaio.
Apenas um disparo foi ouvido, contra a própria perna. Inexperiente com o artefato mortífero, atrapalhou-se com o grito de espanto da moça, tempo que teve o professor, em defesa, atracado com ele para desarmá-lo, ferindo-se com a própria arma.
Foi socorrido pelo suposto amante, que o deixou em um pronto socorro para as medidas de urgência no sangramento. Alegou que o encontrara no caminho, perdendo sangue.
Não registrou a ocorrência, seria uma confissão, tentativa de homicídio, além de temer falatórios e não ter porte de arma. No íntimo agradecia não ter acertado ninguém, além de si mesmo.
Nunca mais procurou por ela, tampouco soube se realmente eram amantes. As palavras dela clamando inocência não surtiram efeito. As evidências, em sua alucinação, falavam mais alto. Preferia acreditar que agira em desatino pela traição, antes instigado pela mente insana, que por provas conclusivas.
Mudou-se da cidade, envergonhado com sua sina, herdando a indesejável deformidade física.
A crença que fora traído, de si para si, atenuava o ato tresloucado, não o justificava. A hipótese da inocência dela agigantava seu desatino, doía-lhe muito mais, a teria perdido inutilmente. Mas, no íntimo, a dúvida persistia incômoda.
Era visto caminhando lento, com seu segredo, sua dúvida, e a perna arrastada, imerso em seu inferno pessoal...

* Selecionado para figurar no livro antologia CONTOS PREMIADOS, editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ, setembro/2014

AGORA comentários para o autor.

