O colecionador de curso

Autor: Humberto Pinho da Silva

Contato: humbertopinhodasilva@gmail.com

Estava encostado à ombreira da porta da cafetaria, quando deparo com o amigo Silvério, que descia, pausadamente, a íngreme calçada dos Clérigos. Vinha acompanhado de sujeito, que aparentava ter pouco mais de quarenta anos. Calçava chinelos de praia, calça de ganga azul, t-shirt encarnada e cobria os cabelos grisalhos, com boné ensebado pelo suor e pelo uso. Silvério apresentou-o em largos gestos: - Professor Smith, recentemente chegado da América Latina. Feitas as apresentações e cortesias da praxe, soube que se tratava de alguém que completara quatro cursos, possuía dois mestrados e um doutoramento. Uma sumidade que dominava cinco línguas. Entramos na cafetaria e solicitamos três cafezinhos, bem tirados. Inteirei-me, então, que era solteiro e não pensava casar: “ A minha geração não casa. Qualquer namoradinha, colega da Faculdade, transa. Para quê: responsabilidade, filhos, compromissos?” Declarou-me que podia lecionar, mas não gosta de horários fixos. Passa noites na Internet e viaja. Possui bolsa, faz traduções e aproveita intercâmbio entre universidades, para viajar e conhecer pessoas. Aluga quarto com colega e fica de seis meses a um ano. Assim vai conhecendo o mundo e colecionando diplomas e certificados. - Acabando a bolsa, de que vive? - Interroguei: - “ Tenho renda pequena. No meu país o ensino é gratuito, e por vezes ainda nos pagam para pesquisar e frequentar a Universidade. Depois papai sempre dá mão na roda, quando o aperto chega…” Perguntei-lhe se já vira a cidade. Disse que sim: -” Comi bacalhau e tripas, e espero provar a francesinha, que dizem ser bem gostosa.” - Museus? Com a sua cultura… – acrescentei. - O Soares dos Reis merecia uma visita: - “ Não gosto de quadros… Depois, visto um… os outros são todos iguais.” Falamos, então, de economia e política. Afirmou, com indicador em riste, que: “ Quando ruiu o muro de Berlim, apareceram os milionários russos; e a China compra empresas no estrangeiro, para obter lucros e explorar povos.” Que os intelectuais de esquerda são hipócritas, porque: “ Em geral têm a barriga cheia de bens ou bons ordenados.” Que os vê, juntamente com os da direita, em bons hotéis e melhores restaurantes, e alguns têm dinheiro em paraísos fiscais. Não vota, e pouco conhece de política, porque não lê jornais nem escuta noticiários. Vive para pesquisar. Despediu-se e retirou-se. Ofereci-lhe o meu diário: -” Para compreender melhor a crise portuguesa. “ - Disse. Agradeceu e foi na direção dos Loios, arrastando as “havaianas”, de boné surrado, enfiado na cabeça. Ao dobrar o cotovelo da rua, lançou o periódico na papeleira., num gesto de desprezo. Para ele, o que o jornal contava eram petas de neoliberais. Gente que trabalha, cria e tem filhos. Gente inferior. Para ele, que é “Professor”, e possui dois mestrados e um doutoramento, a missão é: estudar, investigar, viver de bolsa e colecionar cursos.


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