O teatro de Gil Vicente

Nos primórdios do século XIV, era costume na corte portuguesa, durante os ofícios religiosos do Natal, pastores irromperem na capela, e dançando e cantando, para louvar o Deus menino. Eis que na noite de 7 para 8 de julho de 1502 um homem fantasiado de vaqueiro repentinamente entra na câmara da rainha D. Maria, mulher de D. Manuel de Portugal, a qual havia dado a luz a um menino, futuro rei D. João III. Esta manifestação agradou os presentes e foi pedido ao seu autor e intérprete que a repetisse nos festejos de Natal, em honra ao nascimento do Redentor.
Este homem de controvertida biografia, a quem alguns identificam como o ourives da célebre custódia de Belém, era Gil Vicente. Ele tinha na corte portuguesa a função de organizador das festas palacianas, e foi para ela que escreveu suas comédias, farsas e moralidades.
Ao homenagear o nascimento de um homem e não o de Cristo, como até então faziam os autos de Natal, Gil Vicente, com seu Auto da visitação ou Monólogo do Vaqueiro, deu iníco ao teatro leigo em Portugal, isto é, o teatro profano, praticado fora da Igreja.
Essa primeira peça de Gil Vicente apresentava uma nítida influência da dramaturgia do espanhol Juan del Encina, de caráter pastoral e religioso. Como a corte portuguesa - para quem trabalhou durante 34 anos - era bilingue, Gil Vicente criou peças em português, em casteliano e algumas nas duas línguas.
Do ponto de vista técnico, a dramaturgia de Gil Vicente era rústica e primitiva. Desconhecia o teatro greco-latino e a tradicional lei das três unidades (único lugar, tempo delimitado e apresentar o mesmo tipo de ação), que sempre caracterizou o teatro clássico.
A formação teatral de Gil Vicente, portanto, reside fundamentalmente nas poucas manifestações de dramaturgia existentes na Idade Média, em geral representações relacionadas com datas religiosas.
Apesar dessas origens, o caráter do teatro vicentino não é teocêntrico. A obra de Gil preocupa-se essencialmente em apresentar o homem em sociedade, criticando-lhe os costumes e tendo em vista reformá-los. Trata-se portando, de uma obra com missão moralizante e reformadora. Não visa atingir instituições, mas os homens inescrupulosos que as compõem.
As peças de fundo religioso, portanto, não almejam difundir a religião nem converter os pecadores, mas demonstrar como o ser humano em geral - independentemente da classe social, raça, sexo ou opção religiosa - é egoísta, falso, mentiroso, orgulhoso e frágil perante os apelos da carne e do dinheiro.
Dessa forma, nenhuma classe ou grupo social escapa à sátira mordaz de Gil Vicente: o rei, o papa, o clérigo corrupto e devasso, o médico incompetente, o curandeiro, a mulher adúltera, a alcoviteira, o juiz desonesto, o camponês, a donzela, o velho, o parvo, a beberrona, a moça da vila, o soldado, o judeu oportunista, o burguês ignorante e materialista. Neste sentido, Gil Vicente mostrava-se crítico diante da nova ordem social e dos valores burgueses que surgiram na sociedade portuguesa do início do século XVI.