O álbum de fotografias

A maneira de enfrentar as crises, impedindo que ela se enveredasse por labirintos pessoais inescrutáveis, tal qual uma âncora, mantendo-a fixada em uma referência, o velho álbum de fotografias a retinha em suas divagações. Bastava deslizar suas mãos naquele repositório de memórias a levá-la em viagens pretéritas, manifestando em seu semblante suas emoções trazidas em cada imagem detalhando um tempo passado, sua história.
A doença avançara drasticamente, cada vez mais a levando para dentro de si mesma, no isolamento impenetrável a terceiros. Encolhia-se em seu mutismo, sem permitir acessos a outros. O mal de Azheimer manifesto, a princípio pela apatia diagnosticada como depressão, tendo origem na morte do filho de forma inesperada. O choque fora fatal ao seu psiquismo, fragilizada para enfrentar a tragédia, refugiava-se em seu interior.
Brotadas águas do íntimo, mágoas levadas em enxurradas, superadas, esquecidas, ou guardadas na alma. O brilho nas retinas denunciando sensações trazidas ao avistar cada fotografia, demonstrações passageiras, amenas ou intensas, em gestos faciais, incontidas lágrimas escorrendo, molhando, denotando alegrias e tristezas. Único contato com a realidade que, feito ostra, ocultava a pérola racional, mantendo poucas relações com a atualidade dos fatos, quase imperceptíveis.
As páginas do velho álbum tinham a magia de trazê-la, por instantes mágicos, a manifestar-se, por vezes trocando palavras com algum interlocutor, nem sempre presente. Via-se menina, sorridente, feliz, cantarolando cantigas, sorrisos esperançosos a iluminá-la, aparentando sanidade, não fora o tempo vivenciado em outras épocas. Não raro, parecia entreter-se em diálogos com falecidos mostrados naquela seleção de saudosos. Raras oportunidades em que se dirigia a quem estivesse próximo, narrando suas memórias, embevecida, como se voltasse de uma viagem interior secreta e partilhasse seus conflitos.
Aos poucos os parentes perceberam que aquilo a renascia, fazia-lhe bem, melhor que vê-la, apática, quase vegetativa, distante de qualquer participação. Melhor até que participassem de suas alucinações, fazendo-a menos só em seus labirintos difusos, trocando a atualidade com o passado.
As cãs dos cabelos manifestando-se prematuramente, o olhar ora longínquo e distante, por vezes revelando apreensões, necessidades de retornar às fantasias, como refúgio de não enfrentar a realidade. Pouco se deduzia, ao leigo, o que se passava naquela mente dividida entre as duas estações da existência, o passado e o presente.
Como se ela desdobrada, em torvelinhos, registrasse momentos anteriores, transportando-a a outros cenários, amenizando as chagas, limpando o verniz do passado, ressurgindo sentimentos represados. Vivos no pretérito ajudando- a a não soçobrar de vez, acalentando razões para sobreviver e não se distanciar na perda total da razão.
Desmemorizadas lembranças revividas, como um outro universo, sem a dor da ausência a impedindo de enfrentar seu aguilhão de desconsolos.
Ao vê-la, sopitavam os devaneios, onde criamos asas, voando além dos limites, em cenários utópicos, matizes em cores vivas diferindo da ocre paisagem. Nestas portas imaginárias, acalentando um porvir ajudando a vivenciar as rotinas alimentadas de esperanças, como crianças à espera do natal. Ilusões dadivosas, colheitas de sonhos, muletas na travessia, luzes nas trevas dos dias. Companhia e alento aos sós, flores nos caminhos íngremes, noites em temporais suavizados, vulcão interior, incandescente e hostil apascentado na tolerância e a mansuetude da paz. Antídotos gestados pelo próprio organismo para se salvaguardar das intempéries devastadoras. Crianças ocultas em seus refúgios, fugindo de seus perseguidores de pernas de pau, no reino da fantasia.
Assim, adentrando o insondável, permitindo-se hipóteses, talvez inverossímeis para quem não vivenciasse os fatos, mas necessárias para se entender um Ser prestes a sumir no varredouro da ilusão, perdendo conexões com a realidade. Talvez apenas restasse o corpo, pois a mente, aonde andaria ?
Naquele solo árido, fantasias eram flores nos caminhos, margeados de espinhos, nutrindo a terra seca de fertilizantes naturais e coloridos. Na tela escassa de luz, desenhavam-se alegorias de vivas cores, incendiando de fervor e de vida o que aparentemente nada existia. Lágrimas substituídas pelos risos, permutas de dores por alegrias.
Como se fora a vida minguar de repente, sem ideais a perseguir, flutuando à deriva, feito um barco, tramas sem enredos em fatos inconcretos. Aquilo registrava a certeza de que se respirar é preciso, sonhar, por vezes, é imprescindível. Nem mesmo a bela paisagem, amena, serena, colocada à janela, a trazia de volta, bafejada as faces em aromas de flores, como um beijo, acompanhada no vento brando nas cortinas.
Figura muda, dissociada de seu momento, ausente. Os ares primaveris rescendidos na brisa morna, vestígios de alguém ou de outras épocas, respirados brandamente, exalados. Página a página, vagarosamente, repetidas inúmeras vezes, em cada receptáculo onde via- se um desfilar de ausentes presentes em seu mundo pessoal e enigmático. Fluídas lembranças, traços indefinidos como pintura abstrata, nostalgias impregnadas na vivacidade dos olhares repentinos e fugazes.
Suas expressões, contudo, pareciam mergulhar em um mundo auspicioso aos seus anseios, pois a revitalizavam, os olhos transmitiam euforias inefáveis e não compartilhadas. Voava livre, desimpedida de amarras, no céu das suas fantasias, em sorrisos maravilhados. Uma menina revivendo tempos felizes e remotos, ou a lucidez de um espírito antevendo o paraíso ? Tudo cogitações impotentes de quem a observava, tentando traduzir o que sentia com suas próprias deduções desprovidas de qualquer fundamento lógico. Como, enfim, aferir o encanto com a medida da sensatez ? Onde as soluções medicamentosas, paliativas, pareciam infrutíferas, tudo parecia válido, compreensível, assimilável.
Aquele conjunto de velhas fotografias amareladas era o seu referencial, mantendo-a vinculada a alguma noção de tempo e espaço. Sem ele, por certo, a mente liberta vagaria em ignotas paragens, apenas a matéria plausível, envelhecendo, com pálidos registros das suas solitárias viagens desconhecidas...

