A grande imprensa não é os 23

Autor: Leonardo Soares

Contato: leossga@gmail.com

Tem como não gostar da direita no Brasil – esse amontoado que exala ódio e que dão o nome de “direita coxinha”? Claro que não.
O terrível atentado que dizimou praticamente toda a redação do Charlie Hebdo em Paris acabou revelando mais esta faceta dessa nobre congregação de mentes sábias e instigantes. Após alguns minutos daquele trágico tiroteio, os veículos de imprensa se apressaram a publicar uma série de editoriais, nos quais duas preocupações se faziam evidentes: de um lado, era preciso repudiar o dito atentado e atacar a comunidade islâmica - igualando-a a uma corja de bandoleiros, cegados pelo fanatismo islâmico e que só pensam naquilo: que é matar gente, cantarolando para Alá. Todo um jogo de estigmatização precário e surrado era acionado, bem ao gosto dos seus inteligentes leitores, cuja massa craniana é obcecada pelo consumo de frases prontas e jargões como que extraídos dos manuais anticomunistas tão disseminados nas décadas de 50 e 60, embora bastante didáticos, e de uma profundidade tão heideggeriana, que até a Hebe Camargo poderia ler e entender. Por outro lado, os nossos “Charlies” da imprensa livre e democrática, isto é, os veículos da grande imprensa corporativa dominada por “meia dúzia de famílias” batiam no peito para reafirmar o seu compromisso “inegociável” – juro que li uma coisa dessas num deles – com os preceitos da liberdade da imprensa e da liberdade de expressão, pilares “da civilização Ocidental”. Claro, um jogo de palavras usado para “nos” contrapor – em termos de valores e visão de mundo – aos bárbaros homicidas da outra “civilização” (os do lado de lá). Mas não só isso. Com uma nobreza de modos e gestos sem igual, a nossa valorosa imprensa nem esperou os corpos dos heróis da “imprensa livre” esfriarem para fazer propaganda de si, capitalizando sobre os mortos. Simples assim.
Enquanto Paris e outros países choravam (ou fingiam chorar, que dá no mesmo), a direita daqui se manifestava através dos seus meios de comunicação para se vestir de luto – claro, de uma forma tão convincente como a melhor das piores atuações do famoso cigano Igor, aquele personagem televisivo.
Mas o mais comovente foi ver como tal imprensa se mostrou uma verdadeira combatente em prol das liberdades democráticas. Foi tocante ver muitos intelectuais, escritores e jornalistas que nela atuam se somarem a todo um conjunto de vozes que repudiavam aquele morticínio, que mais do que vitimar 12 cartunistas, feriram de morte a liberdade de imprensa: “Somos todos Charlie” – não cansavam de entoar os soldados da tolerância, das liberdades políticas e do respeito ao contrário. O direito à livre expressão é sagrado. Talvez o único dogma do bem.
Embora seja curioso quando lembramos que os mesmo até bem pouco tempo atrás pediam de maneira ensandecida para que a polícia daqui descesse o porrete nas costelas de manifestantes que ocupavam as nossas avenidas para protestar, para se manifestar e para expressar o seu descontentamento, sua crítica, sua angústia - como advoga a Carta Magna do país; que chamava de terroristas quem se pronunciava contra governos e monopólio da imprensa; que insinuava que sindicatos e partidos envolvidos nas manifestações não passavam de “organizações criminosas”, sedentas por golpes sanguinários e contrários à família e à religião cristã; que não cansou de se omitir diante da truculência absurda das forças policiais, debitando sempre na conta dos manifestantes o esvaziamento das passeatas, a violência e os confrontos.
Talvez toda essa aparente incoerência fique mais fácil de entender se levarmos em consideração que essa mesma imprensa, esses mesmos veículos (de tração animal) aprenderam a amar a liberdade de expressão, chegando a ter relações carnais com ela, há mais ou menos 50 anos atrás. Foram os mesmos que aprenderam a amar as liberdades apoiando uma ditadura militar sanguinária, impiedosa e “redentora”.
Um deles, o mais poderoso chefe das telecomunicações, tinha audiências especiais com os presidentes militares, sugerindo cortes e fechamentos de jornais, apoiando e incentivando cassações de mandatos e inclusão de jornalistas em IPMs. Delatando, denunciando profissionais, produzindo listas negras. Tudo pela democracia.
E algo mudou desde então, passados já 50 anos daquele absurdo? Claro que não, o desprezo pela sorte dos 23 presos políticos do Rio de Janeiro tai para mostrar o quanto nossa democracia não passa de uma falácia.


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