Doméstica

Autor: Marcelo Queiroz Braga

Contato: mqb@ig.com.br

— E tem razão de questionar? É claro que não! Bastava casar. Casou? Não! Agora, trabalha! Menina, nascendo mulher, só tem coisa com dois destinos. Mais nada, não. Vê as irmãs. Todas de bucho cheio, casa fazendo ou já arribada, marido sempre por perto: calor para os dias à toa, mão forte para os trabalhos pesados, peito cabeludo para afofar a cabeça e, o mais importante, o de comer, de vestir e sobreviver.
Era mãe de quatro filhas já adulta e ainda criava um garoto imberbe. Herança de uma tia velha, que não deixara nem o do sustento do pobre. Resistira, mesmo sendo coro em casa o mister da caridade aos que têm menos. Um tal de “fica com o menino, mainha…” que não lhe cabia mais nos ouvidos. Acabara cedendo. Aos poucos, apegou-se ao coitado. O pequeno foi-se revelando de uma esperteza e inteligência pouco comuns dentre o povo do lugarejo, e ela passou a agradecer todas as noites pela bênção de ter “herdado” aquele “bem” tão precioso!
Suas filhas legítimas, prendadas ao extremo, como ela mesma adorava alardear, haviam conseguido casamento, apesar de continuar a achar que mereciam maridos melhores. Apenas a mais velha, talvez por haver puxado o pai em feiúra e rouquidão, permanecia encalhada, sempre sorumbática pelos cantos, quando passava as férias com a família na casa em que sempre moraram. Agora, cansada do emprego de doméstica na Capital, soltava a cantilena – com direito a lágrimas e gemidos –, dizendo que não voltava mais para lá, melhor em casa do que morrer de tristeza na casa dos outros!
O problema era que D. Catita, a tal matrona bronca, viúva já há cinco anos, não tinha mais condições de trabalhar e manter a casa, tendo muitas despesas com os estudos do menino, que não podia perder tempo com trabalho, estudando dia e noite para se tornar doutor.
A primogênita solteirona, de compleição forte e ânimo quase inabalável para a labuta, a cada dia sentia-se mais triste e saudosa de casa e dos seus, deprimida por não ter namorado, cansada da solidão e do enfastio da vida.
Vez ou outra, arranjava uma pessoa para conversar, companhia para ir à missa ou passear pelas ruas iluminadas da cidade grande. Quando se achava amiga de alguém, logo era preterida por um homem, ou descartada, havendo um outro motivo qualquer. E tinha que novamente curtir o amargor da solidão, trancada no quartinho da casa de família, depois de um dia estafante de serviço, mirando a tela sem cor da pequena televisão.
Disse o médico do posto de saúde que ela estava com depressão profunda, agravada por não sei o que que ninguém entendeu nem soube repetir. Aviaram a receita. Uma fortuna em remédios! Quem bancaria, caso ela resolvesse largar a família da Capital? Ser doméstica nas redondezas do povoado dava muito pouco, não pagava a pena. Caso até de nem ter procura. Uma pobreza danada, seca muita!
— Se ainda casasse… Em tempo está. Tem homem que aceita até depois de ter azedado. Tem homem pra tudo! E, depois de casada, vida arrumada. Ditado melhor não existe.
Ninguém conseguia tirar da cabeça da mãe aqueles pensamentos. As irmãs da doente já haviam se convencido de que a infeliz realmente não estava mais em condições de dar aquele duro danado que sempre dera. Mas, quando a velha pedia soluções para a inevitável falta de dinheiro, desconversavam, perguntavam se não era o caso de uma segunda opinião médica…
Chegou, dessa vez, com uma mala grande nas mãos, algumas sacolas de supermercado com vários badulaques, uns mimos poucos, a Bíblia e uma foto amarelada dos patrões. Ex-patrões.
— Vim de vez, mainha…
Era bem forte para carregar sozinha suas coisas. O menino estava para o colégio.
Estava muito velha para fazer a vida. A mãe se benzeu e pediu perdão pelas Ideias.
Alguém teria de pensar numa saída!
Passaram a tarde inteira em casa. Apenas as duas. Quase não se falaram. Quisera saber notícia de todos, mas a mãe a fitara daquele jeito tão seu de pedir silêncio. Depois de arrumar algumas coisas no quarto que sempre fora seu, tentou novo assunto:
— O médico da Capital recomendou repouso e novos ares. Quase dobrou a dose dos remédios. Talvez uns quarenta dias de licença…
Olhava para as paredes rebocadas. Alguns quadros com fotos de antepassados. Não conseguia vencer a submissão.
— A patroa disse entender, muito me ajudou esses anos todos…
— Santa senhora!
— …mas já estava com outros planos. Os meninos crescidos, tudo já mais fácil. Falou em viajar mais, curtir a vida. Não carecia mais empregada fixa, talvez uma faxineira para cada quinze dias, sempre gostou muito de almoçar fora, essas coisas…
Estava na cara que a patroa se cansara daquele vaivém, repousos muitos, licenças longas e repentinas. Tudo para tratar a tal depressão, na qual a mãe se recusava a acreditar. Toda a razão para a madame, ninguém pode ficar arcando com os embaraços de um empregado que não se resolve!
— Acertaram as contas? — perguntando por perguntar.
— Ainda não. Ela me deu um dinheiro para eu passar o repouso. Disse que, quando eu pudesse voltar, a gente acertava tudo.
— Então ainda tem chance! — os olhos da velha se iluminaram. — Vamos ali no telefone da praça ligar pra ela.
— Bobeira, mainha… — o sal das lágrimas começando a irritar-lhe os olhos. — …tem mais jeito não.
— Sem jeito, só a morte!
Foram. A mãe trotando como a idade lhe permitia. A outra, como se a forca estivesse à sua espera.
— Liga, aí, que ainda não aprendi.
Olhou para o teclado do telefone público. Havia um sol de anteontem. Poucas pessoas pela praça. Apertou alguns botões aleatoriamente. Por não acostumada à trapaça, corou, mas não deixou que a mãe visse.
— Está ocupado. Podemos tentar mais tarde.
— Diacho! Esse povo de dinheiro adora falar nesse troço! Depois, voltamos.
Da próxima vez, mentiria que haviam viajado. Toda a família. Sem data de retorno.
E que o tempo se encarregasse do resto. O menino, doutor, deixaria a casa, viveria a vida dele. A mãe, bem velha, nada mais mandaria, dependendo da boa-vontade da primogênita até para se limpar. Certamente que um dia morreria… Um calor de liberdade fez seus ombros relaxarem. Benzeu-se, quando passaram pela Igrejinha. Não sabia se tinha de se penitenciar por almejar o futuro.

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