* Publicado em livro na antologia de contos da CBJE, Rio de Janeiro RJ, Setembro de 2011.

Oblíquo olhar

Seriam momentos comuns nos passos de sua vida, sem novidades. Um andar cabisbaixo, compenetrado em si, aparentando alheamento, distância. Naquela manhã, como em tantas outras, no seu imperturbável percurso, tranqüilo, fechado em copas, absorto em seu universo pessoal.
No ar, perfumando os ares, suave aroma emanado de uma moça, a passar rente a ele, marcando sua presença com aqueles eflúvios aromáticos. Seguia à frente, com o vento brando sua presença permanecia no ar, fazendo-o aspirar profundamente, como querendo retê-la no olfato.
Traiu-se com seu oblíquo olhar, como disfarçando seu interesse e curiosidade, da fonte a emanar aquela brisa seus olhos se detiveram naquela garota bela, jovial, com um sorriso perfeito e envolvente. Seus olhos, por instantes, se encontraram, mas, maldita timidez, fora vencido, abaixando-os e seguindo seu conhecido caminho.
Durante todo o dia as imagens daquela visão o visitava, tirando-lhe a atenção no trabalho. Desejava revê-la, aspirar sua fragrância suave e persistente, sua beleza juvenil e sedutora. Apenas isso, pois se acabrunhava diante à possibilidade de abordá-la, não saberia como agir, tolhido pelo embaraço.
Cruzaram-se, fortuitamente, em outros momentos, e sempre seus olhos a perseguiam, respirando profundamente o aroma agridoce exalado, como se tivesse uma flor exótica às mãos. Tão próximos e distantes, na barreira invisível daquela timidez que lhe entorpecia as intenções, como um menino acanhado.
Absorto na leitura de um livro, no coletivo que o levaria à cidade, sentiu no ar a presença feminina tão desejada, seria ela ? Levantou sorrateiramente os olhos, traindo a sisudez naquele semblante, pousou seu interesse nos seios tesos de vida e juventude daquela fêmea próxima, conhecida e perfumada. Por instantes, nu os pensamentos ágeis e expostos, ruborizando as faces, envergonhado e atraiçoado, surpreendido. Novamente vencido, abaixou os olhos, afastando-se no receio de viver a sua paixão.
O que o impedia de se revelar a ela, ao menos para uma conversa inicial ? Invisível aos olhos, os cárceres íntimos, presentes nos atos, limites impostos em hábitos, costumes e condicionamentos. Amarras imperceptíveis, algemas a deter em estreitos e medíocres atos, asas atrofiadas, impedidas de voar.
Tanto havia a dizer a ela, sua mente prolixa em contraste com os lábios cerrados, na mudez inexplicável, em visões limítrofes a outros horizontes, restritas e contritas. Prisão imaginada, denunciados nos passos comedidos, introspectivos, talvez em conceitos e julgamentos tolos, numa imagem deteriorada de si mesmo. Incapaz de se sobrepor aos anseios, extenuado e vencido nas tentativas.
Se ela soubesse, naquela figura retraída, ele era um lobo à espreita de sua gazela, o seu interior é impudico, desprezando rótulos e modos, é insano e atrevido. Sim, a desejava como ninguém aquele corpo macio e cheiroso.
Tudo aquilo era apenas um discurso, intramuros, sem ecos, nunca verbalizado, uma justificativa para si mesmo, atordoado pela falta de iniciativa, amortecida por receios de se mostrar, se apresentar como queria.
Sabia o que desejava mas não se atrevia a dizer, a expor o vulcão em erupção prestes a eclodir em suas lavas incandescentes, sedento na fúria do desejo. Escreveria, nisso era bom, com as palavras entendia-se bem, restava o prurido de se confessar tão retraído, com tantos anseios contidos, demonstrados em versos sofridos... Como lhe falar de seu amor, se requisitava beijos, não dos da face, numa suposta amizade de vizinhos, e sim os da boca, ardentes, impunes, insinuantes e vorazes ?.
Não conseguiria manter a sua respeitável cortesia, felino travestido de cordeiro, na gana da sensação de rasgar as roupas, a desnudando, à mostra os tesos seios como preliminares de suas inconfessáveis tentações. Propostas indecorosas, plenos desvarios em acesos instintos, a dor reprimida, na sofrida postura de polido e cordato, quando o desejo era pela possessão e o gozo. Sorria consigo mesmo na confissão íntima de suas reais intenções, não imaginadas na figura pacata e quase apagada ostentada. Um voraz animal acuado na jaula das conveniências.
A olhava enviesado, não querendo encará-la diretamente. Seus olhos descerravam, encerravam seus mistérios, leitura muda, enigmática, sentidos insinuados, velados. Alegrias e mágoas, sorrisos e lágrimas, um pouco de si desvendado na linguagem sem sons, em sutis olhares. Depositava no semblante apelos da alma necessitava de socorros, emocionado.
Para ele a musa vinha como um risco, um raio lampejo em forma de sedução. Chegou inusitada, inesperada, desesperada, etérea como o perfume evolado à sua passagem. Despertava nele sensações não antes experimentadas, porém faziam-no sofrer, rompendo seu silêncio e expondo-se, vendo-se por dentro, refletindo sobre si mesmo, abrindo frestas nas trevas indecifráveis de sua individualidade. Como se apresentasse num reflexo, conhecendo-se, assustando-se com o que via e sentia.
Ela viera como uma intrusa, o invadira na sutileza de um perfume, na calçada feito passarela, como um meteoro fora de órbita, apossando de sua alma, de forma arrasadora, conquistando espaços onde existia apenas ele. E o encontrava desprevenido, indisponível para alguém, em briga íntima, iluminando sua escuridão pessoal. Já era o centro de sua atenção, cedendo, permitindo-se, obediente e prazeroso, aparecendo dançando desconexa, estranha, bailando nos sonhos em sentimentos confusos.
Ignorava gostar, até desdenhava dos que afirmavam amar, tido como fantasia, melindres dos fracos. Mas via-se desconhecendo, revirado em seus conceitos e certezas, sentido a ausência dela, saudades, querências...
Não queria assumir os sintomas, as emoções, bem e mal lhe faziam, reviravoltas , algo perigoso, ousado, o novo trazendo desafios e descobertas, o pondo desnudo.
Experimentava do bem que o gostar apraz, das dores que o amar traz. O ônibus chegava ao seu destino, a despedida muda, ardendo em chamas intestinas, sofrendo secretos martírios, pela amada que sequer suspeitava de suas intenções...

* Publicado em livro de antologia de contos: Brasil, mais que um País, uma Inspiração;
** Publicado em livro na antologia OS MAIS BELOS CONTOS DE AMOR, editora CBJE - Rio de Janeiro, RJ, 2014.

Elegia ao defunto anônimo

Lá estava estendido, parecendo bicho acuado, um riso profundo, um vago no olhar, uma história vulgar, como tantas.
Ferida feia, monte inerte, um contratempo ao trânsito caótico, esparramado na via pública como em um abraço no chão de betume, redenção de um ébrio em fim de uma noitada intensa.... O piche negro, face a face, um beijo no asfalto. Peito desfraldado, imberbes cabelos, alourados sujos, filetes rubros empastados... Um sonho estranho, uma fita de cinema ou crônica policial.
Das atenções alvo comentado, enfim por uma vez notado, percebido, no incômodo que seu corpo dilacerado, exposto, visível, deplorável, apresentava aos olhos de todos... para alguns condolências, noutros repugnâncias, mas, para o certo ou errado, tinham que vê-lo , não havia como escapar, estava denunciado como um morto anônimo, mais um, a ser retirado do caminho. Mas estava na passagem, reclamando providências, existindo por fim na inexistência, era alguém que pedia, em reclamos mudos, socorro.
Incomodava, era um semelhante, quisessem ou não, também um mortal. Curiosos na anatomia do corpo decrépito, a veia saltada no pescoço – será que gritara ao morrer ?
Turba mansa aturdida, seguindo passiva, imersa em si, evasiva, nada mais era que um contratempo, incidente de percurso, já acostumados. No curso da massa caminham, seguem unidos, desconhecidos, em suas rotas , distraídos. Onde a morte de um mendigo, não era fato anormal, mas algo corriqueiro, banal.
Metidos, enfiados em si mesmos, sufocados na pressa de chegar a algum lugar de nome lar, onde frente à televisão vão cochilar e acreditar, esquecer se esquecendo. Postergando anseios para depois, adiando a vida para um amanhã talvez. Fazendo contas, projetando planos, dilatando sonhos. Arquitetando no hoje um futuro além, em diálogos sussurrados, comendo fatos, boatos em arrotos. Falas mal digeridas, desatentas, confundidos em alienados apetites.
Como toda rotina, despertam amanhã, reiniciam a marcha – morto, qual morto ? O de ontem, ah, já sei !
Reiniciam a caminhada, ilhados em si, solitários na multidão apressados, compassados, compenetrados, atolados nos coletivos, aturdidos em seus caminhos e destinos
Na sua solidão de cadáver, reconheceu o cuidado de um transeunte, por compaixão ou para encobrir aquele escândalo, abriu um jornal e o cobriu, sentia-se reverenciado naquele dúbio gesto, para tirá-lo das retinas enjoadas ou preservá-lo na sua intimidade...
Tantos olhares atraiam a sua andrajosa figura semi nua, ofuscada até então, tantos comentários, inquirições sobre os fatos que culminaram com aquela tragédia, nunca fora o centro de atenção alguma, nem mesmo de si tomava ciência, a vida era como se apresentava, uma busca insana para abrigar-se em algum vão de marquise,fugindo da chuva ou do frio, um pão seco que fosse para acalmar o estômago, nada além...
Ah, se soubesse, sonhasse viver, que tantas pessoas, transeuntes e motoristas, parariam para vê-lo, desejaria ter vivido mais, talvez como alguém menos insignificante...da vida não um trânsfugas à deriva de si mesmo, imerso na insanidade de seus dias, na falta de objetivos e de esperanças... Sem um teto e entes queridos, na fartura de suas carências.
Talvez viver como vivem tantos, os tidos como normais, sendo alguém na multidão, ter sido mais que uma sombra, a estender as mãos imundas para colher esmolas, dadas não pela caridade espelhada na solidariedade humana, mas para se desvencilharem de sua figura repulsiva. Tantas vezes o poupavam de pedir, atiravam as moedas temendo que se aproximasse, não precisava pedir, dispensavam ouvi-lo...as moedas caiam pelas calçadas, e as recolhia, até que somadas representasse algum valor para se comer algo. Que alguém, por caridade, pudesse comprar para ele, pois não o deixavam entrar em lugar algum, pelas rotas vestes e odores que exalava. Então, mesmo com o dinheiro para pagar era expulso, como um animal empesteado, um ser desprezível e abandonado.
Ah, talvez o mundo não lhe fosse assim tão indiferente, tampouco causasse repulsas como imaginava...se tivesse imaginado que olhariam para ele, teria tentado viver mais, não sendo apenas um mero número, um a mais, que era...

* Publicado em livro na antologia de contos da CBJE, Rio de Janeiro RJ, em junho de 2012.